"CODA" é o melhor filme mas a bofetada de Will Smith leva para casa o Óscar de momento mais insólito

28 mar 2022, 07:00

Com três prémios, o filme de Sian Heder foi o grande vencedor da noite e é o primeiro filme de uma plataforma de streaming (Apple+) a ganhar o Óscar de Melhor Filme. "O Poder do Cão" e a Netflix saem derrotados. "Duna" foi o mais premiado. E Will Smith ganhou o seu primeiro Óscar depois de ter dado, em direto, uma bofetada a Chris Rock. E não foi um momento de humor

As mãos de Liza Minnelli tremiam. A voz também. Cinquenta anos depois do lançamento de "Cabaret", o filme com que ganhou o único Óscar da sua carreira, sentada numa cadeira de rodas e bastante debilitada, a atriz de 76 anos subiu ao palco do Dolby Theatre, em Los Angeles, acompanhada por Lady Gaga, para anunciar o Óscar de Melhor Filme. E maior do que a surpresa de ver ali Liza Minnelli só mesmo a surpresa de a ouvir dizer "CODA".

"CODA - No Ritmo do Coração" venceu o Óscar de Melhor Filme e acabou por ser o grande vencedor da noite com um total de três prémios, incluindo Argumento Adaptado e Ator Secundário (Troy Kotsur). Um pequeno filme, quando comparado com rivais como "West Side Story", "O Poder do Cão" ou "Dune - Duna", que começou a dar nas vistas no Festival de Sundance do ano passado e que, nas últimas semanas, foi ganhando cada vez mais destaque, "CODA" não chegou a ter estreia comercial nas salas de cinema e está apenas disponível na Apple TV: ou seja, para além de tudo, "CODA" é também o primeiro filme de uma plataforma de streaming a ganhar o Óscar de Melhor Filme - o que torna a derrota de "O Poder do Cão" um bocadinho ainda mais amarga.

“Obrigado à Academia por nos deixar fazer história”, disse o produtor Philippe Rousselet no discurso final. Outro produtor, Patrick Wachsberger, agradeceu à Academia por “reconhecer um filme de amor e família neste momento difícil”.

CODA significa "child of deaf adult(s)" e é a expressão usada para referir os filhos de pessoas com problemas de audição. Escrito e realizado por Sian Heder, "CODA" é um remake do popular filme francês "A Família Bélier" (2014) e conta a história de uma rapariga que sonha ser cantora (interpretada por Emilia Jones) e da sua relação com os pais, ambos surdos (interpretações de Troy Kotsur e de Marlee Matlin), e o irmão também surdo (Daniel Durant).

"É incrível estar aqui, nesta viagem. Nunca acreditei que isto pudesse acontecer", disse em língua gestual Troy Kotsur, o ator surdo-mundo que ganhou o Óscar de melhor Ator Secundário. Sempre com um chapéu na cabeça - ele diz que gosta de usar o chapéu porque lhe protege os olhos das luzes e permite-lhe ver bem os intérpretes -, Kotsur explicou que fazer este filme foi "transformador como artista e como ser humano" e agradeceu à comunidade CODA por tudo o que lhe ensinou.

A vitória de Kotsur acontece mais de 30 anos depois de Marlee Matlin ter feito história em 1987 ao ganhar o prémio de melhor Atriz por "Filhos de um Deus Menor", tornando-se a primeira pessoa surda a ganhar um Óscar de interpretação. Kotsur agradeceu ainda a "todos os maravilhosos palcos de teatro surdo onde tive oportunidade de desenvolver o meu ofício como ator", e agradeceu à realizadora do filme, Sian Heder, por juntar o "mundo surdo e o mundo ouvinte". E, por fim, dedicou o prémio à "comunidade surda, à comunidade CODA e à comunidade com deficiência", concluindo: "Este é o nosso momento".

Uma noite para esquecer para "O Poder do Cão"

O filme "O Poder do Cão" partiu para esta noite de Óscares como o grande favorito. Tinha 12 nomeações, incluindo em quase todas as categorias ditas principais, e uma carreira invejável de nomeações e premiações anteriores. A realizadora neo-zelandesa Jane Campion tinha passado 12 anos sem fazer qualquer filme e voltava a estar sob os holofotes com um épico com ecos dos westerns clássicos e magníficas paisagens, que é ao mesmo tempo um filme feito de silêncios e de pequenos gestos. Quatro atores estavam nomeados: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee. E a Netflix tinha grandes esperanças de conseguir, finalmente, levar para casa o Óscar de Melhor Filme.

