Foi há um ano, a 7 de outubro de 2023, que militantes do Hamas entraram inesperadamente no sul de Israel, matando 1.200 pessoas e fazendo cerca de 200 reféns. Muitos já morreram, muitos continuam em cativeiro, e a guerra iniciada no dia seguinte por Israel contra a Faixa de Gaza, que já provocou quase 42 mil mortos, está agora alargada a outras três frentes na região. Há receios de uma ocupação prolongada do Líbano, nada indica que as tensões com o Irão amainem e reforçam-se as críticas à ineficácia da ONU, criada há quase 80 anos
Volvido um ano desde os ataques sem precedentes do Hamas a Israel, que resultaram numa guerra em Gaza que já se alargou ao Líbano, à Síria e ao Iémen, sem tréguas à vista, está a descoberto o que muitos dizem ser a disfuncionalidade e incapacidade de ação da Organização das Nações Unidas (ONU), uma questão latente que voltou a debate com a invasão russa da Ucrânia há dois anos e meio e que ganhou novo fôlego no mês passado, durante a 79.ª Assembleia-Geral da ONU.
No rescaldo dos encontros dos mais altos líderes mundiais em Nova Iorque, jornais como o El País referiram a “necessidade urgente de reformas” na organização nascida no pós-II Guerra Mundial, fundada quando muitos países asiáticos e todo o continente africano ainda viviam colonizados pelo Ocidente e quando o equilíbrio de poderes era muito diferente do atual.
“A ideia do Ocidente como garante de uma ordem mundial assente em regras tentou ser transposta para o resto do mundo com a invasão da Ucrânia [pela Rússia], mas esta imagem foi abalada pela duplicidade de critérios das potências ocidentais na hora de impedir os crimes do governo de Benjamin Netanyahu em Gaza”, ressaltou o diário espanhol em editorial. “Apesar de rejeitarem as sanções contra a Rússia, muitos países do chamado Sul Global consideraram lógico, em nome do direito internacional, condenar a invasão da Ucrânia [e] não compreendem por que razão o mesmo princípio não foi aplicado face às ações de Israel.”
Para a direção do El País, "no contexto da ofensiva israelita no Líbano, esta duplicidade de critérios mostra mais uma vez a sua face mais vergonhosa no facto de a maior parte do arsenal de Israel ser proveniente dos Estados Unidos e da Alemanha". Sim, a atual instabilidade e "a falta de vontade política dos países privilegiados pelo status quo dificultam a renovação" da ONU, "mas as guerras em curso e os novos desafios globais tornam-na mais necessária do que nunca”.
Os líderes políticos concordam, como demonstraram os discursos de presidentes como Lula da Silva ou Joe Biden na última Assembleia-Geral. Na sua intervenção, o chefe de Estado do Brasil, um dos principais líderes do chamado Sul Global, ressaltou que, “prestes a completar 80 anos, a Carta das Nações Unidas nunca passou por uma reforma abrangente” e que “apenas quatro emendas foram aprovadas, todas entre 1965 e 1973”. Quando a ONU foi fundada em 1945, referiu Lula, “éramos 51 países – hoje somos 193 [e] várias nações, principalmente no continente africano, estavam sob domínio colonial e não tiveram voz sobre os seus objetivos e funcionamento”.
Subindo ao mesmo palanque horas depois, o presidente dos Estados Unidos também sublinhou a necessidade de reformas na ONU, ainda que noutro tom. “Quero que as coisas sejam feitas em conjunto e, para o conseguirmos, temos de construir umas Nações Unidas mais fortes, mais eficazes e mais inclusivas”, disse Biden. “A ONU precisa de se adaptar para trazer novas vozes e novas perspetivas. É por isso que apoiamos a reforma e o alargamento do número de membros do Conselho de Segurança [...] para refletir o mundo de hoje, não o de ontem. E o Conselho de Segurança, tal como a própria ONU, precisam de retomar o trabalho de fazer a paz, de negociar acordos para acabar com guerras e com o sofrimento e para travar a disseminação das mais perigosas armas.”
Reforma "teria consequências negativas graves"
A necessidade de reformar a maior organização supranacional do mundo pode ser consensual, mas a natureza dessas alterações e a forma de as alcançar está longe de o ser. “Atualmente, os cinco membros com assento permanente no Conselho de Segurança (China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, o P5) encontram-se numa situação em que, embora estejam funcionalmente acima da lei, continuam a ser incentivados a comunicar no quadro do direito internacional e a seguir o direito internacional quando este é vantajoso a longo prazo, mesmo que possa ser desvantajoso no curto prazo”, explica à CNN Portugal Tamsin Paige, especialista em Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Deakin, na Austrália, e consultora da ONU.
