opinião

Não deixem o Papa Francisco morrer

22 abr, 07:30

“Hoje tudo se compra e tudo se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro (...) O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito (...). A Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta (...).  

Carta Encíclica “Dilexit Nos” do Santo Padre Francisco sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. 24 de outubro de 2024

Francisco tinha uma forma muito direta e muito simples de comunicar. O que dizia tinha uma razão, mas saía-lhe, sobretudo, do coração. E, talvez não por acaso, foi precisamente ao papel do coração —“o lugar da sinceridade, onde não se pode enganar ou dissimular” — nas decisões do homem mortal que dedicou a sua última encíclica, em outubro do ano passado. 

Os próximos dias são de comoção mundial. Entre católicos e não católicos. Entre crentes e não crentes. Entre os mais entusiastas deste Papa e os seus críticos que agora choram lágrimas oportunistas, mas que tudo fizeram para destruir o que o que ele queria construir. Cínicos, é preciso dizê-lo com a frontalidade de Francisco. 

Uma coisa parece-me certa: este Papa não foi indiferente a ninguém. E não partiu sem deixar uma marca muito forte no mundo em que vivemos. E é por isso que a sua morte nos deixa uma enorme responsabilidade nas mãos. Ou no coração. 

Se pudesse dar-lhe um cognome, seria “o restaurador”. Porque foi isso que ele fez nos seus 12 anos de Pontificado. 

Restaurou a Igreja. Não procurou abrir ainda mais brechas num chão já meio desfeito, mas procurou um teto comum, nas sagradas escrituras e na fé, que abrigasse todos. “Todos, todos, todos.” De todos os credos, de todas as raças, de todas as orientações sexuais. “Quem sou eu para julgar?”, questionava numa entrevista em 2013. Não quis uma revolução sanguinária, mas procurou a mudança tranquila, de passos seguros e duradouros. Do celibato dos sacerdotes ao papel das mulheres na Igreja, sem esquecer o casamento para divorciados. “Misericórdia e integração”, repetiu até a sua voz ser ouvida. 

Restaurou a confiança. Dos que tinham virado as costas à Igreja — e, talvez, mesmo a Deus. Dos que foram vítimas de atrocidades nas mãos dos que se diziam representantes de Deus na terra e cobardemente se esconderam atrás de uma batina e do silêncio dos seus superiores. Dos que viram as portas fecharem-se quando precisavam de ajuda. E, até, dos que ignoraram, relativizaram e memorizaram o sofrimento dessas vítimas. Quando em Portugal e noutras partes do mundo se dizia que os casos de abusos sexuais na Igreja Católica não eram assim tantos, o Papa Franciso dizia, sem tibiezas, que “basta um” para considerarmos que é uma “monstruosidade”. 

Restaurou a relação dos jovens com a Igreja. Fazendo uso da sua própria rebeldia, mas procurando, sobretudo, perceber a linguagem dos mais novos e de que forma tinha de comunicar para ser escutado. Incentivando-os a serem agentes de mudança e a não terem receio de criar “confusão” no processo. 

E, por fim, procurou restaurar-nos a confiança na condição humana. Insurgindo-se contra a “vergonha” dos que querem escorraçar, discriminar e excluir em vez de integrar, acolher e tratar por igual. Lutando contra uma sociedade cada vez mais polarizada que não deixa espaço para o diálogo construtivo. Relembrando conceitos tão basilares como o da dignidade e do respeito. 

Francisco morreu sem conseguir acabar com as guerras, com a polarização da sociedade e sem conseguir sequer o consenso necessário na Igreja Católica para que ela se reforme como provavelmente ele acharia que se devia reformar. O mundo estará, muito provavelmente, pior do que ele o encontrou quando subiu à cadeira de Pedro. Mas foram dele os passos importantes para o mudar. E é por isso que a Igreja Católica, antes de qualquer outra instituição, tem agora a enorme responsabilidade de dar continuidade a este trabalho do Papa Francisco. Mas não só a Igreja e os que dela fazem parte. Todos temos uma missão: a de não deixar morrer tudo o que o Papa Francisco representou neste mundo. Não o fazer é falharmos enquanto sociedade.  

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