A história de dois irmãos e de um palácio (que está à venda) na origem da independência de Portugal em 1640

1 dez 2021, 18:00

O Palácio de Xabregas foi o local que acolheu a maioria das reuniões dos conjurados de 1640, um grupo nacionalista e revolucionário que esteve no centro do fim da dinastia filipina em Portugal. Jorge e Francisco chamavam-lhe casa, hoje é detido por um fundo de investimento e acolhe eventos culturais

Com o coração palpitante e escondidos nas sombras do movimento do Rio Tejo em Xabregas, o grupo dos conjurados caminhava até uma das salas principais do palácio dos Melo. Instigados por Francisco e Jorge, monteiros-mor do Reino, os cerca de quarenta fidalgos reuniam-se em mais uma das inúmeras juntas subversivas com um único objetivo em mente. Cumprir o 1.º de Dezembro. 

A tradição já vingava há dois anos e tinha como eixo o trabalho dos dois irmãos Melo. Francisco e Jorge, herdeiros do palácio fundado por Tristão da Cunha em 1524, são nomes que figuram pouco na memória coletiva, mas que estão umbilicamente ligados à bandeira e língua portuguesa.

Homens de confiança do Duque de Bragança, tinham trabalhos diferentes. Francisco aguardava em Santarém por uma falua ou uma fragata que trouxesse novidades do porto privativo do palácio e fazia a ponte com o Paço de Vila Viçosa. Jorge habitava no palácio que ainda hoje se mantém de pé, ainda que totalmente distinto da forma como se materializava no século XVI, e providenciava ao grupo dos 40 conjurados um local de acessibilidade ao rio.

Agora, 497 anos depois de ser fundado, o Palácio de Xabregas  encontra-se à venda por 15 milhões de euros, segundo a agência imobiliária Sotheby’s.

A entrada do Palácio de Xabregas, com os retratos de Tristão da Cunha e Pedro da Cunha

 

Revirando as páginas do passado, Joel Moedas-Miguel, investigador e cicerone lisboeta, recorda o papel destes dois irmãos que não seriam os protagonistas mais previsíveis desta história. 

Na verdade, os Melo, monteiros-mor do Reino, não tinham nada muito objetivo a ganhar com com esta revolta e com esta substituição de poder, porque o cargo que a família detinha foi um dos poucos que coroa filipina não alterou o seu titular. Portanto, a família Melo não tinha razões de queixa em relação à coroa espanhola”, explica Moedas-Miguel, acrescentando que não existe uma razão objetiva, como outras famílias tiveram, para pressionar pelo fim do domínio filipino.

Não sendo uma resposta a uma perda volumosa de rendimentos e de privilégios, Moedas-Miguel sublinha que os dois irmãos foram, sim, os fiéis depositários “de uma consciência nacional que na altura começou cada vez mais a fortalecer”, nomeadamente com as revoltas do manuelinho no Alentejo.

São eles os paladinos de uma vontade popular que se ergue e que é observável a partir do reinado de Filipe II e Filipe III de Portugal. E se o primeiro, filho de D. Isabel e neto de D. Manuel I, começou por ser amado dentro do círculo aristocrático português, o facto é que os monarcas de Espanha começaram progressivamente a desrespeitar as garantias e liberdades do povo e da nobreza, sobrecarregando a coroa portuguesa com uma série de impostos empregues no esforço de guerra ultramarino e na Europa. 

Árvore geneológica da família Melo e da família Cunha/ trabalho realizado pela PATRIMONIUM - Gestão e Promoção de Bens Culturais para a CNN Portugal

 

Nesta altura, era também nomeado Miguel de Vasconcelos para o cargo de Secretário de Estado, uma decisão tomada por Margarida de Saboia, Duquesa de Mântua e vice-rainha de Portugal. Figura polémica da história e apelidado de "traidor" pela nobreza nacionalista, Miguel de Vasconcelos implementou políticas colaboracionistas com o Reino de Espanha que fizeram aumentar os impostos e a pressão no povo, já envolto numa bolha de descontentamento.

Portugal sente-se usado nesse período e são precisamente os Melo quem interpreta essa vontade sebastiânica dentro do reino. Acabam, assim, a ser os promotores dos conjurados, uma organização muito complexa para derrubar o trono.

“Primeiro havia que convencer o Duque de Bragança que, embora carregasse consigo o peso de ser um herdeiro legitimo da coroa portuguesa, tinha, pessoalmente, muito a perder com esta iniciativa. Se tudo isto falhasse, ele era um homem morto e era um homem que perdia todos os seus descendentes, bens cargos e títulos”, afirma o historiador, enquanto caminha pela sala das batalhas do Palácio de Xabregas, onde o sol ilumina parte da coleção de azulejos do século XVII que circunda uma longa mesa de madeira. As janelas, antes banhadas pelo sal das tágides, hoje oferecem uma vista privilegiada para um ateliê de Ioga e para os guindastes amarelos endémicos da freguesia do Beato.

