O corpo humano é capaz de aguentar 60 dias sem alimentos - desde que tenha acesso a água. Se não tiver esse acesso, não aguenta aquele tempo. Em Gaza escasseiam os três: alimentos, água e tempo
NA FOTO DE ABERTURA DESTE ARTIGO A família de Atef Tayeh, o bebé palestiniano de seis meses que pode ver na fotografia, fugiu do norte de Gaza para Deir al Balah, também em Gaza, devido aos ataques israelitas. A fotografia é de 12 de setembro de 2024, Tayeh estava em perigo de vida devido à má nutrição. Na Faixa de Gaza, onde Israel continua os seus ataques e bloqueia a entrada de ajuda, muitas crianças morreram devido à subnutrição e à falta de tratamento. Fotografia de Ibrahim Nofal/Anadolu via Getty Images.
NOTA DO EDITOR Não se publicam fotografias de crianças vítimas de tragédias, de acidentes, fotografias de crianças mortas. Essa é a regra. As exceções, muito raras, têm sempre de ser justificadas por um forte interesse público. Foi assim que, em 2015, vários jornais e televisões mundiais publicaram fotografias do cadáver de Aylan Kurdi, um menino sírio de três anos afogado numa praia na Turquia: essas imagens mudaram a opinião pública sobre a crise dos refugiados no Mediterrâneo. Agora, em 2025, é a fome. Em Gaza, como no Haiti, na Somália, no Líbano, no Sudão e noutros locais identificados pelo IPC – Integrated Food Security Phase Classification, a fome mata sobretudo em locais de conflitos. É por isso que hoje abrimos uma exceção e publicamos fotografias de crianças vítimas de fome em Gaza. Ponderando a tragédia humana, o respeito e a privacidade, a repulsa que elas podem provocar e a crítica atendível de leitores. Pelo interesse público da denúncia, pelo dever histórico, pela convocatória contra o desconhecimento e contra a indiferença. Todas as fotografias são de agências internacionais, que as verificaram e identificaram as vítimas. Todas fazem parte de uma realidade chocante e cruel.
Um corpo sem alimento é como um carro sem combustível, um telemóvel sem bateria, uma eólica sem vento. Fica parado, incapaz, muitas vezes ‘desligado’, morto. A privação de alimento que dá origem à desnutrição provoca muito mais do que perda de peso - incapacita o sistema imunitário e pode ser fatal. O estado de desnutrição é gradual e depende das condições prévias da pessoa, podendo ser mais acelerado em casos onde a alimentação era já parca ou a saúde debilitada.
O impacto da falta de alimento no corpo humano é rápido a aparecer, embora a ingestão de água possa, de algum modo, atrasar os efeitos colaterais desta privação alimentar. “Um adulto saudável pode sobreviver até 60 dias sem alimentos, se tiver acesso à água. Mas as crianças, os idosos e os doentes morrem muito antes, cerca de três semanas, devido à descompensação rápida de sistemas”, diz Nuno Olim, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e conselheiro regional da rede de equipas médicas de emergência da Organização Mundial da Saúde (OMS) no Médio Oriente e coordenador de trauma da OMS para Gaza. Por outro lado: “Sem alimentação adequada, o corpo humano começa a sofrer com a privação de nutrientes em poucos dias”.

Quando o corpo é privado de nutrientes ao longo de dias “entra em modo de sobrevivência”, afirma Nuno Olim, que explica que, após 24 a 72 horas sem alimento, “o organismo entra em estado de jejum metabólico, utilizando as reservas de glicogénio”, que é o açúcar armazenado no fígado e nos músculos. Mas essa “energia rápida” que é o glicogénio “esgota-se em 24-48 horas”.
Ao terceiro dia, “o corpo começa a utilizar a gordura para gerar energia”, aquilo a que se chama “cetose”, produzindo corpos cetónicos - que são produtos do metabolismo das gorduras, especialmente quando o corpo não tem glicose suficiente para usar como energia.
“Após cerca de cinco, sete dias, se não houver ingestão proteica, o corpo começa a degradar a massa muscular e os tecidos dos órgãos para manter funções vitais.” Esta degradação das proteínas chama-se “catabolismo muscular” e afeta “inclusive órgãos como o coração e o intestino”. “A taxa metabólica diminui para conservar energia” e, quando o corpo está nesta fase durante dias, “a função imunológica colapsa, abrindo portas a infeções” e “surgem edemas, porque sem proteínas plasmáticas o sangue perde a capacidade de reter líquido”. Aqui, vinca o médico, “a desnutrição já está em curso”, sendo que, se em causa estiver uma desnutrição aguda, esta “pode ser diagnosticada clinicamente em poucos dias se houver perda de peso rápida e significativa, especialmente em crianças”.

Todo o esforço que o corpo faz para dar energia a si mesmo perante a falta de combustível alimentar tem consequências diretas em si mesmo. Entre essas consequências estão, segundo Nuno Olim, défices cognitivos e problemas cardíacos.
É a partir da primeira semana que começa a ser notória uma perda de peso, podendo alguns casos de desnutrição resultar ainda em secura cutânea - por falta de nutrientes e também de hidratação - e queda de cabelo. A perda de massa muscular aumenta e pode mesmo afetar o músculo cardíaco, como revela o livro "The Biology of Human Starvation" (A Biologia da Fome Humana), escrito nos anos 50 pelo fisiologista Ancel Keys, autor do Minnesota Starvation Experiment, um estudo clínico realizado na Universidade de Minnesota entre 19 de novembro de 1944 e 20 de dezembro de 1945 - e que ainda hoje é usado como bitola para novas investigações sobre distúrbios alimentares. Este estudo mostrou que o impacto da fome extrema é muito mais do que físico - produz mesmo aumentos significativos de depressão, histeria e hipocondria.