Mas à medida que a noite avançava, a grande consagração de "O Poder do Cão" tardava em chegar. Até já só restar a desilusão. No final, apenas Jane Campion venceu na categoria de Realização.

Campion, de 67 anos, ganhou depois de em 1993 ter estado nomeada com “O Piano”. É apenas a terceira mulher a ganhar o Óscar de Realização, depois Kathryn Bigelow ("Estado de Guerra") e Chloé Zhao ("Nomadland").

“Estou orgulhosa de ter vencido esta noite, pelo meu filme, pela minha equipa e pelo meu elenco, mas também por ser outra mulher que será seguida por uma quarta, uma quinta, uma sexta, uma sétima e uma oitava”, disse. “Estou muito animada com o fato de isso estar a acontecer rapidamente agora. Nós precisamos disto. A equidade importa.”

Fraco consolo para quem tinha tantas expectativas. No seu discurso, Campion agradeceu a Thomas Savage, autor do romance publicado em 1967 que esteve na origem do filme. “Ele escreveu sobre a crueldade, querendo o oposto – bondade”, disse Campion. “Adoro realizar porque é um mergulho profundo na história, mas a tarefa de criar um mundo pode ser esmagadora. Em 'O Poder do Cão', trabalhei com atores que me sinto comovida de chamar de amigos. Eles enfrentaram o desafio da história com a profundidade do seu talento.”

Com esta vitória, é a primeira vez que temos dois filmes realizados por mulheres nas duas categorias maiores: Jane Campion premiada como realizadora de "O Poder do Cão" e Sian Heder, que realizou "CODA".

Will Smith: o melhor ator com o pior momento

Com uma cerimónia curta - durou pouco mais de três horas -, com discursos pouco inspirados, muitos momentos pré-gravados e sem piadas memoráveis, é muito provável que esta noite seja lembrada sobretudo por causa do estranho incidente protagonizado por Will Smith e Chris Rock.

Tudo aconteceu durante um momento humorístico em que Rock se dirigiu a Jada Pinkett Smith e, vendo o seu cabelo rapado, disse que mal podia esperar por vê-la a fazer o "G.I. Jane 2". O marido, que estava sentado ao lado dela, não gostou da piada, levantou-se, subiu ao palco e tentou dar uma estalada a Rock, que ficou tão surpreendido que mal conseguia articular uma palavra. Smith voltou ao seu lugar mas continuava zangado: "Deixa o nome da minha mulher fora da tua boca", vociferou, mas com um palavrão pelo meio. O auditório ficou em silêncio. Seria um sketche encenado ou estaria Smith realmente zangado?

Tudo nos faz pensar que sim, que o ator perdeu a cabeça e o motivo é simples: não gostou que gozassem com a aparência de Jada, uma vez que ela sofre de alopécia, uma condição que causa repentina perda de cabelo. 

Pouco depois, já mais calmo, Will Smith voltou ao palco para receber o Óscar de Melhor Ator pelo seu papel em "King Richard - Para Além do Jogo". Foi a sua terceira nomeação e a primeira vez que ganhou um Óscar. Este é um filme de que é também produtor e que é um projeto pessoal seu. O filme conta a história de Richard Williams, o determinado pai das irmãs Venus e Serena Williams, e da sua luta para educar as filhas, tornando-as campeãs de ténis. O ator elogiou o homem que o inspirou para este papel e chamou-lhe "um feroz defensor da sua família".

"Eu sei que para fazer aquilo que nós fazemos temos de ser capazes de sofrer abusos, de ter pessoas malucas a desrespeitar-nos e nós temos que sorrir de volta e dizer que está tudo bem", disse no seu discurso. "Eu quero ser um recipiente de amor. Quero ser um embaixador desse tipo de amor, cuidado e preocupação", afirmou por entre muitas lágrimas e pedindo desculpa à Academia. "Pareço um pai maluco como chamaram a Richard Williams, mas o amor faz-nos fazer coisas malucas”, justificou-se. No entanto, entre tanto choro, não encontrou palavras para pedir desculpas a Chris Rock. E concluiu: "Espero que a Academia me volte a convidar".

Os vencedores esperados

Como esperado, "Dune - Duna" dominou nas categorias técnicas - ganhou seis prémios (Fotografia, Montagem, Design de Produção, Som, Banda Sonora Original e Efeitos Visuais). Infelizmente, quatro deles foram entregues numa cerimónia privada que aconteceu antes da verdadeira cerimónia. Pela primeira vez, a Academia de Hollywood decidiu atribuir oito prémios em privado, inserindo depois esses momentos pré-gravados na transmissão televisiva, numa tentativa de tornar o programa mais dinâmico (uma tentativa falhada, diga-se de passagem, apesar de pela primeira vez a cerimónia ter tido três apresentadoras).

