O Campeonato Europeu de OCR, a decorrer no Estádio Nacional do Jamor, está a destacar atletas portugueses que, com poucos recursos mas enorme dedicação, conquistam lugares de topo. Gonçalo Prudêncio venceu a prova de 3K Elite, sagrando-se campeão europeu após anos de esforço conciliando o trabalho como jardineiro com treinos exigentes. Outros atletas, como Samuel Castela, Mafalda Nogueira e Duarte Alves, também venceram nas suas categorias, todos enfrentando o desafio diário de equilibrar a vida profissional, pessoal e desportiva, numa modalidade sem apoios estatais diretos. O evento reúne mais de 2500 atletas de 22 países
Gonçalo Prudêncio cruzou a meta do Estádio Nacional do Jamor com os músculos a arder e o coração a alta velocidade. Aos 32 anos, o jardineiro de profissão e atleta por vocação sagrou-se campeão europeu de OCR na prova de 3K Elite - o escalão “dos melhores dos melhores” - depois de completar a corrida de obstáculos em 23 minutos e 53 segundos. Foi na sexta-feira, um título conquistado entre dias de trabalho, noites mal dormidas e muitos sacrifícios.
“Luto por isto há muitos anos e tenho abdicado de tudo. Não sou atleta profissional, mas todo o tempo que tenho, todo o dinheiro, e toda a minha família estiveram envolvidos para atingir este objetivo. Sonhei e trabalhei muito para isto. Estou bastante emocionado e muito feliz. Quero dedicar esta vitória a todos os que estão comigo há vários anos”, diz à CNN Portugal Gonçalo Prudêncio, ainda entre fôlegos e sem esconder a emoção e a adrenalina na voz.
O agora campeão europeu da categoria espera que a sua vitória “possa ser um ponto de viragem para Portugal” e também “demonstrar que o país está muito à frente nesta modalidade”.
E que modalidade é esta? OCR é a sigla para Obstacle Course Racing, ou seja, Corrida de Obstáculos. É uma modalidade em que os atletas percorrem um trajeto que mistura corrida com vários obstáculos pelo caminho, como escalar muros, carregar pesos, rastejar na lama ou atravessar cordas, misturando resistência, força, agilidade e estratégia. Há corridas de vários formatos - mais curtos, mais longos e, inclusive, com apenas 100 metros com alta concentração de obstáculos (um pouco como o American Ninja Warrior).
Este tipo de corridas tem ganho popularidade em todo o mundo com provas como a Spartan Race, Tough Mudder ou OCR European Championships, e até já está a ser discutida como possível modalidade olímpica, nomeadamente no Pentatlo Moderno - o presidente da Federação Mundial de Pentatlo Moderno esteve, inclusive, no Jamor.
Mas enquanto não alcança outros patamares, é nos sacrifícios diários dos seus praticantes que vai dando nas vistas. “É um sacrifício que faço com prazer, mas não deixo de abdicar da minha vida pessoal, de estar com amigos, de estar com a família e do meu descanso. Eu trabalho oito horas por dia, em jardinagem, e ao final do dia, assim que tenho hipótese, vou treinar. A seguir chego a casa e janto - não consigo fazer muito mais porque o tempo não dá para tudo - e depois é tentar recuperar o máximo possível. No dia a seguir volto a repetir este ciclo. É muito duro”, assume Gonçalo Prudêncio.
É esta gestão diária, que o próprio admite não saber bem como consegue, que lhe permitiu estar ao nível a que se apresentou na prova de 3K Elite. “Nem sei bem como é que consigo, mas tento encaixar os meus treinos após o trabalho. Como eu trabalho cedo, não consigo treinar de manhã - seria muito difícil porque tinha de acordar muito cedo e acho que não é rentável. Ao final do dia, quando saio do trabalho, dependendo das horas, tento encaixar um treino de corrida ou de bicicleta. Às vezes são mais horas, outras vezes menos. Depois também temos a componente de força e de treino técnico de obstáculos. Tenta-se juntar tudo e fazer o melhor possível com as condições que temos.”
Trabalhar, treinar e competir
Na mesma categoria, mas exclusiva ao escalão de idades entre os 35 e os 39 anos, houve outro campeão: Samuel Castela. O personal trainer começou o dia às sete horas da manhã no ginásio onde trabalha, antes de fazer em 26 minutos e 13 segundos os mais de três quilómetros de corrida e ter superado 20 obstáculos. Além dos obstáculos financeiros, pessoais e profissionais: “Preciso de ganhar dinheiro para andar nesta vida. No dia da cerimónia de abertura vim cá e voltei para o trabalho. Na próxima semana, trabalho segunda e terça. Na quarta arranco para o Campeonato do Mundo da Spartan Race, nos Alpes, em França - 55 km de prova. Se eu não trabalhar, não recebo, naturalmente.”
E se não pode abdicar do salário, Samuel Castela, que foi ginasta no Sporting, tem de o fazer noutros lados. “Não é fácil e não é para todos. Porque acordar às cinco da manhã para ir trabalhar todos os dias, poder ter tempo para treinar e ainda procurar resultados, é preciso abdicar de muitas coisas. De muita gente, inclusive.”
