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Coordenador e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

"Incomoda, mas vai indo…". O joelho do Papa e o cenário de uma renúncia

6 fev 2023, 11:46

A viagem à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul era também uma prova. Uma dupla prova. Da primeira, e mais importante, saberemos o resultado no andamento dos processos de reconciliação e pacificação em ambos os países. Da segunda, "veremos..."

1. As palavras do Papa, que em Juba se fez acompanhar pelo arcebispo da Cantuária – Igreja anglicana –  e pelo moderador da Igreja escocesa, para uma “peregrinação ecuménica”, tocaram nas feridas: a África explorada, rica em recursos, mas miserável, dos diamantes de sangue, e demasiado sensível às alterações do clima e às catástrofes naturais, a África da corrupção pelo poder, da guerra e da crueldade, entre a tribalização e a difícil reconciliação, a África das instituições no terreno, das Nações Unidas e das Igrejas, a África da esperança, que ganha forma na resiliência feminina – “as mulheres são a chave para transformar o país”, disse o papa no Sudão do Sul – e nas novas gerações, nascidas e amadurecidas sem referências de paz, sobreviventes na arbitrariedade.

Nenhum país é viável quando ser desalojado é uma experiência coletiva estabelecida. Como lembrou Francisco, há “um número enorme de crianças nascidas nos últimos anos que só conheceu a realidade dos campos de desalojados, esquecendo-se do ambiente de casa, perdendo a ligação com a própria terra de origem, com as raízes, com as tradições”.

A presença do Papa levou o presidente do Sudão do Sul a disponibilizar-se para relançar o diálogo com grupos beligerantes que não subscreveram o acordo de cessar armas de 2020. Vale o que vale. A violência no Sudão do Sul tem rastilhos e motivações que nenhuma diplomacia racional resolverá. Mas a forte memória de um Papa a beijar os pés dos líderes sul-sudaneses, em 2019, durante um encontro no Vaticano, prevaleceu durante a visita, a provar que, por mais inauditos que sejam, há gestos que só o tempo pode explicar.

A visita do Papa ao Congo foi um “murro no estômago”. O mundo ouviu vítimas dos conflitos a leste do país, que, num encontro com Francisco, contaram as barbaridades por que passaram. Violações, escravatura sexual, sequestros, assassínios, canibalismo forçado… Não é um filme de Hollywood, com efeitos especiais, é a realidade. Fica-nos a imagem de um jovem que viu o pai ser decapitado e o irmão ser assassinado, não sabendo, ainda hoje, o paradeiro da mãe. A certa altura, quando lia o relato diante do Papa, parou e suspirou, hesitando. Um padre aproximou-se e pôs-lhe a mão no ombro. Ele continuou e terminou o texto: “perdoamos os nossos carrascos”. O momento foi revelador de um processo tão essencial quanto utópico. Há que “chorar, chorar sem palavras”, disse o Papa.

Francisco juntou as encíclicas Laudato Si e Fratelli Tutti e fez-se à estrada em África. Em derradeira análise, fixemos: “o que causa a pobreza não é a ausência de bens ou oportunidades, mas a sua iníqua distribuição”.

2. Cada viagem do Papa é também uma oportunidade para os jornalistas. Francisco não evita as perguntas às quais se sujeita em cada regresso a Roma. Desta vez, denunciou que a morte de Bento XVI “foi instrumentalizada por pessoas que querem levar água para seu próprio moinho”.

Questionado sobre as tensões internas defendeu que estas são provocadas por “pessoas de partido, não de Igreja”, com “tendência de transformar posições teológicas em partidos”. Sobre o antecessor, disse que o consultou sobre “algumas decisões a serem tomadas” e “não era uma pessoa amargurada” Entre os temas abordados nesta conversa com os jornalistas, o Papa reforçou que “criminalizar pessoas com tendências homossexuais é uma injustiça” e que estas “não devem ser marginalizadas pela Igreja, abordou a guerra na Ucrânia, reafirmando disponibilidade para se encontrar com Zelensky e Putin, e respondeu à pergunta inevitável: “E depois desta viagem que foi tão longa, tão exigente, como está?”.

Subjacente à pergunta, está a possibilidade de uma renúncia que, pela resposta do Papa, não está no horizonte. Francisco projeta uma viagem à Índia em 2024, vai a Marselha em setembro e admite voar dali para a Mongólia, onde está o mais jovem cardeal da Igreja católica, um missionário com 48 anos de idade.

Sobre outras viagens à Europa, além de Lisboa e Fátima em agosto, para a JMJ, diz que o critério é conhecer “a europa escondida”, como “a Albânia, o país que sofreu a ditadura mais cruel da história”.

E o joelho? “Erva ruim nunca morre”, não está como “no início do pontificado, incomoda, mas vai indo lentamente, veremos…” (a propósito, ler isto).

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