Do amor ao ódio, o ser humano é capaz de tudo. Mas, afinal, porque odiamos tanto?

26 mar 2023, 22:00
Stress (Pexels)

A espécie mais sociável da Terra é também aquela que é capaz de cometer as maiores atrocidades contra os seus semelhantes. E os mesmos humanos que acolhem refugiados de guerra são capazes de manter guerras antigas com o vizinho do lado, ou mesmo com familiares. A guerra na Ucrânia, por exemplo, veio mostrar que “ódio e amor são capazes de acontecer ao mesmo tempo”

Ricardo Barroso é psicólogo e trabalha com agressores. A experiência profissional levou-o, ao longo dos anos, ao contacto com homens e mulheres que agridem e matam os próprios companheiros. Que assaltam, sequestram, violam e roubam. Ricardo assegura que, por trás de cada sentimento negativo que leva alguém a agir assim, há uma história para contar.  

“Existe justificação para uma grande parte das manifestações de ódio que uma pessoa pode ter. As pessoas diferem muito umas das outras e o ditado ‘não faças aos outros o que não gostas que façam a ti’, por exemplo, não é visto da mesma maneira por todos. Há pessoas que até regulam a sua vida por esta frase e há pessoas para quem não faz sentido”, começa por explicar.

Os agressores conjugais, exemplifica Ricardo Barroso, têm “tipicamente trajetórias de vida complicadas e procuram pessoas mais frágeis, que não lhes ponham travão”.

“As pessoas vão-se deparando com um conjunto de obstáculos ao longo da vida, verdadeiras pancadas… que fazem com que, a determinado momento, vejam os outros como objetos”, acrescenta.

Ainda assim, há situações que Ricardo Barroso tem dificuldade em decifrar, como “casos em que uma mãe é conivente com o abuso sexual do seu filho no quarto ao lado". "São casos que ainda temos de perceber.”

O psicólogo sublinha que não se trata de uma justificação para o ódio e as suas manifestações, apenas de uma explicação. O especialista ressalva que todos somos responsáveis pelo nosso próprio comportamento e “o que não faltam são pessoas que tiveram histórias de vida complicadas e que têm o seu presente perfeitamente ajustado”. “A resiliência é isto: pessoas que, face às adversidades da vida, conseguem ultrapassá-las”, aponta.

Todos somos capazes de tudo

Não se iluda a si próprio, garantindo que nunca seria capaz de determinado ato. Todos somos capazes de amar desmesuradamente e de odiar como ninguém. Todos, a determinado momento e perante determinado contexto, somos capazes de materializar um sentimento negativo por alguém, por alguma instituição ou perante alguma situação.

“A mesma pessoa que poderá ter alguma aversão a alguma minoria em Portugal pode ter aberto as suas portas para acolher refugiados ucranianos. Não me espanta. A mesma pessoa pode ter várias identidades sociais e até várias identidades políticas. Ajusta-se e ajuda sobretudo na emergência… num terramoto, numa guerra... Mas, muitas vezes, os vizinhos vivem necessidades, ali ao lado, e não somos capazes de agir”, analisa o sociólogo Cristiano Gianolla, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC).

E há quem se aproveite dessa dualidade de sentimentos presente num único ser humano. O sociólogo lembra que “no contexto europeu, mas também noutros continentes, vemos uma ascensão de partidos que tentam crescer com base nessa polarização”. “A pandemia foi, se quisermos, um pretexto, como a guerra na Ucrânia agora também é, para jogar com essa polarização”, acrescenta.

A antropóloga Clara Saraiva dá outro exemplo que mostra como o ódio está presente em cada ser humano: “Os conflitos por causa das águas de rega, nos meios rurais, chegam a resultar em homicídios. Os humanos, muito facilmente escalam para a violência.”

O psicólogo Ricardo Barroso lembra que “o ódio pressupõe a indiferença e quando odiamos alguém, essa pessoa é-nos indiferente". "O desaparecimento dela é-nos indiferente e às vezes é até um alívio e motivo de satisfação e alegria.”

Tudo depende da narrativa

O sociólogo Cristiano Gianolla toma como exemplo a guerra na Ucrânia para nos mostrar como tudo pode mudar, consoante a perspetiva. “Temos ucranianos contra russos e temos minorias dentro da Ucrânia que a narrativa identifica como russos. Um grupo encara o outro como alguém que não merece viver. Que não tem a dignidade de ser humano. O amor e o ódio dependem muito do contexto ou da narrativa que está em volta do mesmo assunto”, resume o especialista.

“Não é uma questão racional. Uma pessoa que diz ‘eu não sou capaz de odiar ninguém’ não sabe como vai reagir se a narrativa mudar. Há ucranianos que não tinham ódio especial pelos russos, mas a guerra trouxe-lhes perdas de pais, de irmãos, de filhos, que os fizeram mudar o sentimento”, sublinha Cristiano Gianolla.

Jorge Silvério, psicólogo do desporto, lembra que o que gere o amor e o ódio “são sobretudo as emoções”. “A maneira como as pessoas veem a realidade deixa de ser racional” e por isso é que temos atletas que perdem a cabeça em campo, adeptos que agridem e ofendem rivais e até, nas camadas jovens, pais a ofenderem crianças da idade dos próprios filhos por razões clubísticas.

