Urgências fechadas, serviços públicos sobrelotados e privados a abarrotar. É assim que se vive uma gravidez em Portugal, em 2025. Mas o cenário não é igual em todo o país. É na região de Lisboa e Vale do Tejo que a situação é mais grave
Cátia é mãe de terceira viagem… ou quarta… ou terceira e quarta ao mesmo tempo… Aos 37 anos, é mãe de duas meninas, de 13 e nove anos, e está agora grávida de gémeos. Um casal. Está grávida de 31 semanas e é seguida no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
“No início, era seguida no Centro de Saúde. Mas depois, como se descobriu que era gravidez gemelar, encaminharam-me para o Hospital de Cascais. Desde que fui encaminhada para o Hospital, não tenho tido qualquer problema. Sou vista sempre pela mesma médica, exames e ecografias sempre feitas a tempo e horas. Tudo tranquilo”, revela, em conversa com a CNN Portugal.
Mas o início, confessa, provocou-lhe algum stress: “A médica de família passou-me logo as três ecografias, uma para cada trimestre. Deram-me uma lista com várias clínicas privadas que faziam ecografias pelo SNS, liguei para todas. Várias vezes. Se não passei mais de um mês a tentar marcar uma ecografia não lhe digo nada. Só tinham vaga para daí a quatro meses… ora, se eu já estava a meio do primeiro trimestre, já não ia fazer a primeira no primeiro trimestre”.
Fernando Cirurgião, diretor do serviço de obstetrícia do Hospital de São Francisco Xavier, reconhece que a dificuldade em marcar ecografias é enorme: “Ou a grávida faz das tripas coração e acaba por arranjar os valores e recorrer a medicina privada ou acaba por não realizar de todo essa ecografia. E, por isso, também nos chegam cada vez mais grávidas portuguesas ou a viver em Portugal, sem qualquer histórico de seguimento da gravidez”.
Carina Silva, 42 anos, foi mãe há três semanas da pequena Sofia. A empresária e professora universitária já era mãe de Íris, de quase 18 anos, e de Rafael, com 13. Ambos nasceram na Maternidade Alfredo da Costa (MAC) e Carina recorda com carinho a forma como ambas as gravidezes foram seguidas no serviço público de saúde e até a forma como ambos os partos decorreram.
Desta vez, optou pelo privado. “Na verdade, fui seguida no público e no privado. Ia ao Hospital da Luz, quando a minha médica tinha disponibilidade no Hospital da Luz e ia à MAC quando ela tinha mais disponibilidade para me ver na MAC. Fui sempre atrás da minha médica”, conta.
“Fui uma vez ao centro de saúde e fui muito mal recebida. Temos de receber a vacina da tosse convulsa às 32 semanas. Fui muto bem atendida pelo enfermeiro que me deu a vacina, mas a médica disse-me logo que se ia reformar e que não me ia seguir”, acrescenta.
Na MAC, Carina só tem elogios a fazer ao capital humano da maternidade: “Via-se que todas estavam a dar o litro e cansadas, mas sempre com um sorriso e sempre acolhedoras. A nível pessoal, 10 estrelas. Nada a dizer”. Mas nem tudo foram cinco estrelas: “A nível administrativo, péssimo. Enganavam-se nas consultas, na marcação dos exames… Felizmente, tenho seguro de saúde há mais de 20 anos e felizmente a minha médica trabalha também no privado.”
Carina fez todas as ecografias no privado: “Fiz a primeira e as outras ficaram logo todas marcadas, porque, mesmo no privado, eles dizem que estão com dificuldades em acolher as doentes”.
“Aliás, tive de fazer uma terceira ecografia no terceiro trimestre, que não estava prevista, porque a Sofia não estava a crescer o suficiente, e vimo-nos aflitos para conciliar a agenda do médico. Não havia vagas”, lamenta.
Urgências fechadas
Carina acabou por optar pelo privado para o nascimento de Sofia. Ainda passou por uma aflição já na reta final da gravidez, porque a médica que a seguia foi de baixa.
“Fiquei em pânico. Pensei: ‘o meu suporte vai-se embora’. E só de pensar que iria ter um médico que eu não conhecia a acompanhar-me nesta fase final da gravidez, nesta fase tão importante. Mas ela depois tranquilizou-me e disse-me que me iria acompanhar até ao fim”, relata.
