O Orçamento mereceu críticas de diversos partidos, até de quem como o PS viabilizará (pela abstenção) o documento. O primeiro-ministro recusou “receber lições” e entende as críticas como um “vestir da camisola dos partidos”
A votação do Orçamento do Estado (que, pela já anunciada abstenção socialista, está de antemão viabilizado e aprovado na generalidade) só acontecerá na terça-feira, mas esta segunda houve um debate da proposta do Governo em plenário. A primeira intervenção coube, claro, ao primeiro-ministro e Luís Montenegro veio assegurar aos deputados que este Orçamento para 2026 é o orçamento “do crescimento, da justiça e da consolidação”, prometendo “resolver os problemas concretos das pessoas”. Prometeu, ainda, Montenegro um Orçamento para “transformar Portugal”, com “menos impostos” e com “mais investimento”, um Orçamento do qual foi retirado “tudo o que não devia estar”.
O primeiro-ministro agradeceu (não precisando de referir o PS para referir o PS) a “responsabilidade” dos partidos que permitem a viabilização do Orçamento, partidos que “asseguram a normalidade democrática” e que cumprem, segundo o governante, “a promessa que fizeram aos portugueses”. Mas isto não os compromete ao documento: “Contrariamente ao que é tantas vezes afirmado, a aprovação do Orçamento não torna os partidos que o fazem corresponsáveis pela governação”. Quanto aos que votam contra, Montenegro pede que estes não “tentem não criar dramas artificiais que só comprometam a estabilidade”, nomeadamente “criar emprego, gerar riqueza, pagar melhores salários e melhores pensões, salvaguardar e reforçar o Estado social”. E lembra (por diversas fará esta ressalva) que o OE para 2026 “não agravará nenhum imposto”.
Falaria em seguida de imigração e congratulou-se por ter “acabado com as manifestações de interesse” que foram uma porta “escancarada” pelo PS para a entrada de imigrantes, porta que veio “quadruplicar o número de imigrantes” e criar um “caos” migratório. O objetivo é hoje “claro” para Montenegro: “Não há dignidade sem regras e acolhimento sem responsabilidade”. “E os ilegais, como é que vai ser?”, pergunta o primeiro-ministro, para logo responder à pergunta que fez: “Simples, devem regressar ao seu país”.
André Ventura falou posteriormente, no primeiro pedido de esclarecimento. Foram cinco minutos ao ataque do líder da oposição. “Há dias que me pergunto se o senhor primeiro-ministro vive neste país em que nós vivemos. Se vive e se conhece os portugueses para quem fala. Portugal é uma referência? Só se for de bandalheira e de desleixo no mundo inteiro. No salário mínimo, no descontrolo da imigração, nos preços dos combustíveis. É só aqui que referência”, arrancou. E prosseguiu: “O que quer fazer é isto: dar com uma mão e tirar com a outra, como nos sete anos do PS. Dizia-se que se ia baixar o que quer que fosse e carregava-se no IVA ou nos impostos indiretos. O António Costa a engordar e o povo a emagrecer. Depois chegou o senhor primeiro-ministro e disse que não íamos aumentar impostos nenhuns. Mas o Governo prevê arrecadar em 2026 mais 187 milhões de euros com o ISP, o imposto sobre os combustíveis. Os senhores vão sacar dinheiro aos portugueses na gasolina e no gasóleo. E têm de dizer isso”.
Ventura pede então ao primeiro-ministro que olhe para as galerias. “Sabe quem é que está ali?”, pergunta. E responde: “Não são ciganos nem imigrantes nem os coitadinhos do asilo. Aqui estão polícias, guardas, bombeiros. Olhe para eles. Por uma vez na vida, faça um orçamento que não tenha os ‘RSI’ desta vida. Que não mantenha os subsídios aos asilados. Cortem tudo isso, olhe para quem trabalha por este país e diga-lhes que vamos ter um orçamento feito para eles”.
E é aqui que por um longo tempo não falaremos de Orçamento mas falaremos, sim, de Salazarismo. A provocação até chega de Montenegro, lembrando declarações recentes de Ventura — idênticas a outras que antes fizera — que apelavam à necessidade de haver “três Salazares para pôr isto na ordem”. Primeiro, Montenegro assegura que “olha nos olhos de todos os portugueses independentemente da sua condição e da sua profissão”. “É minha obrigação tratá-los com igual objetivo, que é dar-lhes melhores condições de vida e de lhes garantir futuro.” Depois, traz Salazar à contenda. “Eu vivo em Portugal e ando na rua em Portugal e tenho memória — saudade não tenho — do Portugal de há mais de 51 anos. Se o senhor deputado quer três salazares, é uma opção sua. Mas não é a minha. Este país hoje é mesmo uma referência de estabilidade económica, financeira, política e social.”