Cinco meses após a invasão em larga escala da Ucrânia, Paige assinou um artigo académico onde ecoava as preocupações de vários especialistas ao sublinhar que, apesar de “desejável”, melhorar a Carta da ONU “é funcionalmente impossível e tentar ativamente seguir um caminho de reforma provavelmente pioraria ainda mais as coisas” no atual contexto geopolítico.
“Face à impossibilidade de reformar o Conselho de Segurança ou a Carta sem a aprovação do P5 – por causa da forma como o artigo 108.º está redigido – potenciais reformas que alterem o status quo das relações de poder eliminariam qualquer incentivo para o P5 manter o compromisso com o direito internacional”, explica Paige. “Como tal, qualquer reforma deste género, na minha opinião, teria consequências negativas graves sem qualquer garantia de melhoria.”
Há quem, face a essa “impossibilidade”, defenda que existe outra forma de melhorar a eficácia da ONU e encontrar formas de contornar a paralisação do Conselho de Segurança quando o poder de veto é usado por um ou vários dos Estados-membros do P5. É o caso de Oona A. Hathaway, professora de Direito Internacional na Universidade de Yale, nos EUA, que numa análise recente destacava que a Carta fundadora das Nações Unidas prevê possibilidades de reformas ditas informais nos seus artigos 108.º e 109.º – “reformas sem emendas” que, destaca a especialista, têm transformado a ONU ao longo da sua história, apesar de passarem muitas vezes despercebidas.
“A ideia de uma reforma sem emendas pretende trazer mudanças às Nações Unidas sem emendar a Carta, através de alterações de práticas e da interpretação evolutiva das regras existentes”, diz Hathaway à CNN Portugal, dando como exemplo a resolução “Unir pela Paz”, aprovada em 1950, em que a Assembleia-Geral “deixou claro que, se o Conselho de Segurança não exercesse a sua responsabilidade principal de manter a paz e a segurança internacionais, a Assembleia-Geral interviria e tomaria medidas”.
O exemplo mais recente remonta à última década do século XX, quando “o Conselho de Segurança decidiu criar os tribunais penais para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda – o poder de criar um tribunal desta natureza não está explícito na Carta, pelo que a criação destes tribunais exigiu uma reinterpretação dos poderes do Conselho de Segurança para o permitir”, sublinha. “Este tipo de reformas sem emendas permite que os órgãos das Nações Unidas tomem medidas para resolver problemas de formas novas sem esperar pela reforma da Carta.”
Mas nem todos concordam que tal tivesse efeitos práticos, dada a forma como a ONU e os seus diferentes organismos, à cabeça o braço político que é o Conselho de Segurança, estão estruturados e mandatados. “Este tipo de reformas sem emendas não tem qualquer fundamento jurídico nos termos dos artigos 108.º e 109.º”, contrapõe Tamsin Paige. “As regras processuais operacionais do Conselho de Segurança e da Assembleia-Geral poderiam ser alteradas através deste tipo de reformas, mas estas não se ajustariam a nenhum dos quadros jurídicos subjacentes às Nações Unidas e, como tal, não resolveriam de facto nenhuma das preocupações relacionadas com o veto do Conselho de Segurança ou a incapacidade da Assembleia-Geral em aprovar resoluções vinculativas.”
"Tão incapaz como um extintor é capaz de apagar um incêndio florestal"
Com o 80.º aniversário da ONU a aproximar-se, um grupo alargado de especialistas, académicos e profissionais passou o último ano e meio a preparar a Cimeira do Futuro, que antecedeu a AG de setembro e que, para os proponentes, representava “uma oportunidade única para lançar conversações sobre os tipos de reformas necessárias na atual arquitetura de governança global para dar resposta aos problemas complexos que a humanidade enfrenta, a começar com uma revisão da Carta da ONU”.
Num documento preparatório, intitulado “Uma segunda Carta das Nações Unidas: Modernizar a ONU para uma Nova Geração”, os especialistas invocavam as palavras de Cord Meyer, que integrou a delegação dos EUA na Conferência de São Francisco de 1945, na qual foram acordados os termos da Carta da ONU – e citavam um “artigo impressionantemente perspicaz” publicado em 1946, na revista The Atlantic, no qual Meyer considerava que “o problema fundamental em São Francisco” foi a “falta de vontade” das grandes potências que venceram a guerra em “abdicar de qualquer dos atributos do poder soberano”.
