Na madrugada de 21 de outubro de 2024, uma perseguição de quatro minutos na Amadora terminou com dois tiros fatais e uma história que, um ano depois, ainda levanta muitas perguntas. O agente Bruno Pinto começa esta quarta-feira a ser julgado pela morte de Odair Moniz, um cozinheiro de 43 anos. Dois outros polícias enfrentam acusações de falso testemunho
O relógio no carro dos agentes da PSP, Bruno Pinto e Rui Machado, marcava 05:25 quando, na Avenida da República, na Amadora, ficaram frente a frente a um outro veículo. Apenas dois metros separavam os dois carros. Um, caracterizado com as riscas azuis-escuras da polícia, estava há mais de cinco horas a patrulhar as ruas do município. O outro, guiado por um cozinheiro de 43 anos chamado Odair Moniz, tinha acabado de sair do bairro da Cova da Moura.
Toda a reconstituição do que aconteceu naquela noite e que a CNN Portugal detalha neste texto tem por base a acusação do Ministério Público contra Bruno Pinto e a posterior acusação conhecida em outubro deste ano por crimes de falsidade testemunhal contra dois outros agentes da PSP.
O defronte deu-se quando o veículo que Odair conduzia fez sinal para virar à esquerda. Instantes depois, o cozinheiro mudou de ideias e guinou o carro para a direita, trespassando um traço contínuo e acelerando avenida adentro. Imediatamente, os dois agentes inverteram a marcha e iluminaram a escuridão daquela madrugada de 21 de outubro de 2024 com o piscar das luzes azuis.
A perseguição durou quatro minutos até que Odair seguiu por uma curva à direita e entrou na rua principal da Cova da Moura. Seguindo-o, os agentes desligaram os sinais rotativos e continuaram na sua traseira. Pouco depois, o carro no seu encalço despistou-se e embateu contra duas viaturas estacionadas do lado direito, junto ao passeio. Nesse momento, Bruno Pinto, o polícia que estava ao volante, parou o carro e Rui Machado, agarrou no rádio e pediu reforços.
O bairro acordava de sobressalto. De uma janela, um morador estendia o braço com o telemóvel, a tentar captar em vídeo o que se passava lá em baixo. A poucos metros, quatro vizinhos aproximavam-se devagar e observavam o desenrolar da operação enquanto outros se juntavam à porta de um café nas imediações.
Ofuscado pela luz, Odair, ao abrir a porta do seu carro, deparou-se com Rui Machado, o agente de 21 anos que avançava em direção ao cozinheiro. “Polícia, mãos na cabeça, deita no chão”, gritou. Odair não obedeceu imediatamente. “Polícia, mãos na cabeça, deita no chão”, insistiu o agente, enquanto sacava a arma do coldre e carregava uma munição na câmara da sua Glock semiautomática.
Odair permaneceu em pé. Foi alvo de dois tiros
Bruno Pinto, o agente mais velho de 28 anos, saiu do carro e juntou-se ao colega, que apontava a sua arma às pernas de Odair com o intuito que o cozinheiro se deitasse. Nesse momento, Rui Machado colocou-se na retaguarda de Odair e Bruno Pinto avançou na direção do alvo com o intuito de o algemar. Mas não conseguiu, Odair afastou-se, andou uns passos para trás, mas acabou por ser empurrado por Machado que, com um bastão atingiu-o na perna.
Odair resistiu e virou-se na direção de Rui Machado. Por sua vez, Bruno Pinto agarrou-o, mas a força do cozinheiro era demasiado grande e, ao esbracejar, desprendeu-se do agente. Empunhando o seu bastão extensível na mão direita, Bruno Pinto atacou o corpo de Odair que, no mesmo instante, reagiu, acertando com um pontapé nas costas do agente.
