Proximidade das famílias forçada pelos isolamentos poderá ter evitado suicídios

Agência Lusa , PF
23 fev 2022, 11:47
Saúde mental

Analisando o fenómeno do suicídio em Portugal, Adalberto Dias de Carvalho afirmou que, em média, registam-se entre três a quatro por dia. A psiquiatra Ana Matos Pires afirma que atenção dada à saúde mental foi "o único efeito secundário positivo desta pandemia"

A pandemia trouxe quadros depressivos, mas para muitas famílias foi também sinónimo de uma proximidade física forçada pelos isolamentos, que garantiu que se vigiassem umas às outras, controlando um possível aumento de suicídios, segundo o investigador Adalberto Dias de Carvalho.

Ainda não há estudos sobre os efeitos da pandemia de covid-19 num eventual aumento dos suicídios em Portugal, mas o investigador afirmou que “há a suspeição ou a ideia” de que isso possa acontecer, tendo em conta o que aconteceu noutras epidemias, como a de SARS em Hong Kong, mas também em contextos culturais diferentes.

“Sabemos que a pandemia traz situações que se aproximam da depressão, da solidão, mas em muitos casos trouxe uma proximidade familiar, não necessariamente afetiva, mas uma proximidade física durante o confinamento que fez com que as pessoas ficassem de alguma forma vigiadas umas em relação às outras”, afirmou à agência Lusa o diretor do Observatório da Solidão do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo.

No seu entender, talvez esta situação possa explicar porque, havendo uma expectativa do aumento de suicídios, tal não tenha acontecido, pelo menos, até ao momento, ressalvando que não há estudos conclusivos.

Analisando o fenómeno do suicídio em Portugal, Adalberto Dias de Carvalho afirmou que, em média, registam-se entre três e quatro por dia.

Explicou que, apesar de haver uma tendência para valorizar os aspetos psicológicos do suicídio, relacionados “com a desvalorização do eu”, e as doenças mentais, como a depressão ou a esquizofrenia, há outras condicionantes de ordem cultural e sociológica que podem levar a este ato.

No caso português, tem a ver com “a presença forte dos valores do cristianismo”, independentemente de se ser ou não católico.

“Mesmo numa sociedade laica como a nossa há uma presença muito forte das nossas referências culturais que tem a ver com o matar o outro, mas também com o matar-se si mesmo” que é considerado “um pecado extremo, porque é atentar contra a obra de Deus”.

Tendências suicidas tendem a ser maiores em pessoas que a sua vida familiar ou profissional fracassou

Uma análise feita pela investigadora Luísa Loura da Pordata, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, para a Lusa, indica que entre 2016 e 2019, último ano para o qual há dados disponíveis, revela que os distritos com maior taxa de suicídios nos últimos quatro anos foram Évora, Beja e Faro.

“No distrito de Beja houve uma clara tendência de descida e no Algarve uma ligeira subida”, referem os dados, baseados nos números do Instituto Nacional de Estatística, apontando que os distritos onde houve tendência de subida e onde foi mais significativa foram Vila Real e Porto.

Fazendo uma análise por regiões NUTS III, Luísa Loura salienta que a situação é “especialmente preocupante” no Alentejo Litoral que, apesar da tendência de descida da taxa de suicídios, apresenta ainda os valores mais elevados”.

Como razões para este fenómeno no Alentejo, Adalberto Dias de Carvalho apontou o clima, o isolamento. “Até há uma coincidência cronológica que quando sopra o vento suão aumenta a taxa de suicídios”.

Além disso, explicou, a força da religião no Sul do país não é tão forte como no Norte, contando que nos anos 50/60, “o Alentejo era considerado terra de missão para a Igreja”.

“Era quase como ir para África para cristianizar aquelas populações que inclusivamente não tinham rituais religiosos, como no Norte em que havia procissões”, que foram sendo introduzidas progressivamente no Sul do país.

Segundo o investigador, as tendências suicidas tendem a ser maiores em pessoas que a sua vida familiar ou profissional fracassou.

