CRÓNICA || Há teias que se cosem, acordos que se cozinham, contas que se orçamentam e linhas vermelhas que por vezes alaranjam e outras vezes rosam. Cada um lerá como quer esta crónica do jornalista António Vieira, espécie de "caricatura em prosa" sem coincidências nem incidências parlamentares
Quando ouviu o rugir cilíndrico do carro de Pedro a estacionar, Luís saiu para o receber. Afinal era o seu convidado de honra para o jantar de mais logo.
O aperto de mão foi cordial, mas pouco firme. Pedro entrou, escolheu criteriosamente o sofá e sentou-se no de cor rosa colocado à esquerda da sala e foi direto ao assunto em tom assertivo.
- Já me sabe dizer qual a ementa do mais importante jantar do ano?
O Luís ainda pouco experiente nestes cozinhados avançou a resposta em caldos de galinha, que é como quem diz a verdade e só a verdade, mas sem ferir suscetibilidades.
- Preparei um prato que muito aprecio, mas os temperos são ao gosto de cada um. Por isso mesmo pedi para vir aqui antes de colocar as especialidades, quero dizer, as especiarias. Será de comer e chorar por mais. Diria mesmo, irrecusável aos paladares mais exigentes. Mas antes queria falar-lhe do vinho.
Luís sabia que o néctar adoçaria a predisposição de Pedro para o que se seguia.
- Inicialmente pensei num tinto encorpado de casta vinhão, mas sei que não seria do seu agrado. Em vez de um vinho monocasta, talvez um Touriga Franca com Carbernet Sauvignon, esta última tão ao seu gosto. Que lhe parece?
- Não me oponho, mas o vinho não pode ter mais de 35 anos.
- Combinado
- E o que vai servir para o jantar?
- Lombo de porco com arroz selvagem. É um prato tradicional no nosso meio e este acompanhamento dá-lhe um toque de modernidade. De novos tempos, quero dizer.
Pedro não gostou deste último aparte de Luís que continuava a dissertar sobre a ementa.
- Pedi ao Quim do Hiper para matar um porco. Ele fica com 2% do suíno que sempre lhe dá para uns chispes.
- 2%, porquê? O homem tem uma vara a que já perdi a conta.
Mas Luís estava determinado em ajudar o Quim na criação suína e elaborou a justificação.
- Não só lhe dou agora 2% do porco como para o jantar do próximo ano e no seguinte dou outro tanto. Ele precisa de engordar os leitões, só assim teremos bom lombo para o futuro.
Pedro estava manifestamente incomodado com a conversa. Já gostava pouco do Quim do Hiper e agora ainda lhe ia dar colo.
- Desculpe Luís, mas isso não posso aceitar. Se o porco fosse do Manel do talho vá que não vá, mas do Quim do hiper!
Entre a irredutibilidade do Pedro e o desejo de ajudar o Quim, Luís lá avançou uma segunda proposta.
- Pronto, fica só com 1% por jantar e não se fala mais nisso.
Pedro ficou calado. Amuado enterrou-se ainda mais no sofá num longo e confrangedor silêncio. Olhou depois a mesa já colocada onde reluzia o serviço laranja em tons de rosa. Exclamou em tom inquisitivo:
- Tantos lugares? Quem mais foi convidado para o jantar?
Luís começava a perder a paciência com as impertinencias de Pedro. Afinal era ele quem oferecia o repasto na sua própria casa. Conseguiu resgatar para a face e tom de voz a bonomia que o caracterizava para preparar a resposta sem demonstrar ansiedades que afloravam. Afinal, a presença de Pedro era essencial para o sucesso do jantar que queria servir. E assim respondeu em tom monocórdico sabendo que não estava a dar nenhuma novidade.
- Vem o Paulo Prof, o Manel Polícia, O Pedro D’Armas e a Joana Justiça.
Fez uma pausa para acrescentar dramatismo ao que se seguia.
- E vem ainda os que o Pedro e o André convidaram. O Tó Scut e a Maria da Luz. E já que me referi ao André, deixe-me dizer-lhe que ele fica a comer na cozinha dos fundos, porque se tem lugar à nossa mesa, no dia seguinte conta o que foi dito e o que ficou por dizer. Estão todos confirmados, só não sei se vem a Maria Doutora.
A conversa parecia terminada ainda que não o estivesse. Luís e Pedro sabiam-mo bem. O convidado lançou um olhar enigmático sobre o anfitrião da serventia que mais parecia uma boda. Levantou-se do sofá e deu um passo na direção de Luís, para logo a seguir dar novo passo em sentido contrário o que fez com que ficasse no mesmo sítio.
Luís perguntou-lhe com (só) aparente desinteresse.
- Então, vem ao jantar?
Ao que Pedro respondeu.
- Não sei, depois digo-lhe.