A decisão foi contestada por muitos dos elementos da Academia, incluindo a atriz Jessica Chastain, que anunciou imediatamente que iria prescindir da passadeira vermelha para poder assistir à entrega destes Óscares, adivinhando já que o seu filme "Os Olhos de Tammy Faye" poderia ganhar o Óscar de melhor Caracterização. Quase no final da cerimónia, e também como esperado, a própria Chastain iria receber a sua estatueta como Melhor Atriz - foi o seu primeiro Óscar, depois de duas nomeações. No filme de Michael Showalter, Jessica Chastain interpreta o papel de Tammy Faye, uma cantora evangelista que fez sucesso na televisão americana nos anos 70 e 80.

Igualmente sem surpresas, Ariana DeBose foi a vencedora do Óscar de melhor Atriz Secundária com a sua Anita, de "West Side Story", repetindo o feito de Rita Moreno que também tinha ganho um Óscar com a sua interpretação desta personagem na cerimónia de 1962. Num momento especial, as duas atrizes juntaram-se ao realizador Steven Spielberg na passadeira vermelha.

Ariana DeBose não escondeu a alegria no momento de subir ao palco: "Imaginem uma rapariga no banco de trás de um Ford Focus branco", disse. "Olhem-na nos olhos, uma mulher de cor queer, abertamente queer e afro-latina, que encontrou a sua força na vida através da arte. E é isso que acredito que estamos aqui para comemorar."

Outras das vitórias previsíveis foi a do Óscar de Argumento Original para Kenneth Branagh. “Esta é uma enorme honra para a minha família e uma grande homenagem a uma cidade incrível e às suas pessoas fantásticas”, disse Branagh sobre "Belfast", o seu filme mais pessoal até agora, explicando que este filme representa "a busca da alegria e da esperança perante a violência e a perda.”

O filme quase todo a preto-e-branco é baseado nas memórias de infância de Branagh em Belfast, na Irlanda do Norte, num período de grande oposição e violência entre protestantes e católicos. "Belfast" adopta o ponto de vista do pequeno Bill (interpretação de Jude Hill) e mostra-nos a sua incompreensão perante os problemas dos adultos. As interpretações são dos veteranos Judi Dench e Ciarán Hinds (estavam ambos nomeados mas não ganharam) e ainda de Caitríona Balfe e Jamie Dornan. 

Quem era muito esperado mas não apareceu foi o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. A guerra na Ucrânia foi lembrada por alguns dos participantes na cerimónia - inclusivamente por Francis Ford Coppola, que subiu ao palco com Al Pacino e Robert De Niro para assinalar os 50 anos de "O Padrinho" - e chegou a merecer um minuto de silêncio. Mas, apesar de tudo, não houve discursos inflamados contra Putin nem palavras muito emocionadas para o drama humano dos ucranianos. Esperava-se um pouco mais de Hollywood neste momento. 

Esta é a lista de todos os premiados nas 94ª edição dos Óscares:

Melhor Filme - "CODA - No Ritmo do Coração"

Realização - Jane Campion ("O Poder do Cão")

Melhor Ator - Will Smith ("King Richard - Para Além do Jogo")

Melhor Atriz - Jessica Chastain ("Os Olhos de Tammy Faye")

Ator Secundário - Troy Kotsur ("CODA - No Ritmo do Coração")

Atriz Secundária - Ariana De Bose ("West Side Story")

Argumento Original - "Belfast"

Argumento Adaptado - "CODA - No Ritmo do Coração"

Documentário - “Summer of Soul (Or, When The Revolution Could Not Be Televised)” 

Filme Internacional - "Drive Mu Car - Conduz o Meu Carro"

Filme de Animação  - "Encanto"

Fotografia - "Dune - Duna"

Montagem - "Dune - Duna"

Canção - Billie Eilish, "No Time to Die" ("007 - Sem Tempo para Morrer")

Banda Sonora Original - Hans Zimmer, "Dune - Duna"

Design de Produção - "Dune - Duna"

Efeitos Visuais - "Dune - Duna"

Guarda- roupa - "Cruella"

Som - "Dune - Duna"

Caracterização - "Os Olhos de Tammy Faye"

Curta-Metragem de Animação - "The Windshield Wipe"

Curta-Metragem de Ficção -  "The Long Goodbye"

Curta-Metragem de Documentário -  "The Queen of Basketball"

 

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