“É importante que se fale do suicídio para que se previna, mas é preciso estar atento às causas profundas sociais, contextuais do suicídio como a pobreza, o desemprego, a violência doméstica, o bullying e atuar sobre elas.

Para o professor, “não se pode ter uma visão reducionista do suicídio”, sublinhando que “é uma responsabilidade coletiva”.

Ao longo dos últimos 45 anos, a taxa de suicídios por 100 mil habitantes situou-se quase sempre acima de 7,4, com exceção apenas no período de 1996 a 2001, referiu Luísa Loura.

Desde 2007 que o número de suicídios por 100 mil habitantes não desce abaixo dos 9, 10, acrescentou.

Suicídio é um comportamento raro que deve ser falado com “muita cautela”

A psiquiatra Ana Matos Pires defende que o suicídio é um comportamento raro que deve ser falado com “muita cautela”, alertando para o impacto enorme que este “ato sem retorno” tem nos sobreviventes.

“As temáticas do suicídio podem e devem ser faladas, a questão é a maneira como falamos delas”, disse em entrevista à agência Lusa Ana Matos Pires, membro da Coordenação Nacional das Políticas para a Saúde Mental, em particular da área do suicídio.

Para a especialista, falar de aumentos ou diminuições de taxas de suicídio deve ser feito com “muita cautela”, porque “felizmente é um fenómeno raro”.

“Sendo um fenómeno raro, basta que haja uma ou duas mortes a menos ou uma ou duas mortes a mais para haver implicações nessas taxas” que podem não ter significado em termos de saúde pública, afirmou a psiquiatra quando questionada pela Lusa se a pandemia teve impacto no número de suicídios em Portugal.

Por outro lado, é um problema de saúde pública, porque é “um ato sem retorno”, com “implicações enormes” nos sobreviventes (família, amigos, colegas de trabalho).

“Há um círculo de pessoas que são afetadas quando alguém se suicida”, sustentou a também diretora da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e coordenadora regional da Saúde Mental do Alentejo.

Apesar de “uma percentagem enormíssima” dos suicídios acontecer no contexto de uma perturbação mental e, em particular, de uma perturbação depressiva, a psiquiatra esclareceu que o suicídio não é uma doença, mas sim um comportamento.

Em Portugal, cerca de três pessoas morrem por suicídio a cada dia, e muitas mais tentam fazê-lo

Por isso, explicou, é que as alterações das taxas de suicídio devem ser avaliadas em períodos entre três e cinco anos para se poder tirar ilações.

“Não se deve comparar os suicídios em 2020 ou 2021 com 2022. Isto é uma verdade epidemiológica para todos os fenómenos raros”, sublinhou.

Neste momento, não há dados em Portugal sobre um eventual efeito da pandemia na taxa de suicídio, mas Ana Matos Pires disse “ser expectável que tenha havido um aumento dos comportamentos suicidários, muito em reação do aumento da sintomatologia da patologia depressiva”.

Para responder às temáticas do suicídio, Portugal tem o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio: “É um excelente plano que esteve muito tempo na gaveta e que o então programa para a saúde mental se comprometeu em 2019 a reativar”, o que aconteceu.

Apesar da pandemia ter desacelerado a sua implementação, o plano “não ficou parado”, tendo sido desenvolvida a “Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio” e criado o site prevenirsuicidio.pt.

Em Portugal, cerca de três pessoas morrem por suicídio a cada dia, e muitas mais tentam fazê-lo. Este fenómeno não escolhe classes, género, idade ou região geográfica.

A Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio pretende mudar atitudes em relação ao suicídio e à doença mental, aumentar a literacia em saúde mental e lutar contra o estigma e incentivar ao pedido de ajuda às pessoas em risco para reduzir o número de suicídios em Portugal.

“A melhor estratégia de combate ao suicídio é a sua prevenção”, defendeu Ana Matos Pires, frisando que, “como comportamento humano que é, o suicídio nunca será igual a zero”, devendo apostar-se no diagnóstico e no tratamento atempado e eficaz da perturbação depressiva para diminuir este fenómeno.

Deve também ter-se em atenção alguns grupos, como as forças de segurança e a população LGBTI, que estão mundialmente identificados como grupos de risco para os comportamentos suicidas e para o risco de suicídio acrescido.

Para a psiquiatra, a prevenção do suicídio não é só uma obrigação da saúde: “A saúde é muito importante no aumento da literacia e no tratamento de eventuais doenças psiquiátricas que estejam por trás da ideação suicida, mas a prevenção do suicídio é um assunto que diz respeito a nós todos enquanto sociedade”.

Atenção dada à saúde mental foi o único efeito colateral positivo da pandemia

“A saúde mental e a doença mental foram sempre os parentes pobres da saúde e, finalmente, parece que foi preciso uma catástrofe mundial para se perceber que há uma coisa que se chama saúde mental e que é preciso preservar e promover (…) e que é preciso tratar”, disse Ana Matos Pires.

Por isso, afirmou, “julgo mesmo que o único efeito secundário positivo desta pandemia foi a atenção dada a nível nacional e internacional às questões de saúde mental”.

A também diretora da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e coordenadora regional da Saúde Mental do Alentejo recordou que já havia um trabalho a ser feito nesta área e que a pandemia veio acelerar.

“A saúde mental nacional tem um plano já antigo que, por vicissitudes várias, nomeadamente pela intervenção da troika, não foi completado”, mas, disse, na pré-pandemia já havia um trabalho e uma movimentação a ser feita no sentido de se dar “uma atenção especial” a esta temática.

Uma atenção que para Ana Matos Pires é “muito merecida” porque a doença mental é “altamente incapacitante” e “interfere imenso com o funcionamento pessoal de quem está doente”.

“Eu acho que é verdade que a pandemia veio acelerar [este trabalho] e a tutela, nomeadamente a ministra da Saúde, deu a atenção que nunca tinha sido dada à saúde mental e neste momento há alterações significativas”, salientou.

“Estamos atrasados em relação àquilo que são os países mais desenvolvidos"

Apontou a legislação existente desde o passado dia 14 de dezembro de reorganização de saúde mental, afirmando que “vai efetivamente fazer a diferença”, alterando completamente a organização dos serviços no país.

Até aqui, havia o programa nacional para a saúde mental inserido na Direção-Geral da Saúde e agora existe uma coordenação nacional das políticas de saúde mental dependentes da tutela.

“Estamos atrasados em relação àquilo que são os países mais desenvolvidos da Europa nestas temáticas e julgo que estamos neste momento em condições de começar a apanhar o comboio”, disse, sublinhando que “nunca a saúde mental” teve em termos de apoios económicos o montante que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) lhe concedeu: 88 milhões de euros.

Para a psiquiatra, existe agora a obrigação de todos os que estão envolvidos nesta área de aproveitar esta “oportunidade de ouro” em termos de melhoria dos cuidados de saúde mental prestados à população, em termos da promoção, prevenção e tratamento da doença.

Analisando o impacto de dois anos da pandemia de covid-19 na população, Ana Matos Pires afirmou que “é inegável” o seu efeito negativo sobre a saúde mental.

“Já há, neste momento, dados consistentes que mostram que houve efeitos, que esses efeitos foram negativos, essencialmente notados nos jovens, sobretudo, nos adolescentes velhos e adultos jovens”, afirmou.

No início da pandemia, os sintomas foram essencialmente da linha ansiosa, depressiva e de alterações de sono, muito num contexto de reação e não propriamente de adoecer.

“Felizmente, a capacidade de adaptação do ser humano é grande e houve um desenvolvimento dessa capacidade de adaptação a uma realidade absolutamente desconhecida”, afirmou Ana Matos Pires.

O que está a acontecer atualmente, disse, “é um agravamento” nas pessoas com doença mental prévia, supondo-se que “vai haver um agravamento formal dos quadros depressivos clínicos (…) muito em resposta àquilo que vão ser os efeitos sociais e económicos desta pandemia”.

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