A seguir a esse golpe, Odair recuou e, enquanto caminhava para trás, viu Bruno Pinto levar a mão direita ao coldre que trazia à cintura, retirar a arma, colocar uma munição na câmara e disparar um tiro para o ar. Odair continuou a subir pela via principal e, enquanto os dois agentes o seguiam, Bruno Pinto voltou a disparar para o ar. Neste momento, a multidão que assistia ao desenrolar da tentativa de detenção começou a fugir em várias direções.
Com a arma na mão direita, Bruno Pinto voltou a tentar imobilizar Odair, mas falhou. Esbracejando e de braços abertos, Odair avançou na direção do agente e, num movimento rápido, tentou agarrar o polícia que, ainda segurando a arma, desviou-se com o braço esquerdo. À medida que a tensão aumentava, Rui Machado aproximou-se dos dois e tentou ajudar o colega, mas, num instante, deixou cair o rádio.
Enquanto Rui Machado estava debruçado a tentar recuperar o rádio, Odair conseguiu agarrar, entre empurrões, o braço esquerdo de Bruno Pinto, colocando-o próximo do seu rosto. Cara-a-cara, Odair atingiu o agente com um murro na cabeça. Com os corpos separados por alguns centímetros, Bruno Pinto apontou a arma à frente na direção do tórax de Odair e disparou. A bala atingiu-o na zona anterior esquerda do peito.
Odair Moniz permaneceu em pé.
Bruno Pinto observou Odair, recuou alguns passos atrás e afastou-se dele. Estava a cerca de um metro de distância e via o homem a encará-lo, enquanto o peito sangrava. Agarrou firmemente a pistola na mão direita, apontou ligeiramente para baixo e voltou a disparar contra Odair. A bala perfurou a zona genital e a perna direita e o cozinheiro tombava à sua frente, atenuando a queda com os braços.
Nesse segundo, Rui Machado voltou a pegar no seu bastão e atingiu Odair. O impacto dessa investida fez rolar o corpo do cozinheiro, acabando com o peito virado para cima. A morte de Odair era reportada no Hospital São Francisco de Xavier às 6:20, cerca de uma hora depois de se ter cruzado pela primeira vez com os dois agentes.
Odair vestia umas calças de fato de treino pretas, uma t-shirt verde e um casaco de fato de treino. À cintura, levava duas bolsas a tiracolo: uma cinzenta e uma preta, perfurada pelas balas. Dentro dessa bolsa, os agentes encontraram cartões, chaves presas por uma fita preta, uma embalagem de vaselina, uma pequena meia de criança em tons verdes, quatro papéis com rascunhos e 410 euros. Na bolsa cinzenta, estava uma boina preta.
O mistério do punhal
Minutos depois, enquanto a perícia recolhia indícios, foi encontrado nas imediações do local onde o corpo caíra um punhal de vinte e cinco centímetros, com lâmina serrilhada e cabo de plástico preto. Gravado na lâmina lia-se uma única palavra: “MACHO”.
O mistério sobre a quem pertencia o punhal continua até ao dia de hoje, em que o agente Bruno Pinto começa a ser julgado no Tribunal Central Criminal de Lisboa. As análises de ADN saíram sempre inconclusivas e há várias versões contadas às autoridades e pelas autoridades que não bateram certo.
Logo após o incidente, a PSP justificou, através de comunicado, a ação dos seus agentes pelo facto de terem sido ameaçados com um punhal. Mas, como a CNN Portugal avançou na altura, em sede de interrogatório Bruno Pinto e Rui Machado reconheceram que essa ameaça nunca existiu. Sabe-se também que, durante esses interrogatórios, foi também contada uma outra mentira à cerca da faca.
Eram 10:17 quando o agente Rui Machado foi chamado ao Departamento de Investigação e Ação Penal Regional de Lisboa para reconstruir aquilo que dizia lembrar-se da madrugada de 21 de outubro. Chegou como testemunha, prestou juramento e contou que, enquanto a viatura médica de emergência chegou ao local, tinha retirado as bolsas da cintura de Odair Fernandes e as colocara ao lado do corpo. Para desapertar uma das alças, explicou, metera a mão por baixo do corpo e, nesse instante, tinha visto um punhal junto à bacia da vítima. Disse ainda que, apesar de o ter visto, não avisou ninguém “por causa do stress”.
