Roma, quarta-feira, 13 de março de 2013. Recordo como se fosse hoje.115 cardeais reunidos na Capela Sistina escolhem o líder de 1200 milhões de católicos. Eu era estudante de teologia em Roma e acompanhei alguns jornalistas nessa manhã. Na pausa de um cappuccino, perguntei a um jornalista sénior americano: “Que tipo de Papa é que o mundo precisa?”. Este respondeu: “Um Papa que reforme o Vaticano, um homem de paz para um mundo em convulsão… deveria ser uma espécie de Nelson Mandela, alguém que promova o diálogo entre judeus, muçulmanos, budistas, hindus…”. Um comentador italiano junta-se à conversa: “Isso não basta. Era bom que defendesse o meio ambiente, um comunicador, que domine muitas línguas, um papa jovem e experiente, decidido, audaz, que transmita alegria. O melhor é que seja italiano”, conclui com uma gargalhada. Às 19h06, fumata bianca. Os romanos que voltavam para casa depois de um dia de trabalho invertem o seu caminho para vir à praça de S. Pedro, que parecia mais um estádio de futebol. Eram 20h12 e ouvimos Annuntio vobis gaudium magnum, habemus papam. Silencio. Irmãos e Irmãs, Boas tardes. Antes de tudo quero rezar pelo bispo emérito, Bento XVI (...) Rezemos por todo o mundo, para que haja uma grande fraternidade. Bergoglio tinha chegado a Roma e trazia uma mala com 3 camisas negras. Era a última vez que as utilizaria. A partir de agora, de branco, era o 265.º sucessor de S. Pedro. Um jesuíta, pessoa de grande austeridade, com um grande carisma: desconcertante, renovador e alegre.
Desconcertante. “Não gosto da cara dele”, “acho mal que acolha refugiados no Vaticano”, “não tem discurso para intelectuais”. Estas são algumas críticas que lhe são feitas. Os comentadores têm dificuldade em situá-lo ideologicamente. Não cabe nos esquemas tradicionais. Não é de esquerda nem de direita. Defende a vida e a família. Denuncia as injustiças sociais. Entusiasma quando fala de misericórdia e surpreende quando fala do demónio e do mal. Com espírito livre para abandonar o que é rígido. Sabe separar o que é nuclear no Evangelho daquilo que é acidental.
Em 2015 tive o privilégio de conhecer em Roma a portuguesa Helena Lobato. Esta pintora de Setúbal, não batizada, escreveu um dia uma carta ao Papa, num daqueles momentos de aflição em que as respostas dos homens não solucionam problemas. A resposta veio com o desafio de receber o sacramento do batismo, em Roma, durante a vigília pascal presidida por Francisco.“Nem sabia que os adultos poderiam ser batizados” e que tinha de fazer um “caminho catequético”, que acabou por fazer na Paróquia da Cova da Piedade. Francisco, com a sua espontaneidade, desconcertou muitas pessoas, quando saiu do guião e das formalidades, quando respondeu pessoalmente à carta de Helena e quando no primeiro dia do seu pontificado se quis deslocar para pagar a conta da residência onde se tinha hospedado durante o conclave.
Renovador. As suas palavras e gestos não deixam ninguém indiferente e desde cedo quis reformar a cúria. Mas o objetivo de Francisco é muito mais ambicioso. Quer melhorar o comportamento de cada pessoa: cristãos, muçulmanos, budistas ou não crentes. Declarou guerra ao clericalismo: tudo o que podem fazer os leigos não o façam os padres. Fala da importância da mulher. Dá esperança aos jovens e diz-lhes que da sua vida dependem muitas coisas grandes. Isso experimentam mais de 3 000 jovens que anualmente participam na Missão País em Portugal. Francisco renovou o diálogo irreligioso. Celebrou o primeiro encontro de um Papa com o patriarca de Moscovo e avançou num terreno importante: convencer os líderes religiosos muçulmanos que desautorizassem o fanatismo islâmico e se motivassem a trabalhar em equipa com os cristãos pela paz entre as religiões.