Ventura modera o isco e não larga o assunto “Salazar”. Indigna-se. Pede “defesa da honra”. “Pessoal ou da bancada?” — pergunta Aguiar Branco. “Da bancada”, responde Ventura, que nunca falou em nome da bancada na intervenção de abertura. “O senhor primeiro-ministro veio a este debate com o objetivo de não responder a nenhuma das minhas questões. Mas o pior é dizer que esta bancada tinha saudades do tempo da ditadura e do tempo em que não éramos uma democracia. E que o senhor não tinha saudades disso, que nós é que éramos saudosistas do regime anterior”, referiria o deputado. Mas quem pede um Salazar, ou vários, não morre de saudades pelo Estado Novo? Não. Não Ventura, nas palavras de Ventura. “Não tenho saudades nenhumas de nenhum tempo anterior àquele em que eu tinha nascido”, esclarece. Para depois mais confundir: “Mas sei que se tivéssemos um, dois ou três salazares havia menos corrupção neste país. E se acha que a melhor forma de debater é dizer que temos saudades do tempo anterior ao 25 de Abril, isso afeta-nos no nosso sentido democrático. Este partido cresceu na luta democrática. Não tenho saudades nenhumas do tempo anterior, tenho saudades de um tempo em que quem governava respeitava Portugal”.
Ataque, contra-ataque. Montenegro não deslarga o assunto Salazarismo. “Não vou dar-lhe nenhuma lição sobre pensamento político e cívico, senhor deputado. Vou apenas partilhar este meu. Do meu ponto de vista a corrupção combate-se democraticamente. Combate-se no estrito respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos. A ditadura, ela própria, é corruptiva da liberdade. E a ditadura não combate a corrupção, a ditadura é ela própria a corrupção”, atira o primeiro-ministro, sob aplausos fortes e duradouros das bancadas que suportam o Governo — e de outros parlamentares, até à esquerda.
Parecia encerrado o assunto Salazar, na paz do cemitério do Vimieiro, mas ainda havia uma intervenção de Hugo Soares, o líder parlamentar do PSD, com estocada em Ventura, aparentemente definitiva. “A grande questão de um, dois ou três Salazares é que nesse tempo o senhor nem tinha tido tempo para estar aqui e dizer o que disse.”
E agora, sim, falaremos de Orçamento
José Luís Carneiro, secretário-geral socialista, quis deixar Salazar fora desta discussão e assegurou o que já antes assegurara: o PS vai abster-se e viabilizar, assim, este Orçamento, “honrando a palavra que deu aos portugueses e ao Governo, contribuindo para a estabilidade do país”. Mas deixou também um aviso à governação, Carneiro: passado o Orçamento, o Governo fica sem nenhuma “desculpa para não cumprir os seus compromissos”. E mais disse o líder socialista: viabilizar não é não discutir, ou alterar, o documento. Mas isso fará em “sede própria”. E fora da sede própria promete “combate político”. Porque este não é um “Orçamento do PS” e porque este Orçamento tem um “pecado original”, o de não “haver nele credibilidade” ou “ambição para o país”, nomeadamente quanto à Saúde, Habitação “e resposta aos mais jovens”.
Montenegro agradece ao socialista Carneiro pela viabilização do Orçamento, mas tal como o PS não se responsabiliza por ele, também o Governo “não quer uma corresponsabilização do PS”, pois viabilizar “nada tem que ver com futuras decisões de política pública”. Depois da gratidão, a pancada: “Este Orçamento não é do PS, não é mesmo. Por isso é que não aumenta impostos. Por isso é que promove reformas”.
A seguir a José Luís Carneiro seguiram-se debates, ou bate-bocas, tal a dureza retórica do primeiro-ministro, com diversos líderes partidários. Mariana Leitão, da Iniciativa Liberal, encontrou logo uma relação entre o Orçamento de 2026 e outros, socialistas, que no passado o PSD criticou: “É que empobrece o país”. Ainda segundo Leitão, o Governo promete “alívio” mas “cobra mais”. “O país não precisa de promessas, o país precisa de resultados. O Governo reclama que baixa impostos, mas a realidade mostra o contrário — nunca o Estado arrecadou tanto. Chamar a isto alívio fiscal é enganar o país”, atacam os liberais pela voz da líder. Para Mariana Leitão, Portugal “está adiado” com este Orçamento. “Até quando é que vamos adiar Portugal?”
