ENTREVISTA || Morreu um dia depois da data litúrgica mais importante do calendário católico, que marcou uma combinação religiosa particularmente rara que fez coincidir no mesmo dia a Páscoa Católica, Ortodoxa e Judaica. Pedro Gil, assessor do Patriarcado de Lisboa, explica-nos os diferentes significados que podemos retirar deste desaparecimento
O Papa fez a sua última aparição num domingo de Páscoa, que é o dia mais importante do calendário litúrgico. Como é que interpreta esta coincidência?
É uma coincidência que não foi imaginada por um homem. Podíamos chamar-lhe fado, mas os católicos gostam de pensar que Deus tem alguma coisa a ver com o assunto. E é importante porque no domingo de Páscoa, eles celebram a ressurreição de Jesus, que era Deus feito homem, e que viveu cá, nasceu e viveu na Terra durante algum tempo, para dizer aos homens que as doenças do mundo, aquilo que os cristãos chamam de pecado, têm cura.
E Ele próprio carregou todas essas deficiências na sua vida e deixou-se sofrer por isso, como quem se cura através disso. Mas a morte não foi o último gesto dele. Ele ressuscitou para dizer "eu venci a morte", ou seja, "todo o mal que estava na minha morte ficou dissipado e aquilo que aconteceu comigo vai acontecer convosco". Portanto, os cristãos estão convencidos que todos os homens vão voltar a ter corpo, o que não é a mesma coisa que a reencarnação, que é voltar a uma vida que depois volta a morrer e volta a regressar.
Aqui é uma reencarnação definitiva, com uma mudança de estado de vida, para uma vida definitiva e sem problemas. Portanto, como no domingo de Páscoa se recorda o dia da ressurreição, é o dia mais importante do ano para um católico. Ora, que o Papa tenha morrido após um domingo de Páscoa, mas num domingo de Páscoa de um ano muito especial, chamado Ano Jubilar, que só acontece em 25 anos, é uma coincidência que para um católico tem um significado absolutamente incrível.
Qual é o significado de tudo isto?
O significado nós não sabemos, mas há uma coincidência que nos consola. Quais são os sinais não lhe sei dizer, o que podemos dizer é que ficamos felizes com essa coincidência.
Mas faz alguma interpretação dessa coincidência à luz do pontificado também do Papa Francisco?
O que eu diria é apontar para o núcleo daquilo que o Papa enunciou, que é, certamente: migrantes, pobreza e todas essas coisas, mas apontar que a solução dos problemas é Deus, porque Deus é bom.
Já ouvi a interpretação de que Deus permitiu que ele festejasse plenamente as cerimónias dos últimos dias, desde a quinta-feira Santa, a Sexta-Feira Santa, vigília pascal e depois este, domingo de Páscoa, completou isso e completando já pode levá-lo. Deus deixou-o completar o festejo principal do ano, num ano que era super especial.
Como é que os católicos olham para isso, para a ideia de que Deus quis que os últimos dias do Papa fossem num dia tão importante para os católicos?
Há interpretações para tudo. Creio que quem interpreta as escrituras fica feliz e dirá "que bom que tenha permitido que ele tenha tido a grande alegria de viver este dia" que, para um cristão, é um dia muito alegre mesmo. E depois, de alguma forma, também despedir-se porque ele fez aquela volta à Praça de São Pedro. É uma espécie de grande delicadeza do Céu.
Como é que olha para esse momento?
Eu acho que podemos ver uma despedida do povo todo, do mundo todo, que também lhe foi permitido. O que é que se processaria no coração dele? Eu estou muito curioso para saber mais disso. Não sabemos, não é? Quando uma pessoa é eleita Papa, para mim, ela está sempre assistida por Deus. E esta coincidência é um sinal de que Deus esteve com ele até ao fim.
E com os seus antecessores? Aconteceram também algumas coincidências especiais?
O Papa João Paulo II morreu no sábado a seguir ao domingo de Páscoa. Ele morreu na véspera de um domingo que ele próprio, João Paulo II, criou, chamado Domingo da Divina Misericórdia. O que significa, basicamente, é da enorme bondade de Deus. E, para ele, morrer tão próximo desse domingo que ele próprio criou é algo interessantíssimo.
Mas, como católico, que interpretação faz de todas estas coincidências em torno da morte de Francisco?
Como crente, sinto que Deus esteve presente. Ele não morreu por distração, por acaso ou por doença. É como se ele estivesse ao colo de Deus até ao último momento. Eu acho que qualquer católico achará que a escolha deste dia é uma escolha de Deus. Foi uma espécie de sinal indireto de dizer que estava mesmo perto dele.
Consegue identificar aqui mais alguma coincidência em torno da morte do Papa Francisco?