Muitos pensam que é um revolucionário. Prefiro chamá-lo radical. No sentido original da palavra radix, raiz, alguém que nos leva às origens. Roberto Begnini, vencedor do Óscar pelo filme A vida é bela, diz que “o Papa Francisco — um homem grande no Estado mais pequeno do mundo — dá impressão de levar um peso. Está a empurrar a Igreja para um lugar que tínhamos esquecido: para Cristo e para o Evangelho”. Francisco descreve a Igreja como um hospital de campanha, onde há pessoas feridas pelo pecado, a precisar de renovação. E cada ferida importa. A cura é a misericórdia, que assinalou no ano jubilar de 2016. Kant dizia que o papel da Igreja era ajudar-nos a ser bons. Francisco sabe que isso não é possível sem Deus. Não podemos falar de misericórdia sem falar de pecado. O próprio Papa se definia como “um pecador contemplado pelo rosto da misericórdia”.
Mas, a quem interessa hoje Cristo, a Igreja, a misericórdia… e o pecado? Milhões de pessoas vêm a Roma para receber dele consolo espiritual. Em 2015 o Papa celebrou uma missa para 6 milhões de pessoas, a maior reunião de pessoas de que há conhecimento na história. Onde é que Francisco vai buscar essa força renovadora? Porque arrasta tanto? Como pode um homem de 86 anos ser a pessoa do ano da revista Time e ter 53 milhões de seguidores no Twitter? O Papa levanta-se muito cedo. Às 4h30, enquanto Roma dorme, o Papa já está a rezar. Francisco é um homem de profunda espiritualidade e a sua sede de renovar o mundo e ajudar os outros alimenta-se da sua relação com Deus.
Alegre. Alguns amigos argentinos diziam-me há uns anos: “olha para o Papa e como sorri. Parece outra pessoa”. Se procuramos no Google Images por “Papa Francisco” vemos que os gestos sérios do Arcebispo de Buenos Aires deram lugar a um rosto radiante. “Quando era arcebispo de Buenos Aires pensava que tinha que resolver muitos problemas que me esmagavam. Os que tenho como Papa, vejo claramente que só os pode resolver o Senhor”. Francisco apresentou o seu programa de pontificado na Alegria do Evangelho onde recorda o grande perigo de falar mais da Igreja do que de Jesus Cristo. Ao reler esse documento dei-me conta que ali estava tudo: a alegria de evangelizar, a importância das periferias, a revolução da ternura, a misericórdia, o cuidado amoroso das pessoas e da natureza. Era todo um programa meditado e delineado para estes 10 anos, sempre marcado pela alegria. Francisco arrasta multidões, mas prefere falar com as pessoas uma a uma, sorrindo e olhando olhos nos olhos.
É o caso de Letizia Speziali, uma rapariga de 15 anos de Perugia que um dia se quis confessar na Praça de S. Pedro. Sem ela se dar conta, o confessor era o próprio Papa Francisco. Dias depois, num encontro de escuteiros em Roma, ouvi o seu testemunho que me comoveu. “A confissão não foi um interrogatório. O Papa deixou-me falar. Perguntou-me de onde eu era e disse-lhe que era de Perugia”. O Papa sorriu e disse “Perugia, a cidade dos chocolates Baci”. Estava tão emocionada que começou a chorar, e o Papa diz-lhe: “'Não te quero ver triste, os rostos dos jovens devem ter sempre o sorriso de Jesus”. Francisco dá o exemplo. A confissão é o encontro com a alegria de Deus, não é um método de autoajuda nem um cosmético. É o primeiro Papa que se confessa na Basílica de S. Pedro e se deixa fotografar. E repetiu incansavelmente que Deus nunca se cansa de perdoar (...) nós é que nos cansamos de pedir perdão.
Dez anos depois, penso que Francisco correspondeu às expectativas daqueles dois jornalistas com quem me cruzei na Sala Stampa. O Papa continua a levar ao peito a cruz peitoral de sempre. Não tem a imagem habitual do crucificado, mas a de um pastor que caminha levando aos ombros uma ovelha. Assim o receberemos com entusiasmo em Lisboa em agosto de 2023 na Jornada Mundial da Juventude. O Papa tem grandes expectativas e será um dos pontos altos do seu pontificado: “Sonho, queridos jovens, que na JMJ de Portugal possais experimentar novamente a alegria do encontro com Deus e com os irmãos e as irmãs”.