A tomada de controlo da Nexperia pelo governo dos Países Baixos representa um marco na história da Europa e vem pôr a nu uma dura realidade: as nossas economias estão dependentes da instabilidade da produção just-in-time. Esta é uma estratégia da produção de bens que minimiza desperdício e inventário em armazém e que entrega esses bens apenas quando são necessários no processo de produção. Tanto o fornecedor como o cliente podem possuir algum stock em armazém, mas raramente (ou nunca) possui stock para lidar com disrupções de algum relevo nas cadeias de abastecimento.
Quando os Países Baixos invocaram a Lei de Disponibilidade de Mercadorias da era da Guerra Fria em setembro para assumir o controlo do fabricante de chips chinês, reconheceu algo que o velho continente gostaria de continuar a poder ignorar: a vulnerabilidade das cadeias de abastecimento globais e o quão interligadas e interdependentes estão. No entanto, quando a Nexperia foi vendida em 2021, pouca oposição se fez sentir, mesmo sabendo que poderia ser um risco geopolítico. Outra era, onde a Europa ainda tinha a sua inocência pré-2022.
A Nexperia produz chips essenciais para automóveis e eletrónica de consumo, fornecendo componentes para praticamente todos os principais fabricantes de automóveis europeus. No entanto, poucas semanas após a intervenção, fabricantes como a Volkswagen, a Volvo, e a Nissan alertaram para possíveis paralisações na produção. Na indústria automóvel, onde as cadeias de abastecimento just-in-time operam com margens extremamente reduzidas, mesmo uma escassez marginal pode causar grandes perturbações. A falta de um único componente poderá inviabilizar tornar todo o processo de fabrico. Por Portugal, a fragilidade das cadeias já se sente na Bosch, com a Autoeuropa a lançar avisos.
A situação da Nexperia era um desastre duplo à espera de acontecer.
Primeiro, porque o CEO da empresa, Zhang Xuezheng, tinha uma estratégia para transferir propriedade intelectual e capacidades de produção para a China. Esta medida teria afetado drasticamente a capacidade tecnológica europeia. No entanto, durante muitos anos, os líderes europeus aceitaram esse risco porque contestá-lo significava questionar a arquitetura fundamental da fabricação globalizada. Os políticos europeus preferiram durante décadas a conveniência à segurança. O mesmo com a energia e a Rússia, e a defesa e os Estados Unidos.
Segundo, porque os componentes produzidos pela Nexperia nem são assim tão sofisticados. São componentes do “dia-a-dia”, módulos essenciais para outros produtos mais complexos. Algo tão em baixo na cadeia de valor não deveria estar em risco na Europa.
Desde que a Toyota foi pioneira no just-in-time na década de 1960, a indústria transformadora tem estado obcecada em copiar a receita. Os fornecedores entregam componentes não dias ou semanas antes, mas horas antes da montagem, em casos extremos. Esta abordagem reduz custos, permitindo margens de lucro significativas, mas também cria uma cadeia de vulnerabilidades. A indústria farmacêutica, que também se rege pelo just-in-time, demonstrou isso na pandemia do COVID-19 de forma gritante. Foi necessário um grande esforço para que as cadeias de abastecimento voltassem ao normal. O mesmo aconteceu com a escassez de semicondutores que ocorreu entre 2020 e 2023: as cadeias de abastecimento operam com base em suposições de estabilidade perpétua e sem planos de contingência. Imagine as cadeias de abastecimento modernas como um piano afinado a tocar uma música continuamente. Caso desafine, é trabalhoso voltar a afiná-lo e tardará até que a música volte a tocar como antes.
A intervenção da Nexperia foi necessária, mas reativa. A segurança real requer previsão: reservas estratégicas de semicondutores, relações de fornecimento diversificadas e investimento na capacidade de fabricação de chips europeus. A Europa iniciou esses esforços, mas eles chegaram tarde. A indústria de semicondutores, já consolidada e com forte carga geopolítica, exige ações decisivas.
Mais fundamentalmente, a Europa deve repensar a sua relação com a produção just-in-time e a sua exposição geopolítica. A crise da Nexperia não é uma exceção. É mais um aviso de que o nosso mundo interligado funciona com base em pressupostos cada vez mais distantes da realidade. Até agora, a Europa comportou-se como se as cadeias de abastecimento fossem infalíveis, mas já sente as reações em cadeia resultantes dessa falibilidade.
Obrigado aos amigos que me ajudaram a escrever este texto. Não sou um perito em cadeias de abastecimento, mas considero o debate sobre o tema urgente. Tenho algum conhecimento da quebra de cadeias de abastecimento na construção de reatores nucleares. Acho importante que o tema das cadeias de abastecimento europeias esteja na ordem do dia