O vírus é tão seletivo que até distingue o Real Madrid do Real Massamá

23 jun 2020, 09:11
Marcelo Rebelo de Sousa, Fernando Medina, Ferro Rodrigues, António Costa e Fernando Gomes e

Geraldinos & Arquibaldos LXXXV

Tivesse de eleger uma característica particularmente irritante nas elites portuguesas e escolheria isto de se olhar com sobranceria para o resto do país e com a subserviência para tudo o que vem de fora.

É uma característica tão irritante que, na verdade, são duas: a altivez em relação à «província», ou à periferia, em contraste com o fascínio para com «o estrangeiro».

Na última semana, para o anúncio a «final 8» da Liga dos Campeões em Lisboa, juntaram-se para a fotografia nada menos do que as três principais figuras do Estado, mais três ministros e outros representantes.

Juntos, cantaram vitória numa cerimónia desproporcionada.

Entendamo-nos: é mau para Lisboa receber «o melhor torneio de verão de sempre», como titulava por estes dias o jornal espanhol «Marca»?

Não, não é.

Em todo o caso, apesar de ser de sublinhar o feito diplomático da Federação Portuguesa de Futebol, não é tão bom como nos querem vender. Nem merecedor de tanto deslumbramento, numa altura em que as escolas estão fechadas há mais de três meses e em que os profissionais de saúde merecem melhor prémio do que a dedicatória de uns jogos de futebol à porta fechada, aludida pelo primeiro-ministro – o novo dos reconhecimentos, que veio substituir os aplausos à varanda.

O maior dos paradoxos desta conquista tem que ver com o anfitrião não ter o direito ao maior benefício de quem acolhe qualquer grande competição. Em agosto, não haverá milhares de adeptos de futebol a encherem as ruas, os estádios, os hotéis e restaurantes.

Caso contrário, as autoridades poriam deliberadamente em causa o esforço de confinamento que o país fez ao longo da pandemia e acrescentariam um enorme fator de risco para a recuperação.

A região de Lisboa concentra 85 por cento dos novos casos de covid-19 em Portugal no último mês, mais do que triplicou o seu número de infetados em dois meses (de 5093 a 22 de abril para 16 926 a 22 de junho) e nos próximos dias ultrapassará o Norte como a região com mais casos confirmados em Portugal.

Atendendo à situação sanitária da capital e arredores, mesmo o argumento da promoção internacional do país a médio prazo pode tornar-se mais num risco do que numa oportunidade.

As comitivas e jornalistas internacionais têm o seu impacto, é certo, porém, um eventual descontrolo da pandemia dentro de um mês e meio ou surto significativo será amplificado por todo o mundo, tendo o efeito contrário ao pretendido e comprometendo a imagem de Portugal como destino turístico.

Contudo, há também um paradoxo mais pequeno, para lá deste difícil equilíbrio entre vantagens económicas e segurança sanitária.

Tem que ver com o facto de a organização desta «final 8» ter começado a ser disputada em março e abril, como afirmou publicamente o Presidente da República, cuja ânsia em se associar e dar em primeira mão boas notícias é cada vez mais evidente à medida que se aproximam as eleições.

Logo após a originalidade de Portugal ter decidido disputar só uma das suas duas Ligas profissionais, já no início de maio a FPF cancelou qualquer hipótese de haver uma «final 8» no Campeonato de Portugal. Ou sequer uma minimalista «final 4», com apenas três jogos entre os vencedores das quatro séries, de modo a ressalvar o mérito desportivo das subidas à II Liga.

Ou seja, enquanto disputávamos com avidez a final 8 dos gigantes, cancelávamos a final 8 que era devida aos pequeninos.

Decidiu-se por decreto subir os líderes de duas séries e coartar o direito a disputar o que quer que fosse aos líderes das outras duas. Sem equilíbrio ou justiça, a decisão deixou uma imagem de desvalorização a uma competição com 72 equipas, continuada com o descaso aos protestos destes pequenos clubes.

À falta de quem notasse essa diferença de tratamento entre «final eights», pronunciou-se Rúben Amorim, talvez por ainda ter fresco na memória o esforço de quem treina e joga no Campeonato de Portugal.

Não deixa de ser revelador isto de a única voz com eco sobre o assunto ter sido a do treinador do Sporting, que por outras palavras salientou esta evidente incongruência:

O vírus é tão seletivo por cá, que até distingue o Real Madrid do Real Massamá.

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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.

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