Ora, na hora de responder, o primeiro-ministro admite que tem “dificuldade” em fazê-lo. “Até porque não é possível ter resultados já. Só se a senhora deputada tiver uma varinha mágica.” Assim, para Montenegro, o discurso crítico de Mariana Leitão e da Iniciativa Liberal “é mais próprio de lados mais extremos e não fica bem à IL, está a radicalizar a IL”. No futuro, o primeiro-ministro espera que os eleitores façam “a sua apreciação” da posição dos liberais, que têm tido um “discurso político absolutamente irrealista”. “Se fosse do Bloco de Esquerda ou PCP ainda compreendia”, remata Montenegro, matando três coelhos de uma cajadada só.
A esquerda sentiria a cajadada e retorquiu. Montenegro não referiria o Livre mas até foi o Livre quem se pronunciou primeiro. O porta-voz Rui Tavares diz no plenário que o Orçamento de Montenegro, que já tem garantias de aprovação, “é o maior ataque da autonomia do Parlamento” porque impede quase, ou “esvazia” mesmo, a negociação na especialidade. “O Livre não se abstém e não se demitirá de ajudar as pessoas, para que as pessoas possam ter casa, para que haja uma economia que funcione, para que haja uma saúde que cuide”, assegura Tavares. E esvazia uma bandeira do Governo, a do não aumento de impostos, e até de descida, neste Orçamento: “É fácil dizer que há impostos que descem quando são os pobres a carregar com a máquina do Estado”.
Montenegro não perdoa na resposta, acusando Tavares de em legislaturas socialistas “ter tido uma cumplicidade tão grande com a política fiscal e com os impostos indiretos”. Quanto à dificuldade que os partidos como o Livre sentirão para introduzir medidas suas, ou por si propostas, na especialidade, o primeiro-ministro diz que um Orçamento não é um “repositório de tudo e um par de botas” e se todos os partidos quiserem introduzir medidas, passaria a ser no fim de contas “uma confusão de políticas públicas”. “Há outros instrumentos para apresentar durante o ano as iniciativas que entenderem e vocês não têm de estar sempre à espera do Orçamento para isso”, conclui Montenegro.
De seguida Paulo Raimundo, secretário-geral comunista, defendeu que o Orçamento da AD é mera “propaganda”, que o que traz são “borlas fiscais para grandes empresas”. Ainda segundo Raimundo, o Orçamento o que consegue, consegue-o “à custa dos serviços públicos” e, tal como o Pacote Laboral, “é uma declaração de guerra aos jovens e às mulheres”. “O Orçamento é mau por aquilo que ele tem e porque é política desastrosa para quem trabalha. Quem permitir que este Orçamento vá para a frente é cúmplice — e mais cedo ou mais tarde vai ter de responder aos trabalhadores”, atira.
Na resposta, Montenegro garante que o seu Governo “não fez tudo mas fez o mais importante” e que a visão económica e social do PCP é, ela sim, “irrealista”. E não se coaduna com a realidade dos números: “Portugal foi o país em que os rendimentos dos trabalhadores mais subiram pela diminuição dos impostos e pela valorização dos salários”. Ironicamente, o primeiro-ministro lembraria que “de eleição em eleição” os comunistas vêm perdendo assento parlamentar. “Tendo descrito tantas maldades e estando o país tão mau, como é que o PCP vem de eleição em eleição a impor este desastre e desaire e ninguém reconhece que é essa a realidade do país?” E diz a Raimundo que “alguns comunistas, olhando para o programa e execução deste Governo, sentem-se tentados a votar no Governo — e cada vez mais sinto que é o que vai acontecer no futuro”.
Já Mariana Mortágua, regressada ao cargo de deputada esta segunda-feira, criticou o Governo por “dizer que não podem aumentar estruturalmente as pensões” mas, depois, “baixa os impostos sobre os lucros das grandes empresas”. O primeiro-ministro considera que o discurso de Mortágua é “demagogia gritante”, nomeadamente quanto aos impostos dos portugueses e aos lucros das grandes empresas: “Não há transferência do IVA que os portugueses pagam no supermercado para as empresas”, assegura. E rematou à esquerda e a todos: “Não recebemos lições de ninguém”.