“Atualmente”, escreveu Meyer pouco depois da fundação das Nações Unidas, “a Organização Internacional é tão incapaz de lidar com as prováveis causas de outra guerra como um extintor de incêndio é capaz de apagar um incêndio florestal” – no que o grupo de especialistas diz ter sido “um triste comentário sobre a atual impotência da ONU para resolver a terrível situação na Ucrânia e outros conflitos críticos”, como a guerra em Gaza e no Médio Oriente, que não surge citada nas 100 páginas da proposta de reforma da Carta.
Há 78 anos, aquele que viria a presidir ao Movimento Federalista Mundial dizia-se convencido de que, sob o sistema acabado de criar, “qualquer desacordo é uma potencial fonte de conflito armado, e cada nação depende, para a proteção dos seus próprios interesses, da quantidade de forças armadas que detém e que está disposta a utilizar numa determinada situação”. E, num comentário presciente que serve como uma luva a 2024, acrescentava: “Devíamos francamente considerar esta condição sem lei como anarquia, em que a força bruta é o preço da sobrevivência. Enquanto continuar a existir, a guerra não só é uma possibilidade como é inevitável.”
Na Conferência de São Francisco, o então presidente dos EUA, Harry Truman, já defendia a Carta fundadora da ONU como um organismo vivo, que deveria ser “expandida e melhorada ao longo do tempo” – mas até hoje só foi revista três vezes, com a mais significativa alteração a ter lugar em 1963, quando o número de membros não-permanentes do Conselho de Segurança foi alargado de seis para 10 e o número mínimo de votos para decisões no conselho aumentou de sete para nove. “Ninguém alega que se trata de um instrumento final ou perfeito”, dizia Truman em 1945. “Não foi vertido num molde fixo [e] a evolução das condições mundiais exigirá reajustamentos.”
Os reajustamentos tardam em chegar e as propostas apresentadas pelos especialistas dificilmente encontram respaldo alargado entre os 193 Estados-membros da ONU e, em particular, entre os cinco países com poder de veto no Conselho de Segurança. O grupo que preparou a Cimeira do Futuro invoca o mesmo artigo 109.º da Carta da ONU mencionado por Oona Hathaway, referindo que este já prevê uma revisão do documento apoiada por dois terços da Assembleia-Geral e “quaisquer nove membros” do Conselho de Segurança. Mas o funcionamento da instituição faz com que isto seja uma pescadinha de rabo na boca.
“A reforma do Conselho de Segurança da ONU requer a revisão da Carta, pelo que todas as reformas substantivas do Conselho de Segurança são uma revisão ou uma emenda à Carta da ONU, mas nem todas as emendas à Carta da ONU abrangem o Conselho de Segurança”, ressalta Tamsin Paige à CNN. “Sob o artigo 108.º da Carta, qualquer revisão do documento requer a ratificação interna da alteração por todos os membros permanentes do Conselho de Segurança – e, como tal, qualquer reforma do Conselho de Segurança que implique alguma mudança significativa é suscetível de falhar nesta frente – e é muito pouco provável que os grupos com poder significativo abdiquem voluntariamente desse poder.”
A votação para expulsar a Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU após a invasão da Ucrânia já tinha demonstrado que “não há vontade política suficiente para que o coletivismo promova reformas”, defende a especialista. “Como pode então o sistema da ONU ser reformado para limitar o uso, o poder e o abuso do veto se os mecanismos informais para o conseguir carecem de eficácia funcional e os mecanismos formais para o conseguir são estruturalmente impossíveis?”
Persona non grata
Em Lisboa há alguns dias para uma série de palestras sobre a situação em Gaza, a relatora especial da ONU para os territórios palestinianos ocupados, Francesca Albanese, destacou a mesma duplicidade de critérios que o El País já tinha referido no seu editorial. Numa conferência de imprensa, lamentou que, no caso do “genocídio” do povo palestiniano por Israel, “as pessoas veem aquilo em que querem acreditar em vez de acreditar naquilo que veem”.
A chegada de Albanese a Portugal coincidiu com a decisão israelita de declarar o secretário-geral da ONU persona non grata e de impedir o acesso de António Guterres ao país, já depois de, ao longo do último ano, ter negado a entrada em Gaza ao comissário-geral da Agência da ONU para os Refugiados Palestinianos (UNRWA), Philippe Lazzarini, e de ter revogado o visto de residência à coordenadora humanitária da ONU, Lynn Hastings.
O ministro israelita dos Negócios Estrangeiros diz que Guterres se tornou persona non grata porque “ainda não denunciou o massacre e as atrocidades sexuais cometidas pelos assassinos do Hamas em 7 de outubro”. Vários discursos e publicações do secretário-geral da ONU ao longo do último ano mostram a sua condenação “inequívoca” dos ataques, como por exemplo fez na rede social X a 6 de novembro de 2023 – “Reitero a minha total condenação dos abomináveis atos de terror perpetrados pelo Hamas a 7 de outubro e reitero o meu apelo à libertação imediata, incondicional e segura dos reféns detidos em Gaza – nada pode justificar a tortura, o assassínio, os ferimentos e o rapto deliberado de civis”.
Dentro do Conselho de Segurança, apenas os Estados Unidos não condenaram abertamente Israel pela sua postura quanto a Guterres. E questionado sobre se existe precedente em declarar um secretário-geral da ONU persona non grata, o porta-voz da organização disse ver este anúncio “mais como uma declaração política do que jurídica”. “Olhando para trás na história, não me recordo, no meu tempo aqui, em 24 anos, de este tipo de anúncio ter sido feito. Houve alturas em que se verificaram situações extremamente tensas entre o secretário-geral e Estados-membros, mas não me recordo de este tipo de linguagem ter sido utilizado.”
“Guterres selou o seu destino quando lembrou que os ataques de 7 de outubro não aconteceram num vácuo”, recorda Albanese aos jornalistas em Lisboa, destacando alguns dados do seu relatório “Anatomia de um Genocídio – o falhanço do sistema internacional” que, defende, “comprovam que está em curso o genocídio” do povo palestiniano e que isso “nunca foi tão explícito como no último ano”: cerca de 80% de casas destruídas na Faixa de Gaza, todas as universidades e a maioria das escolas do enclave destruídas, ataques a hospitais que levaram a que, neste momento, apenas seis de 39 estejam parcialmente operacionais.
“Israel ataca o sistema internacional de modo tácito ou direto há anos, incluindo com ataques físicos sem precedentes contra a ONU – e não quer testemunhas”, sublinha ainda a relatora das Nações Unidas, no mesmo dia em que a CEO da BBC News publicou uma carta aberta na qual ressaltava que, ao final de um ano da guerra em Gaza, Israel continua sem “permitir a jornalistas internacionais de organizações de media, incluindo a BBC, acesso independente a Gaza”.
“Os nossos correspondentes não estão em condições de verificar os factos no terreno, de registar de forma independente para a história os acontecimentos que se desenrolam ou a dimensão do sofrimento humano", argumentou Deborah Turness. "A BBC está a apoiar o atual processo da Associação da Imprensa Estrangeira perante o Supremo Tribunal de Israel para que seja concedido aos jornalistas internacionais acesso a Gaza, e apelamos urgentemente para que esse acesso nos seja concedido.”
Processos e críticas
Esse não é o único caso judicial que o governo de Benjamin Netanyahu enfrenta atualmente, sendo os mais notórios os que estão a decorrer nos dois tribunais internacionais com sede em Haia – um iniciado pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), o órgão jurisdicional da ONU, que recentemente declarou que a ocupação israelita dos territórios palestinianos desde 1967 é “ilegal”; o outro a decorrer no Tribunal Penal Internacional (TPI), cujo procurador pediu que fosse analisada a possibilidade de se emitirem mandados de captura contra Netanyahu e Yoav Gallant, respetivamente o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel, a par dos mandados já emitidos contra líderes de movimentos islamitas palestinianos pelos ataques de 7 de outubro de 2023.
Nesse fatídico dia, numa incursão inesperada no sul de Israel, o Hamas matou cerca de 1.200 pessoas e levou para Gaza cerca de 200 reféns, muitos dos quais já morreram e dezenas dos quais continuam em cativeiro passado um ano, sem qualquer acordo à vista para a sua libertação. Numa entrevista à CNN Internacional a poucos dias do primeiro aniversário dos ataques, a reputada jornalista israelita Ilana Dayan invocou as críticas ao governo Netanyahu por não priorizar a libertação dos reféns, lembrou a “divisão cada vez mais profunda” da sociedade israelita face ao que aconteceu e assumiu que “os jornalistas israelitas não têm feito cobertura suficiente do que está a acontecer em Gaza desde 8 de outubro”, onde segundo as autoridades locais quase 42 mil pessoas já morreram, 16 mil delas crianças.
“Eu sei que esta guerra tem tido um efeito terrível para civis inocentes em Gaza. Estive em Rafah há alguns meses, vi a destruição, e sei que nós jornalistas, os media israelitas, não temos feito suficiente cobertura, mas é uma questão complicada”, disse Dayan. Também lembrou a situação complicada em que Israel e o resto do Médio Oriente se encontram, agora que as atenções estão focadas na fronteira com o Líbano.