A privação alimentar acentuada pode ainda ser um gatilho para “doenças infecciosas recorrentes”, já elas complicadas por si só mas que se podem tornar fatais quando o organismo já não tem mais força de combate. Há ainda o risco de desenvolvimento de “perturbações psiquiátricas, como ansiedade, depressão, stress pós-traumático”, e o “risco de síndrome de realimentação (potencialmente fatal) ao retomar a ingestão de alimentos”, sublinha Nuno Olim.
Apesar da capacidade de adaptação do organismo e da constante tentativa de produção de energia, “a privação crónica de alimentos durante tanto tempo causa desnutrição energética proteica severa, como kwashiorkor (edema) ou marasmo (emagrecimento extremo); sarcopenia (perda muscular), fraqueza extrema, hipotermia, queda da pressão arterial e da frequência cardíaca; anemia grave, deficiência de micronutrientes (ferro, zinco, vitamina A, etc.); diarreia persistente (por atrofia da mucosa intestinal) e maior risco de infeções fatais”, continua Nuno Olim.

À medida que as semanas passam e o corpo continua sem combustível além das suas já escassas reservas, a fraqueza é tal que entra num modo de apatia, seja emocional e comportamental, como imunitária, visto que a capacidade de combater infeções passa a ficar comprometida, aumentando o risco de morte, sobretudo em pessoas já debilitadas antes da fome. “E, eventualmente, há falência multiorgânica e morte”, diz Nuno Olim.
As crianças acabam por ser o grupo mais vulnerável a todos estes efeitos da fome no organismo, porque “têm menores reservas de energia e nutrientes”, esclarece o médico, lembrando ainda que “o cérebro em desenvolvimento é extremamente sensível à privação”, podendo, por isso, causar, “défices cognitivos permanentes”, “baixa estatura irreversível”, “atrasos no desenvolvimento psicomotor” e um “sistema imunitário comprometido para toda a vida”.

Por outro lado, a nutricionista e investigadora Helena Trigueiro alerta para outro fator: “As mulheres grávidas que sofrerem níveis de desnutrição graves vão afetar o desenvolvimento do bebé e isso terá efeitos a nível de metabolismo para a saúde da criança”. Helena Trigueiro diz que “estas crianças vão nascer num estado de desnutrição” e que, por isso, terão sempre uma saúde mais debilitada quando comparadas com “crianças saudáveis”.
Pergunta: quando a pessoa que passa fome volta a ter comida - qual é o procedimento médico? Segundo Nuno Olim, o processo de restabelecimento nutricional “deve ser cuidadoso e gradual, baseado em protocolos como os do OMS/UNICEF para tratamento de desnutrição aguda”. Este processo divide-se em três fases, sendo a primeira de estabilização, devendo acontecer entre o primeiro o sétimo dia de retoma à ‘normalidade alimentar’. É nesta fase que se deve “corrigir desidratação, hipoglicemia, infeções, distúrbios eletrolíticos” e “começar com alimentos terapêuticos 75 kcal/100 ml ou leite terapêutico diluído”, adianta o médico.
Dá-se depois a fase de transição, que ocorre entre o sétimo e o décimo quarto dia, continua o especialista, explicando que aqui acontece “a introdução de alimentos mais energéticos” e dá-se início à “monitorização contínua”.
Por fim, dá-se início à “fase de recuperação”, em que são incluídos no plano alimentar “alimentos ricos em energia e nutrientes, em várias refeições por dia”, e pode recorrer-se à “suplementação de micronutrientes essenciais”.

A nutricionista Helena Trigueiro, que também trabalha de perto com Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), diz que, a nível nutricional, é possível voltar ao “normal” depois de meses a fio de privação alimentar - há já estudos que o mostram. Mas o certo, diz, é que fiquem marcas para o resto da vida: “Já vimos que se consegue restabelecer o estado nutricional, mas o que fica para sempre é o impacto transgeracional, que se traduz em problemas de saúde óssea e muscular, na forma como o metabolismo é programado para a instabilidade alimentar”.
Além disso, destaca a nutricionista, “a relação com os alimentos, seja em quem passa fome ou para bebés de agora ou bebés de futuro”, pode também ficar comprometida, como Ancel Keys já tinha concluído nos anos 50 do século passado, cujo estudo mostrou que os participantes revelaram preocupação com a comida quando esta já não era mais escassa, apresentando ainda sinais de isolamento social.E mesmo após reabilitação nutricional, que depende de pessoa para pessoa, da sua idade, da privação a que foi sujeita, “alguns danos neurológicos e de crescimento são irreversíveis, especialmente se a fome ocorreu nos primeiros mil dias de vida (até aos dois anos de idade)”, alerta Nuno Olim, que diz que “uma criança com desnutrição grave pode precisar de dois a três meses para recuperação clínica”. Já “a plena recuperação cognitiva e física pode levar anos — ou nunca ocorrer, se as lesões forem irreversíveis”.