Críticas à esquerda e direita. Montenegro compreende: estão só a vestir "a camisola dos partidos"
Numa segunda ronda de questões ao Governo, o Chega, através de Pedro Pinto, primeiro, e Marta Silva, depois, critica o Orçamento por este fazer cortes “de 12 milhões no transporte de doentes não urgentes”, não incluir verbas e, assim, “dignidade”, para “quartéis de bombeiros ou para associações humanitárias”, além de chamar “eficiência” aos cortes que realiza na Saúde — tratando-se para o Chega de “loucura disfarçada de boa gestão”. No lado do Partido Socialista, Sofia Pereira aponta aos jovens, a quem a AD “não foi capaz de cumprir as promessas que fez”, e a como é que estes vão “confiar no Governo se não têm casa para viver”, enquanto o Governo “entrega as casas à especulação sob a falsa promessa de habitação pública”. O também socialista Porfírio Silva apontaria aos professores, “cuja situação piora de ano para ano”, e Susana Correia, ainda do lado PS, às grávidas: “Continuamos a assistir ao encerramento de urgências e isso não pode transmitir confiança às mães”.
Entre questões várias, num total de 34 pedidos de informação, Isabel Mendes Lopes, do Livre, declarou que Portugal, na Habitação, “tem as casas mais sobrevalorizadas da Europa” — o que podia ser diferente se o Governo tivesse regulado “o fundo de emergência para a habitação que foi proposto pelo Livre”. Já Mário Amorim Lopes, da Iniciativa Liberal, resolveu colar este Orçamento do PSD a anteriores orçamentos socialistas, pois segundo ele “mudaram-se os protagonistas mas as políticas continuam a ser as mesmas”. Sobre as acusações de “radicalização” que Montenegro fez ao discurso de Mariana Leitão, Amorim Lopes é claro: “Somos radicais na defesa da ambição que temos. Se for para fazer mais do mesmo já temos PS e PSD”.
Luís Montenegro respondeu quase telegraficamente às questões dos vários deputados, lamentando a “descrença” com que falam do Orçamento do Estado para 2026 enquanto “tónica geral”. “Mas há razões para acreditar que as vossas intervenções estão relacionadas com o sentimento de vestirem a camisola dos partidos”, antecipa.
Na Saúde promete “trabalhar mais em soluções do que lamentações e dar respostas aos utentes”, recusando a “retórica exagerada” de que hoje há mais bebés a nascer fora dos hospitais: “É uma percentagem muito reduzida, não podemos generalizar ou estigmatizar o Serviço Nacional de Saúde”. Quanto à Segurança, ainda mais telegráfico que na Saúde, Luís Montenegro defendeu que “não é verdade que não estejamos a fazer nada sobre isso”. Nas Finanças, e sobre a carga fiscal, lamenta que uma Iniciativa Liberal “em trajetória descendente” exija menos carga — “nós também queremos menos” —, mas primeiro o Governo tem de “inverter a tendência de crescimento”. “E só depois tomar as medidas políticas que podem reproduzir na vida real das pessoas a carga fiscal e contributiva”, defende o primeiro-ministro no debate.
Nas respostas, e na Habitação, Montenegro promete “melhorar a oferta pública”, complementada com “construção privada”. E na Educação promete um “enorme compromisso” com a escola pública, uma escola, diz, que será mais “tranquila” e mais “focada na aprendizagem, porque é esse o caminho certo”.
Voltou-se à imigração no debate do Orçamento do Estado. A deputada Cristina Rodrigues, do Chega, lembraria os “marroquinos” que deram à costa, “meteram-se a milhas e ninguém sabe deles” para questionar o Governo sobre quantos imigrantes foram repatriados nos últimos tempos e se “vai investir num programa de reimigração”. Em resposta, Montenegro admitiu que gostaria que já existisse uma nova polícia de fronteiras “completamente instalada” e que a mesma já poderia existir (lembra que há até “uma sede”) se os partidos, nomeadamente o Chega e o PS, “tivessem aprovado esta proposta anteriormente”. Promete ainda dotar a política migratória de ferramentas que permitam “o rápido retorno de imigrantes” aos países de origem.
A discussão do Orçamento de 2026 continua nesta terça-feira, com plenários marcados para as 10h00 e 15h00. Intervirão o ministro de Estado e das Finanças, Miranda Sarmento, o ministro da Economia e Coesão Territorial, Castro Almeida, a ministra do Trabalho e Segurança Social, Maria do Rosário da Palma Ramalho, e a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho. E segue-se a votação. O voto favorável das bancadas que suportam o Governo, PSD e CDS-PP, e a anunciada abstenção do PS garantem a aprovação, mas ainda não se sabe como irá votar o Chega.
Depois de votado na generalidade, arranca na quarta-feira a apreciação na especialidade, na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública.