Depois da covid-19, a MIS-C. O que os médicos dizem sobre a síndrome rara que afeta as crianças

CNN , Jen Christensen
27 fev 2022, 18:00
Cuidados Intensivos. Foto: CNN

Números dos Estados Unidos, depois da vaga de Ómicron. Especialistas não estão a notar aumento de casos da MIS-C

Depois de a variante Ómicron do coronavírus ter deixado um número recorde de crianças doentes, nos Estados Unidos, em janeiro, os hospitais pediátricos por todo o país preparam-se para o que foi comum após todos os outros surtos da pandemia de covid-19: casos de uma situação clínica rara, mas perigosa, denominada Síndrome Inflamatória Multissistémica em Crianças, vulgarmente conhecida como MIS-C. Mas vários hospitais dizem que o aumento esperado de casos não aconteceu. Pelo menos, ainda não.

A MIS-C pode seguir-se à covid-19 até algumas semanas após a infeção. Pode causar inflamação em certas partes do corpo e pode afetar os principais órgãos, incluindo os rins, o cérebro, os pulmões e o coração.

Os sintomas da MIS-C não são uniformes, mas podem incluir dor abdominal, vómitos, diarreia, erupção cutânea, conjuntivite e tensão arterial baixa. Surgem muitas vezes após um caso leve ou até assintomático de covid-19.

Com a variante Ómicron a causar tantas doenças, não era claro quantos casos de MIS-C os hospitais poderiam esperar ou quão graves seriam. A pesquisa ainda está a decorrer, mas os profissionais de saúde de muitos dos principais hospitais pediátricos dos EUA descrevem os resultados como “contraditórios”.

Os casos parecem variar consoante a região

Os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA rastreiam os casos de MIS-C, mas os números no site são atualizados apenas uma vez por mês. Houve 6851 casos reportados durante a pandemia, com 59 mortes, até 31 de janeiro.

Essa é uma pequena fração dos casos de covid nas crianças. Mais de 12,3 milhões de crianças apanharam covid desde o início da pandemia, segundo a análise da Academia Americana de Pediatria dos dados dos estados que relatam os casos, os internamentos e as mortes por idade.

A variante Ómicron, mais contagiosa, resultou numa avalancha de casos: quase 4,5 milhões de crianças tiveram covid nos EUA, só desde o início de janeiro.

Diferentes zonas deste país estão em diferentes pontos da vaga Ómicron, e demorará algum tempo até os cientistas terem uma imagem mais clara do peso da variante nos casos de MIS-C.

A maioria dos casos de MIS-C não tem sido fatal, mas o Departamento de Serviços de Saúde do Wisconsin informou que uma criança de 10 anos, da região a sudeste do estado, morreu no mês passado com MIS-C.

Tom Haupt, epidemiologista de doenças respiratórias do departamento, disse que o estado dá prioridade aos médicos relatarem até mesmo casos suspeitos de MIS-C, para que as autoridades estaduais possam reportá-los ao CDC o mais depressa possível.

“Queremos partilhar essas informações com o CDC na esperança de podermos descobrir o que está a causar a síndrome e o que podemos fazer para prevenir ainda mais a MIS-C”, disse Haupt.

Existem vários estudos de MIS-C a decorrer, por todo o país. Os cientistas ainda estão a tentar descobrir porque é que algumas crianças a manifestam e outras não. Estão também a tentar compreender as consequências a longo prazo e a melhor maneira de tratá-las.

Uma coisa é certa sobre a MIS-C: “Segue sempre o mesmo padrão”, disse Roberta DeBiasi, diretora da Enfermaria de Doenças Infecciosas do Hospital Pediátrico Nacional em Washington, DC. “Acontece sempre entre duas a seis semanas depois do pico de qualquer variante. Nessa altura, esperamos a MIS-C. E depois, efetivamente, ela aparece.”

DeBiasi faz parte de um grupo de vários cientistas que ainda estão a inscrever participantes em estudos sobre a MIS-C. Do seu trabalho com as crianças e com a covid-19, até agora, a MIS-C ainda parece ser rara, em comparação com o número de casos de covid-19 tratados pelos médicos do Hospital Pediátrico Nacional.

Um estudo publicado recentemente descobriu que, durante o inverno de 2020-21, houve um internamento por MIS-C para cada internamento por covid-19, nas crianças entre os 5 e os 11 anos. O período estudado foi muito anterior à vaga da Ómicron, mas os investigadores referem “que a MIS-C pode não ser assim tão rara... como se pensava”.

DeBiasi disse que, em Washington, o hospital dela recebeu 30 casos de MIS-C relacionados com a Ómicron. Mas cada vaga foi dando origem a menos casos. Na primeira, disse DeBiasi, trataram cerca de 100 crianças com MIS-C e, com a variante Delta, foram cerca de 60.

Não é ainda claro porque tem havido menos casos, mas ela especula que as vacinas - agora autorizadas para crianças a partir dos 5 anos - possam ter ajudado.

“As crianças mais velhas têm uma representação muito menor, agora, nos casos de MIS-C, e isso faz sentido porque estão vacinadas, e há muitos estudos que mostram que a vacinação reduz o risco de casos de MIS-C, assim como reduz o risco de internamento e de doença grave”, disse ela.

Por exemplo, um estudo do CDC divulgado em janeiro mostra que a vacina Pfizer/BioNTech para a covid-19 reduziu em 91% a probabilidade de MIS-C nas crianças entre os 12 e os 18 anos, durante um período em que a variante Delta era predominante.

Outro estudo revela que a MIS-C ocorreu em apenas uma por milhão de crianças vacinadas, um número “substancialmente menor” do que as estimativas anteriores de 200 casos por milhão em pessoas não vacinadas que apanharam covid, disseram os investigadores.

No Hospital Pediátrico do Colorado, os profissionais recebem à volta de dois a três casos de MIS-C por semana, apesar do que Pei-Ni Jone descreveu como “uma tonelada” de casos de covid-19. Ela disse que alguns dos pacientes com MIS-C tinham sido vacinados, mas a grande maioria não.

“Pensávamos que veríamos um aumento de crianças com MIS-C, com a Ómicron, mas não. Para nós, é muito semelhante ao que aconteceu com a Delta”, disse a cardiologista. “É realmente desconhecido o que dá origem aos casos de MIS-C.”

No Centro Médico da Universidade de Pittsburgh, Marian Michaels observou com profunda preocupação o grande aumento de infeções e internamentos por covid na área dela, mas o aumento nos casos de MIS-C não aconteceu. “Felizmente, na nossa área, não vemos um aumento”, disse ela. “Estou muito grata por isso.”

Michaels disse que conversa regularmente com outros médicos, como parte de uma rede de vigilância do CDC, e no caso da Ómicron, os números são variados. Alguns hospitais viram um aumento nos casos de MIS-C, mas muitos viram apenas uma mão-cheia.

No Hospital Pediátrico de Los Angeles também estão muito atentos ao número de pacientes, mas até agora, tudo tranquilo.

“O Hospital Pediátrico de Los Angeles ainda não assistiu a um grande aumento nos casos de MIS-C no seguimento do surto de casos da variante Ómicron na comunidade”, escreveu a cardiologista pediátrica Jacqueline Szmuszkovicz, do Instituto do Coração do Hospital Pediátrico de Los Angeles, num e-mail à CNN.

Em dezembro e janeiro, o hospital tratou 22 pacientes com MIS-C. Em fevereiro, foram apenas três, com dois internados.

“Como sabemos que a MIS-C pode surgir semanas depois de uma criança ser infetada com SARS-CoV-2, continuamos atentos e à espera para ver o que nos reservam as próximas semanas”, disse Szmuszkovicz.

No Hospital Pediátrico Lurie, em Chicago, Ami Patel, pediatra de doenças infecciosas, disse que os profissionais têm observado um aumento gradual de casos de MIS-C, desde o final de dezembro. Mas “os números ainda são relativamente baixos quando comparados com o surto do inverno de 2020”, disse ela. Durante a variante Delta, o hospital recebeu “relativamente poucos” casos de MIS-C.

Mas houve um pico no Hospital Pediátrico de Seattle. “Aproximadamente 15% do total de casos de MIS-C que vimos desde março de 2020 aconteceram desde meados de dezembro de 2021, quando a Ómicron surgiu como a principal variante. Estes números sugerem que a MIS-C está a aumentar com a Ómicron", escreveu num e-mail à CNN Michael Portman, diretor de pesquisa do Departamento de Cardiologia.

O Hospital Pediátrico do Texas, em Houston, passou pelo pico de casos de Ómicron a 7 de janeiro, um pouco mais tarde do que noutras regiões, portanto, os profissionais do hospital ainda não sabem quantos casos de MIS-C podem esperar.

Não houve nenhum “aumento drástico” - pelo menos, ainda não, segundo Jim Versalovic, patologista-chefe do hospital.

Os profissionais de saúde do hospital trataram mais de 280 casos de MIS-C desde o início da pandemia, dois terços deles graves o suficiente para precisarem de cuidados intensivos.

