opinião
Analista político e especialista em políticas pública

Ainda se lembra do orçamento pipi?

10 out, 09:00

Está entregue o Orçamento do Estado para 2026. Joaquim Miranda Sarmento, num exercício de enorme rigor e organização, cumpriu escrupulosamente o calendário determinado para a entrega do diploma ao Presidente da Assembleia da República, um dia antes do prazo limite. Se a antecipação do prazo de entrega é uma prática que merece elogio, - contrariando uma tendência de entrega de orçamentos à vigésima quinta hora que vigorou em Portugal durante largos anos -, as razões que levaram a essa antecipação são mais táticas do que beneméritas

O Governo chega ao Orçamento do Estado num momento agridoce. Passou meses a anunciar publicamente as medidas mais emblemáticas e voltou a apostar no reembolso antecipado do IRS. Evitou, assim, danos políticos significativos após os incêndios florestais que devastaram o país durante o verão. Mas, em vésperas de eleições autárquicas, reapareceu na agenda mediática o caso Spinumviva, que tantas dores de cabeça deu a Luís Montenegro.

Para mitigar o impacto negativo no escrutínio de domingo, o Governo antecipou a entrega do Orçamento do Estado. Acredito mais nesta tese do que na ideia de que o fez para não ofuscar o último dia de campanha. Se a data de entrega da proposta de Lei do Orçamento está prevista por lei, a definição das eleições autárquicas depende exclusivamente do Executivo. Teria sido possível anunciar com antecedência o calendário pretendido, em vez de o fazer apenas na véspera da entrega.

A estratégia na forma parece evidente. Quanto ao conteúdo, a lógica não é muito diferente: apresentar um orçamento sem medidas controversas que possam dificultar a sua aprovação. Para agradar ao Partido Socialista, o Governo autonomizou a redução do IRC e evitou tocar na legislação laboral ou na revisão da Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde. Para agradar ao Chega, aumentou a despesa com segurança interna em 11,4% face ao ano anterior. A fórmula é simples. Retirar tudo o que gera atrito e reforçar o que cria convergência. O resultado é um orçamento sem cavaleiros orçamentais, mas cheio de cavaleiros eleitorais.

A opção não é isenta de riscos. As previsões macroeconómicas para 2026 são otimistas e destoam das do Conselho de Finanças Públicas e do Banco de Portugal. O Governo antecipa um excedente de 0,1%, enquanto essas instituições apontam para um défice de 0,6%. A diferença ronda os dois mil milhões de euros, valor que equivale ao custo total da redução de IRS inscrita no programa eleitoral.

Marcelo Rebelo de Sousa parece pouco preocupado. Disse que “o risco de um défice é muito baixo” e sugeriu que o discurso de margem zero do Ministro das Finanças tem “uma tática por trás”. Se o orçamento reúne os consensos necessários para passar, a paz negocial pode ser breve. PS e Chega já anunciam que exigirão aumentos permanentes das pensões em 2026.

Com esta proposta, o Governo retirou ao debate orçamental o peso político a que nos habituou. Em troca de uma aprovação quase garantida, apresentou um orçamento sem ideologia nem identidade. Quando dois partidos tão distantes como PS e Chega não excluem a viabilização do documento, há apenas duas hipóteses: ou o Primeiro-Ministro é um estratega notável, ou o Orçamento do Estado para 2026 é um diploma sem alma. Recuperando as palavras do próprio Primeiro-Ministro sobre um processo anterior, um “orçamento pipi, que aparece bem vestidinho, muito apresentadinho, mas que é só aparência”.

Colunistas

Mais Colunistas