Só faltou Portugal nos Óscares que estiveram em todo o lado ao mesmo tempo

13 mar 2023, 06:25

Filme da dupla conhecida como "os Daniels", "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo", arrecadou sete prémios e foi o grande vencedor da noite, seguido por "A Oeste Nada de Novo". Portugal acabou por não conseguir o Óscar. Spielberg, Cate Blanchett e "Os Espíritos de Inisherin" também não levaram qualquer estatueta para casa

O trocadilho faz-se sozinho: este é o filme que, nos últimos meses, ganhou quase todos os prémios em todo o lado ao mesmo tempo, dos prémios das guildas profissionais às escolhas dos críticos. De tal forma que já ninguém tinha dúvidas de que "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" sairia do Dolby Theatre como o grande vencedor da noite dos Óscares. E assim foi: das onze nomeações, o filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert venceu sete, incluindo as mais apetecidas: Melhor Filme e Melhor Realização, mas também Argumento Original (dos Daniels), Atriz (Michelle Yeoh), Ator Secundário (Ke Huy Quan) e Atriz Secundária (Jamie Lee Curtis). "Já dissemos tudo o que podíamos dizer esta noite", admitiu Daniel Kwan, quando subiu ao palco para receber o prémio final. Não havia, de facto, muito mais a dizer.

"Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo" é uma comédia de ficção científica, dois géneros habitualmente pouco amados pela crítica em geral e pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em particular. No entanto, de alguma forma, esta história de uma família de imigrantes chineses que tem uma modesta lavandaria e se vê a braços com problemas com as finanças, acabou por conquistar os americanos. Talvez isso aconteça porque, para além dos metaversos, das lutas de kung fu e de uma estética de videogame, este filme retrate algo de fundamental no cinema americano: a importância da família. Há um casal vencido pela rotina. Há uma filha que não corresponde aos sonhos da mãe. Há uma mãe que se julga uma falhada. Há decisões que foram tomadas e que parecem agora irreversíveis - mas pode ser que se consiga dar um jeitinho num universo paralelo. Até porque não há limites ao que uma mãe está disposta a fazer para salvar a sua filha.

Veja aqui a lista de todos os vencedores

Na noite em que Portugal não ganhou o Óscar e em que os discursos de 45 segundos praticamente só deram tempo para agradecer às mães dos premiados (as mães que incentivaram, que apoiaram, que já morreram, que ficaram em casa a torcer, foram muitas as mães homenageadas nesta cerimónia), não houve nenhum ator a bater noutro, não houve envelopes trocados e praticamente não houve surpresas. Até os discursos pareceram, na sua maioria, desinspirados e algo insonsos. O apresentador, Jimmy Kimmel, arrancou algumas gargalhadas à plateia, Lady Gaga apareceu de t-shirt, Rihanna voltou a encantar (a maternidade, outra vez, a ganhar pontos).

Michelle Yeoh é a primeira mulher não-branca a vencer o Óscar de Melhor Atriz em 20 anos. A última tinha sido Halle Berry, que deu um sentido abraço à premiada (AP)

Se a vitória de "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" era esperada - a única dúvida que restava era mesmo se Michelle Yeoh iria ou não derrotar Cate Blanchett (nomeada por "Tár") -, também não se pode dizer que os quatro Óscares recebidos por "A Oeste Nada de Novo" fossem uma grande surpresa.

O filme realizado por  Edward Berger, que retrata os sonhos perdidos da juventude alemã que combateu na Primeira Guerra Mundial, adapta o romance de Erich Maria Remarque que já foi adaptado ao cinema, em 1930, por Lewis Milestone (tendo vencido então dois Óscares). Era óbvio, depois da estrondosa vitória nos Bafta, que seria eleito o Melhor Filme Internacional, e também pareciam consensuais as vitórias nas categorias de Fotografia, Design de Produção e Banda Sonora Original. Mas é importante assinalar o feito, tratando-se de um filme alemão que já tinha conseguido a proeza de estar nomeado em nove categorias. Este é também o filme que mais Óscares deu à Netflix, superando "O Irlandês" de Martin Scorsese e "Roma" de Alfonso Cuarón.