O maior número de casos de MIS-C aconteceu entre meados de setembro e meados de outubro, com a variante Delta. “Ainda não estamos nesse nível”, disse Versalovic. Em vez disso, recebem cerca de um caso por dia, a cada dois ou três dias.

No Hospital Pediátrico UH Rainbow Babies, em Cleveland, os casos de MIS-C pareceram surgir muito mais depressa após o aumento de infeções por Ómicron do que nas vagas anteriores da covid-19. No entanto, isso pode não ser exclusivo da variante Ómicron, disse Claudia Hoyen, especialista em doenças infecciosas pediátricas.

“Acho que pareceu pior porque estávamos em pleno surto da variante Delta quando surgiu a Ómicron”, disse ela.

No Centro Médico do Hospital Pediátrico de Cincinnati, Patty Manning disse que os profissionais viram dois ou três casos de MIS-C por semana, durante a Ómicron – “possivelmente menos do que esperávamos, dado o aumento de casos de covid em geral.”

Ela disse que isso se pode dever ao sucesso da vacinação ou pode ser algo específico da Ómicron que dê origem a menos casos de MIS-C. “Neste momento, não é claro. Mas nunca devemos ficar à vontade”, disse Manning. “Os pais continuam a precisar de estar atentos.”

Ao que devemos estar atentos com a MIS-C

Os pediatras dizem que, se as crianças tiverem covid-19, os pais devem ficar atentos aos sintomas da MIS-C, geralmente quatro a seis semanas após a infeção. Podem parecer um regresso dos sintomas da covid ou podem ser totalmente diferentes. Se os sintomas piorarem, precisam de tratamento.

“Houve crianças que morreram nos Estados Unidos porque não foram levadas imediatamente às Urgências”, disse Versalovic.

Os médicos disseram que aprenderam muito sobre como tratar a MIS-C. No hospital de Pei-Ni Jone, no Colorado, muitas das crianças com MIS-C não precisaram de tanto tempo de internamento como as crianças do início da pandemia.

Os médicos estão muito melhores a diagnosticar a MIS-C, disse Michaels da UPMC. “O tratamento célere tem sido fundamental.”

Esse tratamento normalmente inclui cuidados que se concentram no alívio dos sintomas e na prevenção de complicações, incluindo fluidos intravenosos e antibióticos para reduzir a febre, manter a tensão arterial alta e eliminar possíveis infeções bacterianas.

Como a MIS-C pode deixar o sistema imunológico de uma criança desregulado, os médicos também podem administrar um medicamento que acalme o sistema imunológico. Esses medicamentos podem incluir esteroides ou imunoglobulina intravenosa, um tratamento para pessoas com falta de anticorpos.

Algumas crianças também podem precisar de assistência respiratória ou cardíaca, como ventilação ou tratamentos com o ECMO.

“O acompanhamento a longo prazo também será essencial para entender como as crianças se comportam a longo prazo e para perceber, do ponto de vista do sistema imunológico, o que está a acontecer”, disse Michaels, que está envolvida em vários estudos ligados à MIS-C. “Também será importante entender, do ponto de vista do sistema imunológico, que sintomas têm um efeito a longo prazo. Porque acontece num caso em comparação a uma criança que era perfeitamente saudável antes do vírus? Porque não conseguem ter resultados tão bons?"

A maioria das crianças parece recuperar bem

Jone disse que, no Hospital Pediátrico do Colorado, a maioria das crianças melhora e não parece ter efeitos duradouros.

“Vimos as primeiras crianças com MIS-C em maio de 2020. Já fizeram a consulta de acompanhamento e todas essas crianças de 2020 estão bastante bem”, disse Jone.

Um estudo publicado na revista da Associação Americana do Coração, em janeiro, sugere que a maioria das crianças com MIS-C começa a recuperar na primeira semana após a alta hospitalar e recupera completamente a função cardíaca no espaço de três meses.

A melhor abordagem à MIS-C, segundo os médicos, é as crianças não apanharem covid-19.

“É uma situação clínica muito assustadora e grave”, disse Manning. “Queremos evitá-la e preveni-la a todo o custo.”

Isso significa vacinar todas as crianças que forem elegíveis. As crianças ainda são as menos vacinadas de todas as faixas etárias elegíveis.

Não há uma vacina autorizada para as crianças com menos de 5 anos, mas os pais podem protegê-las garantindo que todos os adultos à volta da criança têm a vacinação completa.

“É preciso vacinar. Não há nenhuma infeção no mundo que tenha desaparecido apenas graças à imunidade de grupo. O sarampo não desapareceu por causa da imunidade de grupo”, disse Michaels. "Protegermo-nos a nós e aos nossos entes queridos, através das vacinas, é mesmo vital.”

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