Todos os especialistas em direito rodoviário ouvidos pela CNN Portugal garantem que os novos ecrãs de grandes dimensões violam o artigo 5.º do Código da Estrada e que perante acidentes rodoviários a autarquia pode ter de indemnizar os acidentados. PS já exigiu a "retirada urgente" destas infraestruturas das localizações problemáticas
A Câmara Municipal de Lisboa (CML) pode vir a ser responsabilizada financeiramente pelos acidentes rodoviários que ocorram junto aos novos ecrãs gigantes publicitários. O alerta é deixado por vários especialistas em direito rodoviário contactados pela CNN Portugal, que garantem que, desde que se comprove a relação de causalidade entre o acidente e a distração provocada pelos anúncios luminosos, os acidentados podem recorrer aos tribunais para pedir uma indemnização à autarquia liderada por Carlos Moedas.
"Se se provar que o nexo de causalidade com a colocação destes painéis, que criaram uma perturbação no condutor, na sua condição e uma desatenção, sem dúvida que podem pedir uma indemnização à Câmara e têm muitas possibilidades de ser favorável", garante o advogado José Rocha.
O especialista alerta, no entanto, que apesar das boas hipóteses que os condutores têm de virem a ser ressarcidos, estes serão processos morosos e que inevitavelmente se vão arrastar por vários anos. José Rocha explica que casos como estes, em que estamos a falar de entidades públicas, são analisados pelos tribunais administrativos, neste caso no Círculo de Lisboa, e "infelizmente os tribunais administrativos ainda são mais lentos do que os tribunais judiciais", explica. "Isto demoraria muito tempo, demoraria sempre no mínimo cinco anos", indica, garantido que "a Justiça aqui não está a funcionar".
Também o advogado Ricardo Lucas corrobora que os condutores poderão avançar para processos de indemnização contra a CML, mas alerta, com base na sua experiência, que "as Câmaras muito raramente são responsabilizadas". O advogado, em linha com José Rocha, salienta que estes processos nos tribunais administrativos podem "demorar cerca de dez anos" e não são assim tão usuais dado que esta morosidade "desmotiva naturalmente as pessoas de intentar qualquer ação legal contra uma Câmara Municipal".
Já o advogado João Maia de Oliveira, embora considere que a CML pode ser responsabilizada nestes casos, alerta que "poderá haver uma situação de concorrência de culpas", em que se conclui que a autarquia é dada como somente responsável por uma percentagem de culpa no sinistro, porque "há uma responsabilidade que pende sempre sobre o condutor que independentemente daquilo que estiver a acontecer à sua volta tem de assegurar a condução de forma prudente e adequar a velocidade do veículo às condições da via e do meio envolvente, o que inclui um fator de publicidade ou algo que o distraia".
João Maia de Oliveira considera que dificilmente poderá existir um caso em que a imputação total e culpa recaia sobre a CML: "Quando olhamos para um sinistro temos sempre aquela tendência de dizer que o A é culpado e o B não é culpado, mas às vezes não é bem assim. Ou seja, um pode ser culpado, mas só em 70% ou 60%, e o outro a 30% ou 40%." O mesmo se aplicaria à autarquia, se "se vier a produzir prova no sentido em que o fator de distração, a nível de publicidade, provocou ou contribuiu para o resultado do sinistro", explica o especialista em direito rodoviário, acrescentando que "podemos atribuir numa situação de concorrência de culpa 30% a 40% à CML ou 20% ou 10% ou 80% ou 70%, dependendo de cada caso".
Então a CML teria de indemnizar os envolvidos, mas João Maia de Oliveira esclarece que esta ação dificilmente partirá dos condutores, porque "quem é demandado é sempre a seguradora". Através de "um exemplo prático fácil", o advogado explica que se alguém tiver um acidente sob o efeito de álcool, não é o condutor que é chamado a pagar os danos, mas sim a seguradora, que por sua vez ativará uma "cláusula de exceção no contrato de seguro que é a condução sob efeito de álcool ou uma infração grosseira das regras de trânsito" e depois vai exercer o "direito de regresso sobre o assegurado", querendo isto dizer que se a seguradora pagar 30 mil euros numa primeira instância, posteriormente será reembolsada pelo condutor no mesmo valor. O mesmo aconteceria no caso de um acidente motivado pelos novos painéis publicitários, ou seja, as seguradoras começariam por avançar com o montante para cobrir os custos e posteriormente avançaria com a ação judicial contra a CML.
O advogado Tiago Coluna corrobora esta "situação de concorrência de culpas" e lembra que é de "difícil produção de prova que a responsabilidade de um acidente rodoviário se deve imputar a alguém que não seja o condutor".