Há já dez anos que Samuel Castela pratica OCR e tem assistido, em primeira mão, ao seu crescimento: “A modalidade tem crescido muito e Portugal está a crescer na modalidade, até porque as provas são cada vez mais frequentes. Temos a Liga, temos provas soltas e temos espaços físicos que oferecem mais trabalho específico e o desenvolvimento dos próprios atletas, obviamente. Isso tem sido visível e acho que nestas primeiras provas já mostrámos um bocadinho da nossa evolução.”
Zero euros
Este campeonato europeu de OCR, que termina domingo e trouxe ao Jamor mais de 2500 atletas de 22 países foi organizado “com zero euros de apoio direto do Estado”, afirma Carlos César Araújo, presidente da Federação Portuguesa de Corrida de Obstáculos (FPOCR), ainda que não tenham pago pela utilização do Estádio Nacional. "O IPDJ [Instituto Português do Desporto e da Juventude] e o Complexo do Jamor isentaram-nos de taxas - isso foi crucial - pelo que não pagámos um único cêntimo para estarmos neste complexo maravilhoso, no coração do desporto, que é o Jamor. Mesmo que não seja diretamente, acaba por ser um apoio financeiro. Mas não tendo utilidade pública desportiva, temos um problema na gestão diária para apoiar mais os atletas”, lamenta.
Sem este estatuto, o ónus da competição recai inteiramente sobre os atletas. “É de louvar o prazer que têm e a dedicação ao desporto em Portugal. Isto é uma modalidade de superação e, sendo uma modalidade de superação, a maior parte deles estão cá porque gostam da modalidade, não é porque são apoiados por aqui ou dali. No geral, todos estão cá pela modalidade, não estão por ser federados ou por estar com o clube.”
Apesar de ter havido um investimento “há uns anos” da Câmara de Oeiras e do Jamor para criar naquele complexo alguns circuitos de OCR para treino livre, a verdade é que novos projetos não passam das intenções. “Temos alguns municípios que nos piscam o olho para perceber quais são os cursos, as dinâmicas, mas não passou ainda disso. Eu acho que o grande apoio que fazia crescer esta modalidade era nesse âmbito - a criação de infraestruturas para treino, para que assim os atletas pudessem ser mais e creio que o resto viria por consequência disso”, argumenta Carlos César Araújo.
Para o presidente da FPOCR, a prioridade nos apoios deve passar pela “criação de infraestruturas para treino”: “Há essa necessidade de apoios, junto das autarquias, porque podemos criar infraestruturas outdoor, abertas ao público, para complementar os treinos dos atletas, mas ao mesmo tempo sem custos para qualquer outra pessoa poder realizar o seu treino.”
Tempo e dinheiro
Também Mafalda Nogueira, estudante universitária de segundo ano, que representou Portugal na faixa etária 20-24 e venceu a prova de 3K com um tempo de 35 minutos e 11 segundos, divide o tempo entre o trabalho, no caso aulas na faculdade, e o OCR. “É preciso ter uma organização muito rigorosa. O OCR é uma unidade muito completa que não envolve só correr, não envolve só obstáculos, portanto, há aqui muitas vertentes desportivas que têm de estar em simbiose - não só trabalhar técnica de obstáculos, mas também treiná-los em fadiga (que é o que encontramos nas provas), fazer simulações de provas.”
Mas não se trata apenas de uma gestão criteriosa do tempo, é preciso fazê-lo também com o dinheiro. “Praticamos esta modalidade por felicidade e por gostar realmente do que estamos a fazer. Nem sempre é fácil, porque para estar numa prova destas num Europeu ou numa prova internacional, há muitos custos acrescidos e para os quais os atletas não têm apoio por parte da federação. Normalmente, despendemos muitas horas do nosso dia para treinar e para estar aqui - onde ainda temos de pagar a inscrição - e muitas vezes os apoios são difíceis de arranjar”, aponta Mafalda Nogueira.
Outro dos vencedores portugueses da última sexta-feira no Europeu de OCR foi Duarte Alves, que venceu a prova de 3K no escalão 25-29 anos: “Tenho que abdicar de muito: tempo em casa e tempo de descanso.”
Duarte Alves trabalha num ginásio e conseguiu aproveitar a sua profissão para, nas horas de almoço, ensaiar a vitória em 25 minutos e 55 segundos: “Consigo conciliar os meus horários. Tenho de ter ali um tempo na minha hora de almoço para conseguir treinar pelo menos uma hora, uma hora e meia e ter ainda tempo para comer e voltar a trabalhar.”
Para o atleta de 26 anos, a “força de vontade” é determinante num desporto sem apoios. “Houve noites em que dormi só quatro horas para poder treinar e para poder conciliar o trabalho. As outras modalidades têm as condições, mas nós temos a força de vontade. Os portugueses são muito conhecidos por isso - nem sempre temos as condições, mas a força de vontade está cá e tentamos lutar por isso.”
O Campeonato da Europa de OCR termina este domingo, com as provas de equipa.