“Não é que estejamos à beira de uma guerra regional, nós já estamos numa guerra regional, com Israel e o Irão a confrontarem-se [...] Israel sabe que não o pode fazer sem o apoio americano, mas a última coisa que a administração americana quer agora é uma guerra total aqui antes das eleições lá – mas aquilo que ninguém quer que aconteça pode bem acontecer. A questão é: será que, para variar, Israel vai perceber os limites do poder, procurar um ponto de saída e compreender que tem de haver um acordo diplomático?”
Resoluções limitadas e poder de veto
Com a incursão das tropas israelitas no Líbano, e com jornalistas e analistas a colocarem a hipótese de a operação contra o Hezbollah se transformar numa “longa ocupação” como aconteceu em 1982, derrama-se nova luz sobre a UNIFIL, a força militar da ONU composta por cerca de 10.000 soldados de 50 países que está destacada na fronteira israelo-libanesa desde 2006, quando se deu a última guerra entre os dois países.
Há alguns dias, a ONU anunciou que os seus capacetes azuis vão continuar no terreno, apesar do pedido feito por Israel para que fossem retirados. Mas por ter sido criada com base numa resolução de capítulo VI, e não de capítulo VII, não sendo por isso juridicamente vinculativa, a UNIFIL tem poderes muito limitados no terreno, estando apenas mandatada para manter a paz e não para a impor.
Como destaca à CNN Portugal a negociadora internacional Nomi Bar-Yaacov, “o que falta é vontade política, porque se fôssemos reforçar o seu mandato teríamos uma guerra aberta, muitas mortes na UNIFIL, e ninguém quer realmente a ONU no meio de uma guerra; a chave deste conflito é encontrar mecanismos de resolução, que na prática já existem sob o mandato da UNIFIL – só que, neste momento, não há vontade política para os implementar”.
Na sua passagem por Lisboa, Francesca Albanese defendeu sem rodeios que a única forma de forçar negociações e abrir caminho para a paz entre Israel e a Palestina, e no resto do Médio Oriente, é confrontar o facto de que, apesar de não ser o único país a desrespeitar o Direito Internacional, Israel é “o único que o faz em série e sem consequências”, o que exige uma tomada de posição por parte dos restantes países, com embargos de armas e a suspensão formal de relações.
Face a tudo o que aconteceu no último ano, e quando faltam poucos dias para o anúncio do Prémio Nobel da Paz, os especialistas apontam ao pódio de potenciais laureados a agência da ONU para os Refugiados Palestinianos (UNRWA), o Tribunal Internacional de Justiça da ONU e António Guterres – no que pode ser visto como um incentivo tácito às Nações Unidas num momento em que se debate com uma crise existencial. Mas apesar do consenso sobre a necessidade de reformas na organização, ninguém consegue apontar um caminho.
Se para especialistas como Oona Hathaway a Carta fundadora da ONU já serve de guião para atualizar a organização, há quem defenda como única hipótese a criação de uma nova Carta, como o Democracy Without Borders e o Global Governance Forum – e outros ainda, como Tamsin Paige, que vão mais longe, dizendo que “o único método que resta é dissolver as Nações Unidas e posteriormente reformar a organização com uma nova Carta”.
Na proposta apresentada por Linda Thomas-Greenfield, embaixadora de Biden na ONU, os EUA sugerem uma reforma mais limitada, com a adição de dois assentos permanentes no Conselho de Segurança para nações africanas e um novo assento rotativo destinado a pequenas nações insulares. Mas mesmo essa é improvável de angariar consenso, dizem especialistas à CNN Portugal.
“O assento rotativo tem algumas hipóteses de ser bem sucedido, por ser relativamente incontroverso, mas é provável que haja uma oposição política significativa quanto à forma como é implementado”, defende a especialista em Direito Internacional Tamsin Paige. “A adição de dois Estados africanos permanentes sem poder de veto tem poucas probabilidades de ser bem sucedida porque isso requer uma nova redação do artigo 27.º da Carta e porque, mesmo que todos concordassem com essa alteração, é improvável que haja consenso sobre que dois dos 54 países africanos deveriam ocupar esses lugares. Na minha opinião, a embaixadora dos EUA estava ciente de tudo isto quando fez a proposta e tudo não passou de uma manobra de relações públicas.”
“Há muito a ser dito sobre esta proposta como forma de responder a desigualdades e erros históricos de longo prazo”, considera Oona Hathaway, da Universidade de Yale. “Dito isso, alcançar o apoio necessário dos membros da ONU e o acordo universal dos cinco membros com assento permanente no Conselho de Segurança – e a sua ratificação pelos respetivos governos – vai provar-se extremamente difícil, senão impossível.”