"Mãe, acabei de ganhar um Óscar"

“Mãe, acabei de ganhar um Óscar”, disse, em lágrimas, o ator Ke Huy Quan dirigindo-se à sua mãe de 84 anos. O ator, que todos conhecemos como o miúdo que acompanhava Indiana Jones na sua aventura no "Templo Perdido” (1984), recordou que quando chegou aos Estados Unidos, vindo do Vietname, esteve num campo de refugiados e, afinal, depois de tudo, conseguiu chegar a este palco e ganhar o Óscar de Melhor Ator Secundário pelo seu papel em "Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo".

“A minha jornada começou num barco. Passei um ano num campo de refugiados. E, de alguma forma, acabei aqui no maior palco de Hollywood. Dizem que histórias como esta só acontecem no cinema. Eu não posso acreditar que isto está a acontecer comigo. Este - este é o sonho americano!". “Temos que acreditar nos nossos sonhos. Eu quase desisti dos meus”, disse Ke Huy Quan, de 51 anos, por entre lágrimas. Foi também por isso bastante comovente que tenha sido Harrison Ford a anunciar o prémio para o Melhor Filme - e Spielberg na plateia, a aplaudir.

"A tua história será diferente da nossa"

Foram poucos mas muito significativos os discursos das mulheres ao longo da noite. Sarah Polley não conseguiu esconder a surpresa ao vencer na categoria de Melhor Argumento Adaptado com "A Voz das Mulheres". A argumentista e realizadora canadiana, de 44 anos, pediu à Academia para não ficar ofendida por juntar as palavras "mulheres" e "voz" no mesmo título: este filme, disse, é sobre  "como pessoas que não concordam num assunto conseguem encontrar um caminho livre de violência, falando mas também ouvindo-se umas às outras".

O filme é baseado no romance de Miriam Toews a partir da história verdadeira de um grupo de mulheres de uma comunidade menonita que, entre 2005 e 2009, foram drogadas e violadas pelos homens da comunidade. As raparigas e mulheres - de todas as idades - acordavam ensanguentadas e doridas mas não se lembram com exatidão do que tinha acontecido. Diziam-lhe que era tudo da sua imaginação ou que o responsável era um demónio. Até ao momento em que os homens são apanhados e detidos. E as mulheres têm que decidir o que fazer a seguir. Este é o momento de fazer ouvir a sua voz, até aqui calada. No final, a narradora diz à filha que carrega no ventre: "A tua história será diferente da nossa". "Esta é a nossa promessa e o nosso compromisso", afirmou Sarah Polley.

Vencedora na categoria de Melhor Guarda-Roupa pelo filme “Black Panther: Wakanda Para Sempre”, Ruth Carter tornou-se a primeira mulher negra a conseguir ganhar dois Óscares e dedicou o prémio à mãe, falecida poucos dias antes. "Estudei, escavei, lidei com adversidades numa indústria que por vezes não se parecia muito comigo", disse, agradecendo à Academia por nomear "a super-heroína que é a mulher negra".

Também Michelle Yeoh, premiada com o Óscar de Melhor Atriz pela sua interpretação em "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" e a primeira mulher asiática a ganhar nesta categoria, sublinhou essa falta de diversidade na indústria e nas listas de premiados: "Para todos os rapazes e raparigas que se parecem comigo esta noite, este é um farol de esperança e possibilidades. Esta é a prova de que os desejos se realizam", disse, empunhando a estatueta. "E, senhoras, não deixem que ninguém vos diga que estão fora do prazo", disse a atriz que tem 60 anos e uma longa carreira, que teve o seu ponto alto no filme "O Tigre e o Dragão", de Ang Lee.

Jamie Lee Curtis foi a primeira mulher a subir ao palco, logo no início da noite, para receber o Óscar de Melhor Atriz Secundária, derrotando grandes adversárias, como Angela Bassett (por "Black Panther: Wakanda Para Sempre")  e a sua companheira de filme, Stephanie Hsu.

Aos 64 anos, Lee conseguiu a sua primeira nomeação com a interpretação de uma inspetora das finanças que se revela afinal mais perigosa do que parece em “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”. Apesar de estar sozinha em palco, Jamie Lee Curtis afirmou que a sua vitória foi para as “centenas de pessoas” que ao longo da carreira a ajudaram a chegar a este momento - e recordou os pais, os atores Tony Curtis e Janet Leigh. Na conferência de imprensa que deu a seguir, a atriz lançou um grito por maior igualdade de género e disse que quer ver “mais mulheres em qualquer lugar, a qualquer hora, ao mesmo tempo” a vencer. 

