«DRIBLE DA VACA» - Opinião de Bruno Andrade
Noite fria e chuvosa em Lisboa. Não havia paciência para enfrentar o trânsito (cada vez mais caótico) no regresso para casa. Resolvo fazer um compasso de espera num famoso e movimentado centro comercial.
Dou uma volta aqui e outra ali. Namoro algumas vitrines. Sem qualquer foco. Sem muito interesse. De repente, me recordo de procurar algo muito específico que há dias havia decidido adquirir.
Não era um compra simples. Era praticamente um desafio. Com pouca margem de manobra para traçar uma estratégia mais rebuscada, observo com calma o movimento da loja antes de entrar. Deixo ficar quase vazia.
Entro muito discretamente. Evito chamar atenção. Cabeça sempre baixa. Faço uma rápida vista de olhos para reconhecer o ambiente e determinar o local exato da minha investida cirúrgica. Tudo é muito ágil. Acontece em poucos segundos.
Encontro aquilo que procuro. Pego sem nem sequer pensar duas vezes. Saio andando na ponta dos pés. Só não escondo por completo o apetrecho ligeiramente grosso e retangular para evitar ser acusado de tentativa de roubo. Imagina a vergonha?
De longe, vejo o caixa e noto apenas dois vendedores. Quem escolher? Era impossível determinar a melhor fila. Achei por bem ficar "no meio" (um pé em cada fila). Arrisquei. Claramente me deixei ser conduzido pela sorte.
Calhou de ser um atendente novato e disposto a seguir minuciosamente todo o protocolo de venda. Tinha muitas tatuagens, alguns anéis e cabelo repleto de gel. Novamente, desconsiderei um contato visual mais aprofundado. Talvez tenha sido até rude da minha parte.
"Tem cupom de desconto?". "Já é nosso cliente?". "Quer ser nosso cliente?". "É para presente?". "Não pretende comprar mais nada?". "Qual é a forma de pagamento?". "Deseja colocar NIF?". "Quer saco?". Foi uma orquestra sinfônica de "nãos".
Paguei, coloquei o objeto misterioso debaixo dos braços e prontamente deixei o estabelecimento. Sem deixar rastros. Apenas cinco ou seis passos depois, surge o arrependimento mais do que óbvio: deveria ter pedido um saco. Um embrulho qualquer, sei lá.
Havia então mais uma árdua missão a cumprir. Apertei o passo na direção da saída para o estacionamento. Quando estava próximo de atingir o destino final, mesmo muito perto, escuto uma tímida voz: "Bruno?".
Quis o destino que um torcedor do Sporting me reconhecesse ao pé das escadas. Sorridente. Respeitoso. Estava vestido de azul e acompanhado da esposa, também muito simpática.
Se identificou como André, disse que morava na Inglaterra e estava em Portugal para assistir ao jogo contra o Manchester City na Liga dos Campeões. Bela coincidência.
Nos cumprimentamos. Trocamos algumas (longas) palavras. Falamos da saída de Ruben Amorim e do momento atual do futebol português. Tudo isso, claro, sem fazer notar aquilo que tinha "escondido" no canto do meu corpo.
Foram segundos que duraram uma eternidade. Finalizamos a conversa com um outro (forte) aperto de mãos. Também uma foto. Antes de partir, ainda me despedi com uma brincadeira: "Parabéns pelo bicampeonato!". Rimos os três.
Foi por um triz, mas passei ileso. Achei por bem, desta vez, experimentar uma espécie de "marcha atlética" até chegar ao carro. Coração acelerado. Um pouco de suor no rosto.
Consegui. Abri a porta e logo sentei. Ali mesmo, ainda ofegante, no meio daquela escuridão, percebi que toda a epopeia foi desnecessária. Totalmente estúpida. Coloquei o recém-comprado livro no colo e folheei as primeiras páginas do "Azul até ao Fim", a biografia do ex-presidente portista Jorge Nuno Pinto da Costa.
*Bruno Andrade escreve a sua opinião em português do Brasil