Há, de facto, um detalhe curioso. O Papa Francisco morreu logo a seguir a um acontecimento particularmente raro. Este ano, a Páscoa dos Católicos, a Páscoa dos Ortodoxos e a Páscoa judaica coincidiram, embora todos tenham calendários diferentes. É muito raro de acontecer. Esta sim, é uma coincidência muito poderosa. É preciso recuar bastantes anos para que isso aconteça.
Esse dado ganha ainda mais impacto à luz do seu legado? O Papa Francisco foi o primeiro Papa a encontrar-se com o Patriarca de Moscovo, em 2016, no aeroporto de Havana, ainda que o desentendimento entre católicos e ortodoxos nunca tenha ficado verdadeiramente resolvido…
Os calendários das Páscoas destas três religiões raramente coincidem. Além disso, é Ano Jubilar, o que só acontece de 25 em 25 anos.
Gostava de lhe perguntar acerca de outra coincidência ligada à morte do Papa Francisco. Quis o destino que o último encontro oficial do Papa Francisco fosse com o vice-presidente dos Estados Unidos da América, JD Vance, com quem o pontífice teve um desacordo público, em relação às políticas migratórias. Como é que interpreta esta coincidência?
Verifico, de facto, que é uma coincidência. Mas não sei tirar algum significado religioso ou teológico. Gostaria muito que, já que o JD Vance se afirma católico, que ele fosse permeável à boa influência do Papa Francisco. Acredito que tenha conversado algumas coisas fora dos microfones. Acredito que o Papa tenha, embora com limitações, mas com a ajuda de quem o rodeia e o sabe interpretar, tentado dizer coisas muito relevantes.
Acredita que ele tentou passar a sua mensagem a JD Vance?
O Papa Francisco escreveu uma carta aos bispos católicos americanos, em concreto, para clarificar uma interpretação que JD Vance fez acerca do pensamento católico. O Papa Francisco interveio e disse que não, que o pensamento católico não é bem assim. Foi um diálogo em aberto, feito na praça pública entre os dois, de duas interpretações diferentes à luz da fé católica.
Mas o facto de o Papa estar consciente de que estava mal e provavelmente sentir que os seus dias estavam perto do fim pode ter algum peso na receção ao vice-presidente norte-americano?
Eu imagino que para a pessoa do JD Vance deve ter tido mais peso morrer o Papa do que não morrer o Papa, porque é mais ou menos uma espécie de disposição de última vontade.
Mas acredito que este encontro importe mais às pessoas que acompanham a geopolítica. Para a maior parte dos católicos que seguem o Papa, a geopolítica é um mistério mais denso que os mais densos mistérios da fé.
É raro que um Papa envie uma carta aos bispos de um país a colocar em causa diretamente a política de um país. Isso não dá um outro significado a este encontro?
Não é muito frequente que o Papa envie uma carta destas aos bispos. Ele não identificou especificamente JD Vance, mas toda a gente percebeu que era ao vice-presidente que Papa Francisco se referia. Muitos bispos americanos acreditam que o capitalismo, mesmo com excessos, pode ser considerado uma solução para reconhecer a dignidade das pessoas e o seu espírito de empreendedorismo.
Outros dizem que o capitalismo está a gerar imensos desequilíbrios e favorece mesmo a criação de grandes fortunas e os ricos, na visão da igreja, são um grupo de risco enorme. Jesus disse que é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar nesse tal de Reino dos Céus. É sabido que o Papa tem uma grande aversão ao capitalismo. O Papa escreveu para os bispos americanos tendo em conta que uma parte do episcopado americano está em situação muito forte com o Papa Francisco.
Mas qual era a divergência entre o Papa e o vice-presidente americano?
A principal causa era em torno da imigração. JD Vance é contra a imigração e sacudiu-se de um texto de São Tomás de Aquino, que é um autor do século XIII, que disse que devíamos amar toda a gente, mas que existe uma hierarquia. Eu tenho mais dever de amar a minha mãe, o meu pai, a minha mulher e os meus filhos, do que tenho de amar o meu vizinho. A isto se chama em latim ordo amoris, que é a ordem do amor.
JD Vance utilizou este pensamento católico para dizer que os imigrantes, sendo pessoas que devemos amar, no entanto, estão nas periferias das nossas prioridades e que têm de cuidar da "America First". Foi a interpretação que ele fez dos princípios católicos para justificar uma opção política. Em resposta, o Papa alertou que existe outra forma de olhar para esse documento e que os imigrantes têm valor.
Esse vai ser um tema que vai ser herdado pelo sucessor do Papa Francisco?
O próximo Papa, entre as mil missões que tem, tem também de pacificar a relação entre dois grupos de bispos. Os dos Estados Unidos, que, de forma muito simplificada, estão à direita. E a dos bispos alemães, à esquerda, que se tornaram bastante progressivos e olham para a defesa dessas posições como a única solução para travar a perda acentuada de fiéis no país.