Dois prémios para "A Baleia"

"Então é a isto que se parece o multiverso", comentou Brendan Fraser ao subir ao palco para receber a (esperada) estatueta de Melhor Ator pelo seu papel em "A Baleia". Neste filme, Fraser interpreta um professor de literatura que come compulsivamente e sofre de obesidade mórbida, vivendo por isso fechado em casa e evitando os olhares dos outros. No momento em que percebe que poderá não viver muito mais tempo, decide reatar a relação com a filha adolescente, que não via há oito anos. Para interpretar este homem gigante, que mal se consegue movimentar, Fraser precisou de uma grande dose de caracterização - na verdade, do ator, praticamente só reconhecemos os olhos tristes e a voz. E foi por isso que a "A Baleia" levou para casa dois Óscares: o de Melhor Ator e de Melhor Caracterização.

"Comecei neste negócio há cerca de 30 anos. As coisas não foram fáceis para mim", recordou, bastante emocionado, o ator de 54 anos, cuja carreira parecia ter estagnado há mais de uma década. Fraser agradeceu ao realizador do filme, Darren Aronofsky: "por me lançar uma tábua de salvação criativa e transportar-me a bordo deste navio". E depois juntou ao agradecimento também o argumentista Samuel Hunter: “Vocês expuseram os vossos corações do tamanho de uma baleia para que pudéssemos ver as vossas almas”.

“Tem sido como uma expedição de mergulho ao fundo do oceano", mas, com a ajuda de todos, Fraser conseguiu manter-se à tona, concluiu, referindo-se ao seu percurso e a todo o reconhecimento que tem tido nos últimos tempos devido a este filme. 

Os grandes derrotados

Partiam para esta noite entre os filmes mais nomeados, mas “Os Fabelmans” e “Os Espíritos de Inisherin” saíram do Dolby Theatre de mãos a abanar. O primeiro tinha seis nomeações, o segundo nove, mas não conseguiram uma única estatueta.

Nada de muito novo para Steven Spielberg, que estava indicado para três categorias diferentes no filme “Os Fabelmans” – Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Argumento Original. O cineasta norte-americano tinha aqui a sua 22.ª nomeação para os Óscares, sendo que apenas por três vezes conseguiu subir ao palco (duas por “A Lista de Schindler” e uma em “O Resgate do Soldado Ryan”). Havia alguma expectativa, uma vez que "Os Fabelmans" é uma biografia ficcionada do realizador e, ao mesmo tempo, uma declaração de amor ao cinema. Ou, como disse Jimmy Kimmel na abertura, "Hollywood está com tanta falta de ideias que Spielberg teve de fazer um filme sobre ele próprio".

Já Martin McDonagh, apesar de não ser um estreante, tem muito menos experiência em ouvir outro nome que não o seu na indicação para vencedor. Com as três nomeações de “Os Espíritos de Inisherin” para Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Argumento Original conseguia a sua sexta indicação em categorias de maior relevância, depois de ter estado nomeado em duas categorias com o filme “Três Cartazes à Beira da Estrada” e uma por “Em Brugges”. Antes de tudo isso, em 2006, experienciou a sua única vitória, com a Melhor Curta-Metragem em Live Action, “Six Shooter”.

Estas derrotas vão para lá dos realizadores, e também chegam aos vários atores indicados – os dois filmes tinham um total de seis nomeações nas quatro categorias de representação, que acabaram por ir quase todas para “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”.

E foi na representação que chegou a grande derrota para "Tár", filme de Todd Field, que se baseia, em grande parte, na soberba interpretação de Cate Blanchett, que faz o papel de uma maestrina, e que valeu à película um total de cinco nomeações, entre as quais a de Melhor Filme e a de Melhor Argumento Original. A atriz australiana acabou por perder para Michelle Yeoh, com “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” a levar novamente a melhor. 

"The Boy, the Mole, the Fox and the Horse" foi o vencedor na categoria de Melhor Curta-Metragem de Animação, o que significa que ainda não foi desta que um filme português ganhou um Óscar. Mas, seja como for, "Ice Merchants", realizado por João Gonzalez, foi o primeiro filme português nomeado para um Óscar. E isso já é um uma proeza, como dizia Gonzalez, numa conversa telefónica com a CNN Portugal, poucos dias antes da cerimónia. "Aconteça o que acontecer, nós já sentimos que ganhámos. Só o facto de estarmos nomeados e estarmos aqui já é uma vitória".

Ou como disse o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, na sua mensagem de incentivo para o realizador português: "Os Óscares são um começo, não são um fim".

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