 

Reunião dos Conjurados de 1640/ Arquivo da Câmara Municipal de Mafra

Lá, conta que, para além do trabalho diplomático a ter com o futuro D.João IV, era necessário que os conjurados delineassem toda uma estratégia para que a nação voltasse a ser reconhecida.

“Não estamos a falar só da independência de Portugal no contexto europeu, mas de todo o Império português, portanto havia uma série de iniciativas, uma série de demandas que tinham que ser feitas e toda uma preparação para que esta revolta não caísse em saco roto. Portanto, não podia ser uma mera revolução em que se esperasse que o fim fosse desenvolvido de forma natural, não. Tinham de a preparar de forma secreta, mantendo o país unido e sintonizado com o Duque de Bragança e com todos aqueles que o viriam a apoiar no dia D”, afirma Moedas-Miguel.

Ainda por cima, dentro daquele palácio rectangular construída em T invertido, era necessário amenizar as intrigas internas, vontades unilaterais de poder e diferentes propostas de atuação. 

Por isso é que estas reuniões, que começaram de uma forma mais intensa em 1638 demoraram exatamente dois anos. Foram-se consolidando e alinhando visões diferentes e acabou por haver uma unanimidade em torno da revolta do 1.º de Dezembro”, essa característica final foi importante para que não existissem partidas em falso que colocassem em causa os longos tempos de preparação.

Curiosamente, os conjurados, ainda que fidalgos de importante causa social, nunca chegaram a ser apanhados pela coroa filipina. 

Aclamação de D. João IV como rei de Portugal, pintado por Veloso Salgado / Museu Militar de Lisboa

 

 

Assim, nas sombras do Palácio de Xabregas, o núcleo duro do grupo, do qual fazia parte Jorge Melo, mas também onde estava D. Antão de Almada, conde de Avranches, orquestraram o golpe que pôs o fim a sessenta anos de dinastia filipina. 

Há mais de 380 anos a contar desta quarta-feira, Jorge de Melo foi um dos primeiros a invadir o Paço Real, no Passo da Ribeira (hoje, onde é o Terreiro do Paço) e a conseguir chegar ao gabinete de Margarida de Saboia, onde também se encontrava “o traidor” Miguel Vaconcelos. Contam os registos históricos que Jorge foi um dos que participou na sua matança a tiro, lançando o seu corpo para junto da multidão que se aglomerava lá fora.

No meio da defenestração, do sangue e da conspiração, Jorge e Francisco acabaram aclamados pelo reino e receberam posições de relevo. O primeiro, acabou por ser nomeado embaixador em França e largou vela de Lisboa cerca de um ano após a revolução. Jorge, homem de armas, foi nomeado General das Galés de Portugal, embaixador da Catalunha e foi feito ainda membro do Conselho de Guerra.

 

Palácio passou pelas mãos do Marquês de Olhão e agora está à venda

Das salas que acolheram os conjurados, nada resta. Um olhar histórico poderia deduzir que este facto se deve ao avassalador terramoto de 1755, mas não é essa a verdade. Até porque o palácio foi muito pouco impactado por esse cisne negro. 

A razão, explica o investigador Joel Moedas-Miguel, é muito mais estética. O palácio permaneceu no seio da família Melo até o casamento de uma irmã de Jorge e Francisco com um descendente de Tristão da Cunha, o navegador que ergueu a casa senhorial, restituindo aos Cunha a titularidade original.

Foi já na posse dos Cunha que, no século XVII, o palácio recebe uma grande campanha de obras que lhe dá a estrutura sóbria e maneirista que sobrevive até aos dias de hoje. Dentro dos seus quatro pisos, a decoração remete-nos para a vida aristocrática, muito presente pelos cenários criados em azulejo de amazonas a caçar a cavalo e de passeios em jardins megalómanos.

 

Representações de cenas aristocráticas nos azulejos que circundam uma sala de baile do palácio

 

É com D. Francisco da Cunha e Melo, primeiro Marquês de Olhão e governador do Reino entre 1809 e 1820, que herda o palácio no Século XIX, que o interior das divisões é redecorado e pintado com murais neoclássicos. O quarto onde dormia com a mulher é um bom exemplo disso. No centro do teto forrado a tela pintada, uma solução pós-terramoto alternativa ao estuque, nasce uma alegoria ao casamento e ao amor. 

 

Feitas as contas a família Cunha e a família Melo aparecem ligadas ao palácio durante 500 anos, uma união que acabou por ser separada por um processo de insolvência em 2006, altura em que a casa era detida pelos Cunha Folque de Mendonça. 

Daí, explica o historiador Joel Moedas-Miguel, a casa passou para a banca e depois para o fundo de investimento Lynx proprietário até aos dias de hoje e que agora o está a vender.

A adequação da casa senhorial ao Século XXI obtém o seu expoente máximo no antigo jardim das Damas, último ponto de visita ao espaço. Se podemos imaginar uma combinação exótica de plantas e flores ao redor dos 2000 metros quadrados que compõem este salão do Palácio. Hoje, apenas o chilrar dos pássaros ecoa nas centenas de cadeiras expostas para acolher um espetáculo ou um jantar de casamento. 

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