Presidente da República procura ser o "árbitro do jogo". Mas, com a pressão feita para um acordo no "arco da governação", arrisca-se ele próprio a sair ainda mais desgastado se as negociações falharem. As coisas podem, depois, acabar a dar a volta: com o país mergulhado numa nova crise política, Marcelo vitimiza-se após tantos esforços de conciliação. Os desfechos são imprevisíveis em vários campos. Sobretudo para o PS
Parece claro para todos: o Presidente da República quer deixar evidentes as movimentações do Orçamento do Estado para 2025.
“Não se coíbe de pressionar os atores políticos em relação ao processo de negociação, com um papel muito visível e audível”, resume o politólogo Bruno Ferreira Costa.
E há um alvo mais evidente da pressão: o PS, o maior partido da oposição, que Marcelo Rebelo de Sousa quer ver a viabilizar as contas do próximo ano.
“A partir do momento em que o Presidente coloca o ónus da responsabilidade em dois partidos [PS e PSD, este último no Governo], deixamos de ter uma magistratura de influência e passamos a ter uma magistratura de interferência”, descreve o analista político José Filipe Pinto.
Os politólogos ouvidos pela CNN Portugal são unânimes: Marcelo está a fazer uma leitura alargada dos seus poderes presidenciais. E está, segundo João Pacheco, numa “busca incessante de se mostrar como o árbitro do jogo”.
"Etapas de gravidade"
Marcelo quer um país a funcionar, com o orçamento aprovado. Mas, acima de tudo, quer evitar ter de acionar mais uma “bomba atómica”, dissolvendo o Parlamento e marcando eleições antecipadas, na fase final do seu mandato.
E, por isso, dizem os analistas políticos, está a deixar claro junto da opinião pública as várias “etapas de gravidade”. O melhor cenário, lá está, é a viabilização socialista. Se isso falhar, segue-se a entrada em cena do Chega. Tudo para evitar a “bomba atómica”.
“Está publicamente a assumir todos os esforços para que haja um entendimento, para que haja estabilidade política. Mas é também Marcelo a salvaguardar a sua própria posição”, alerta Paula do Espírito Santo.
Do mea culpa à vitimização
Para os analistas, é claro: a imagem política de Marcelo está muito desgastada neste segundo mandato e o Presidente não quer deixar Belém com a névoa de mais uma “bomba atómica” e de mais uma crise política.
“É o legado dele que está em jogo neste período. Não quererá ficar na história pelas múltiplas dissoluções da Assembleia nem como o responsável por esta instabilidade. Além disso, procura corrigir as consequências das últimas legislativas, para mostrar que o Chega não tem consequências do ponto de vista da determinação das políticas”, caracteriza Bruno Ferreira Costa.
“O Presidente da República está a procurar reposicionar-se como figura central da estabilidade política”, diz João Pacheco. “Depois de ter delapidado grande parte da confiança e da cumplicidade que tinha com os portugueses”, completa José Filipe Pinto.
Para, no caso de se concretizar o cenário mais temido, de eleições antecipadas, Marcelo poder sair por cima: “aí seria o próprio Marcelo a poder vitimizar-se”.
Passado a repetir-se
Marcelo quererá ver o passado a repetir-se. No passado, enquanto líder da oposição, acabou por viabilizar contas do principal rival. “Já referiu publicamente que ele próprio, num período similar, acabou por validar um Orçamento do Estado”, lembra Bruno Ferreira Costa.
“Tendo em conta o seu exemplo como líder do principal partido da oposição, entende que Pedro Nuno Santos deveria repetir o seu comportamento, em nome da estabilidade”, atesta José Filipe Pinto.
Se Marcelo quer dar a Luís Montenegro a oportunidade de governar com a sua própria política económica, os analistas alertam que é também um garrote ao papel do primeiro-ministro nas negociações. “Está a colocar Montenegro numa posição muito delicada, a impor-lhe um negociador, a mostrar-lhe que só tem uma alternativa”, insiste José Filipe Pinto.
“Arco da governabilidade”. Desfecho imprevisível para o PS
Apesar de, em termos programáticos, o Chega se aproximar mais do PSD, é no PS que estão depositadas as pressões do Presidente da República. E, para os analistas, é simples explicar porquê.
“Do ponto de vista político, Marcelo é um democrata e prefere que haja convergência entre os partidos democráticos”, começa por dizer Paula do Espírito Santo.
Bruno Ferreira Costa completa: “Marcelo considera que os dois partidos pertencem ao arco da governabilidade, sendo por isso maior a responsabilidade que cai sobre eles”. O politólogo vinca que o Presidente da República quer captar uma “ala mais moderada” dos socialistas, para mostrar que o partido pode tornar-se mais “positivo e interessante” se deixar passar as contas do próximo ano.
Mas, se as chumbarem, os socialistas podem ganhar por outra via, alerta João Pacheco: “já permitiu a Pedro Nuno Santos dizer que prefere perder eleições a abdicar das suas convicções”. Como o secretário-geral do PS apostou em propostas nas áreas mais problemáticas para o país, pode captar muitos indecisos para as suas “convicções”, concorda o especialista.
Mas, por outro lado, o PS também arrisca ser prejudicado por, com a sua inflexibilidade, ser visto como o causador da nova crise política, reconhece.
Dura relação com o Chega
E porque fica o partido de André Ventura praticamente remetido ao esquecimento nas pressões do Presidente da República? “Marcelo conhece bem o ADN do Chega”, responde João Pacheco.
Os politólogos ouvidos pela CNN Portugal vincam todos a forma como o Chega é imprevisível. Contudo, segundo José Filipe Pinto, esta decisão presidencial traz um risco: “permitirá ao Chega uma vitimização, assente na perspetiva de que o Presidente o considera dispensável, que o seu sentido de voto não faz a mínima diferença” e tornará o partido mais “intransigente” nas negociações caso elas venham a tornar-se uma necessidade para o Governo.
“Sabemos também que os dois [Marcelo e Ventura] têm estado em confronto, não só por causa do caso das gémeas, mas também pela recusa do Presidente em receber o Chega por causa do referente sobre a imigração”, completa Bruno Ferreira Costa.