“Nos atletas, há um trabalho de controlo emocional muito maior. Temos de trabalhar esse ponto com eles, até porque se podem prejudicar a si próprios ou, no caso de um desporto coletivo, prejudicar a equipa”, explica Jorge Silvério.

A gestão do ódio passa, assim, por “trabalhar aquilo que controlamos”. É assim na vida e é assim no desporto. “Não conseguimos controlar as reações do árbitro, dos adversários, dos colegas, mas conseguimos controlar as nossas emoções. Respirar fundo, fazer respiração abdominal, contar até 10 antes de reagir”, diz Jorge Silvério.

Os efeitos do grupo

E se, na relação de um para um, o ódio já pode dar origem a episódios de violência extrema, o efeito grupo pode potenciar ainda mais a componente violenta dessa emoção negativa. “Sabemos o poder que a coesão grupal tem. Um grupo de 40 ou 50 pessoas que tem um sentimento negativo em relação a um indivíduo ou a outro grupo tem efeitos potencialmente mais agressivos, mais virulentos e até mais violentos. Quando o ódio se exponencia a um grupo tem consequências sociais e gerais muito mais violentas”, exemplifica a antropóloga Clara Saraiva.

E, num cenário macro, o ódio pode dar lugar a episódios ou marcas da História como o Apartheid, a invasão dos edifícios do poder no Brasil no início deste ano, ou a invasão do Capitólio nos Estados Unidos, em janeiro de 2021.

E é também esse ódio grupal que está na origem de muitas guerras que a Humanidade atravessou e atravessa. “Esse ódio grupal grande que está presente também nas guerras é passado por um líder, que passa esse sentimento ao outro - a quem luta. E, muitas vezes, quem luta até nem conhece muito bem a verdadeira razão pela qual está a lutar, porque é movido por um ódio que não é seu. Numa guerra de trincheiras, como foi a II Guerra Mundial, há relatos de soldados alemães e aliados que se conhecem, se relacionam e deixam ser capaz de se matar mutuamente”, recorda Clara Saraiva.

Será o ódio genético ou cultural?

O ódio é, garantem os especialistas, um sentimento característico e inerente à espécie humana. “Nós humanos somos capazes de atos muito abjetos, que no reino animal acontecem por necessidade. O homem mata por ódio. Um tigre mata a gazela por que precisa de comer”, compara a antropóloga Clara Saraiva.

“Olhamos para as emoções como tendo uma parte biológica e inata, mas não podemos esquecer também que as emoções são construídas cultural e socialmente. As emoções não são apenas biológicas, são também culturais”, repete Clara Saraiva.

O psicólogo Jorge Silvério não podia estar mais de acordo e acrescenta que o ódio “pode claramente sofrer uma influência cultural, que tem a ver com os valores, com a forma como a pessoa foi educada, se vem de uma família estruturada ou não”. “Isso depois vai ter uma confluência com a componente genética, mas não há dúvida sobre a componente cultural do ódio”, admite Jorge Silvério.

Estamos a odiar mais agora?

Mas se o ódio sempre existiu, se é inerente à condição humana, porque temos a sensação de que nunca se odiou tanto como agora? Os media poderão ter uma quota parte da culpa. O psicólogo Jorge Silvério lembra que “as coisas têm uma amplitude diferente por causa da cobertura mediática e mais recentemente por causa das redes sociais”.

“Há uma maior perceção do ódio. Não acho que haja nada nos tempos atuais que justifique a crença de que odiamos mais. Não há mais episódios que justifiquem a convicção de maior prevalência de ódio. Mas há uma maior perceção do que é negativo. As redes sociais são um bom meio de manipulação nesse sentido. Usadas para alimentar discursos de ódio, respostas de ódio, fake news… Basta escolher meia dúzia de temas e são um combustível muito eficaz na manipulação das pessoas”, acrescenta Ricardo Barroso.

Também a antropóloga Clara Saraiva coloca na mediatização e sobretudo nas redes sociais a responsabilidade pela propagação do sentimento de que odiamos mais: “As redes sociais são um veículo que permite as pessoas conhecerem mais aquilo que os outros pensam. Mas não só: hoje em dia, temos a guerra em direto. Antigamente, as pessoas sabiam que a guerra existia, mas estava lá longe, mas hoje em dia ela entra-nos pela televisão e pela internet.”

“A Internet é um pau de dois bicos: serve para ajudar causas, resolver situações, mas também serve para muita coisa má. Não acho que a internet exacerbe mais os ódios. Mas é um veículo de divulgação importante”, acrescenta a antropóloga.

A utopia do fim do ódio

O sociólogo Cristiano Gianolla acredita que o combate ao ódio “é uma utopia pela qual vale a pena lutar e trabalhar”. E o psicólogo Ricardo Barroso lembra que esse combate é fundamental e dependente de cada indivíduo. Até porque o indivíduo que odeia é vítima do seu próprio sentimento.

“O ódio corrói-nos internamente e deixa-nos sem forças. Exige uma energia tal, física e cognitiva, uma centração em determinado objeto, que tem limites. O ódio passa a repulsa, como se houvesse vários níveis de ódio e a própria pessoa tem necessidade de não odiar tanto para ultrapassar e conseguir viver a sua vida”, explica Ricardo Barroso.

O combate ao ódio depende, afinal, de cada um de nós, como lembra o psicólogo: “A capacidade de reconhecer o erro e não voltar a repeti-lo é algo determinante no ser humano.”

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