Não explicando o que fez com a faca depois disso, Rui Machado viria novamente a ser chamado para falar sobre o caso em maio de 2025. Desta vez, não ao DIAP, mas à Polícia Judiciária e no âmbito de um novo inquérito criado para apurar as contradições em torno do punhal e do auto de notícia que lhe deu origem. O processo passou a ter um número próprio: 36/25.9KRLSB.
Na mesma tarde em que Machado foi interrogado pelos inspetores, pelas 14:30, o também agente da PSP Daniel Nabais foi chamado para prestar declarações. Disse que, entre as 05h49 e as 05h51 daquela madrugada, ajudara Bruno Pinto e outro colega a verificar os ferimentos de Odair. Quando levantaram o tronco da vítima, afirmou, viu “uma arma branca, do tipo faca”, solta no chão, do lado esquerdo da bacia. Segundo o seu relato, nesse momento chegou a ambulância e, ao pousarem novamente o corpo, a faca teria ficado “por baixo, exatamente como estava”.
Porém, nenhuma das imagens recolhidas no local mostrava o punhal naquele instante do relato. Nem a médica nem o enfermeiro da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER), que levantaram o corpo para colocar o equipamento de reanimação, viram ou sentiram qualquer objeto semelhante. E também outro agente principal da PSP, que momentos antes havia virado o corpo para procurar os pontos de entrada e saída das balas, garantiu não ter visto “nada debaixo nem ao lado do corpo”.
A versão de Rui Machado e Daniel Nabais tornou-se, por isso, insustentável. O Ministério Público considerou inverosímil que dois agentes afirmassem ter visto uma arma branca por baixo do corpo de um homem em reanimação e nada tivessem comunicado aos colegas nem à equipa médica. Assim, a uma semana de o julgamento da morte de Odair começar, os procuradores decidiram acusar estes dois outros polícias do crime de falsidade de testemunho.
Certo é que o Ministério Público chegou a ter como tese alegados crimes de favorecimento pessoal e de falsificação, suspeitando de que o punhal tivesse sido colocado no local para justificar o uso da força letal e que o auto de notícia tivesse servido para encobrir o que realmente aconteceu. E existiam algumas razões para esta lógica dos procuradores: por um lado, segundo noticiou a CNN Portugal, há imagens que mostram como o punhal foi colocado perto do carro onde morreu Odair.
Por outro, o próprio auto de notícia do incidente que levou à morte de Odair levantava suspeitas, uma vez que foi elaborado em nome de Bruno Pinto às 14:55 de 21 de outubro de 2024, ao mesmo tempo em que o agente estava a ser interrogado pela Polícia Judiciária.
O documento, concluiu-se depois, não fora redigido por ele, mas por um agente principal e pelo subintendente da divisão, com base nos relatos dos dois agentes envolvidos na ocorrência. O texto foi depois inserido no sistema informático da PSP. Embora o uso da conta de outro agente tenha gerado suspeitas de falsificação e de acesso ilegítimo, o Ministério Público acabou por arquivar o caso, já que o conteúdo correspondia aos depoimentos prestados e não havia prova de qualquer intenção de encobrimento ou benefício indevido.
A morte de Odair deixou também o Bairro do Zambujal em alvoroço. O cidadão cabo-verdiano, morador naquele bairro há vários anos era visto como uma pessoa “muito querida, sincera e trabalhadora”. Era casado e pai de três filhos, e vivia uma vida “pacata” no bairro, onde geria um café. No passado, tinha tido problemas com a justiça, tendo cadastro por tráfico de droga e crimes violentos.
Durante várias noites, na sequência dos factos que começam a ser julgados esta quarta-feira, registaram-se tumultos em vários bairros da Grande Lisboa. Foram incendiados autocarros, dezenas de automóveis e contentores do lixo, e um motorista chegou a ficar em estado grave.