Ricardo Lucas discorda, lembrando que, circunscrevendo a discussão aos acidentes de viação, "as seguradoras usam tudo o que possam utilizar para imiscuir-se de responsabilidades". "Portanto, teria de ser o particular a intentar uma ação contra a CML e a seguradora a dizer que o acidente foi por distração do condutor por causa do painel".
O que esperar da providência cautelar do ACP?
Os quatro advogados entendem que os novos painéis publicitários digitais de grande formato são uma violação do artigo 5.º do Código da Estrada, justificando que o objetivo primordial da publicidade é captar a atenção dos condutores e que dadas as localizações e dimensões destes ecrãs vão "desviar a atenção dos condutores", confluindo assim com o dito artigo 5.º, como destaca Ricardo Lucas. Para além disso, José Rocha entende que estas novas estruturas vão ainda contra o Artigo 3.º, em que se pode ler que "as pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis".
Quanto à providência cautelar interposta pelo Automóvel Club de Portugal (ACP) para que os ecrãs sejam desligados, não surjam novos e para que futuramente sejam realocados, José Rocha diz que é "importante que tenha sido intentada para que se perceba qual é a opinião dos tribunais sobre este tema" e "poderá ser um bom início para a resolução deste tema". No entanto, o especialista lembra que para a providência cautelar ser decretada de imediato são necessários "argumentos mais fortes" do que a violação de dois artigos do Código da Estrada. "Se o ACP conseguir provar que, num curto espaço de tempo, existem sinistros, existem danos, para as pessoas, principalmente, para a segurança pública, sem dúvida que esta providência cautelar poderá ter aqui algo favorável", antecipa, lembrando que "entre 30 a 60 dias pode haver uma decisão". Caso contrário, "vai dois ou três meses ou até mais, porque o que temos estado aqui a falar, e que é muito, tem de ser esmiuçado e explanado de forma mais substancial", considera o advogado.
Perante a situação atual, os especialistas em Direito Rodoviário entendem que a CML foi o principal responsável, mas não foi o único. João Maia de Oliveira lembra que, em última instância, e no seu entendimento, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ASNR) tem responsabilidade de "ter uma palavra" sobre a instalação destes painéis, porque é a entidade a "quem incube a Segurança Rodoviária".
"Não há dúvidas sobre a responsabilidade objetiva da Câmara Municipal de Lisboa quanto à competência regulamentar sobre esta matéria", argumenta Tiago Coluna, defendendo que futuramente há três medidas que devem ser seguidas: "Diminuir o número de painéis publicitários", "aumentar a distância entre painéis" e "não colocar painéis em locais com elevado tráfego rodoviário e em vias com elevado registo de sinistralidade".
Já José Rocha acompanha o ACP, que tem dito que o Instituto da Mobilidade e dos Transportes deveria ter emitido um parecer quanto a esta nova instalação junto às principais artérias rodoviárias da cidade de Lisboa: "O IMT tem uma missão muito clara, que é a regulamentação técnica de licenciamento das infraestruturas rodoviárias, não sendo a única entidade responsável, deveria emitir um parecer, favorável ou desfavorável, à colocação deste tipo de painéis, sem dúvida alguma."
"O IMT, tanto como a Infraestruturas de Portugal e a Câmara Municipal de Lisboa, são as entidades responsáveis", defende José Rocha.
O advogado não descarta também culpas à Infraestruturas de Portugal (IP), sendo certo que a entidade não tem jurisdição nas estradas em causa, mas recai sobre a IP "a responsabilidade maior de coordenação e fiscalização dos transportes terrestres, porque são uma entidade superior". "A legislação não diz isto desta forma efetiva [quanto à IP], mas o que diz é que tem de haver uma coordenação e fiscalização", esclarece José Rocha, que garante: "Para mim, as três entidades tinham de chegar a um consenso e verificar se realmente havia a possibilidade deste contrato ser efetivado e se estes painéis não perturbavam a segurança rodoviária."
Para José Rocha é inegável que "houve um falha grave" em todo este processo de instalação dos novos painéis publicitários e que o IMT, a IP e a ANSR deveriam apresentar pareceres públicos, sendo eles favoráveis ou desfavoráveis: "O IMT tinha uma função de emitir um parecer e acho que esse parecer devia vir a público, se não o fizeram na altura, façam-no agora, menos mal. Já não é tão bom, mas façam-no, devem emitir um parecer sobre isto."
O PS/Lisboa revelou, entretanto, através de comunicado e depois de reunião da CML, que o gabinete de Carlos Moedas avançou para a instalação dos painéis "sem ter pedido parecer ou avaliação às entidades competentes na área da segurança rodoviária".