“Não imagino precisar de ir a uma urgência de obstetrícia e elas estarem fechadas e nós andarmos com o telefone ‘por amor de Deus, digam-me para onde é que podemos ir’”, confessa.
Mãe de terceira viagem, Carina sabe bem a importância da tranquilidade e da ausência de “pressão psicológica”, durante a gravidez e no momento do parto: “tudo corre melhor”. “Por isso é que não imagino a pressão psicológica que deve ser uma grávida que é seguida no público e não tem a certeza se vai apanhar o hospital aberto quando precisar de uma urgência ou quando precisar de parir”, lamenta.
Vanessa, tem 36 anos, é auxiliar de ação educativa, e está na segunda gravidez. Já tem uma menina com dois anos. As notícias que, diariamente, lhe chegam pela televisão ou pelo telemóvel deixam-na “assustada”. “Acho que isto já está no nível do pânico. Uma pessoa ter de andar a ligar para saber para onde tem de ir e depois fazer não sei quantos quilómetros para encontrar as urgências fechadas ou ainda acabar a ter o bebé numa ambulância no meio do caminho… é assustador”, confessa.
Por isso é que, embora vá às consultas com a sua médica de família, optou por ser seguida e ter o bebé no privado. “Mesmo as ecografias já estão todas marcadas no privado, porque passei pela experiência de as tentar marcar no público e foi horrível. “Mesmo no privado, se as quiser fazer pela ADSE, não consigo. Tem de ser a particular, se não, não tenho vaga”, revela.
A ansiedade
Cátia, a mãe grávida de gémeos, já sabe que o parto deverá decorrer no Hospital de Cascais, onde tem sido seguida. Mas, mesmo com essa quase certeza, as notícias não deixam de a assustar: “Eu penso ‘e se for comigo? E se eu precisar e não houver uma ambulância?’. Nós vemos várias vezes notícias destas. Imagina se não há aqui uma maternidade disponível, na hora do parto, e eu vou ter de andar a correr Portugal inteiro em trabalho de parto para ter os bebés!”.
Uma ansiedade que Fernando Cirurgião, que é também obstetra no Hospital dos Lusíadas e ainda em clínica privada, conhece muito bem.
“Aquilo que tenho notado ao longo dos últimos anos é que são os próprios casais que pedem para ir para o privado. Esta insegurança de não saberem qual é o hospital que vai estar fechado deixa-os numa incerteza muito grande e preferem o privado. É que o facto de uma urgência estar fechada, acaba por encaminhar as grávidas para as maternidades que estão abertas e estas, muitas vezes, acabam por não conseguir dar resposta às suas grávidas e às que vêm de outro hospital, porque a capacidade de internamento também se esgota”, explica.
No hospital público onde dirige o serviço de obstetrícia, o São Francisco Xavier, em Lisboa, não se ouve falar de urgências fechadas. Fernando Cirurgião é pronto na resposta que traz a explicação: “Não se ouve falar, porque nos vamos desdobrando”. “Somos apenas 12 médicos do quadro e metade poderia já não fazer urgências. Eu continuo a fazer urgências em pleno, aos 59 anos. Vamos tendo um espírito de equipa que vai funcionando. Mas vai sendo cada vez mais difícil”, confessa.
Privados “a abarrotar”
Fernando Cirurgião diz mesmo que, se não fosse a medicina privada, a obstetrícia em Portugal “estaria caótica”. “A verdade é que a vigilância, os números de seguimento da gravidez, os exames e os partos em termos de medicina privada estão a ajudar a resolver toda esta dinâmica na obstetrícia em Portugal. Estaria muito pior”, assegura.
“Neste momento estão a nascer mais bebés em medicina privada do que em hospitais públicos”, sublinha.
O recurso ao privado tem sido de tal forma crescente que, garante Cirurgião, “muitos casais acabam por sentir já essa incapacidade de resposta, mesmo no privado”. Também os hospitais privados estão “a abarrotar” e a sentir alguma incapacidade em dar resposta, porque, também aqui, os recursos, quer humanos, quer materiais (número de camas para internamento, por exemplo) são finitos.
Carina Silva corrobora: “No meu caso, como foi uma gravidez planeada, foi logo tudo marcado. Análises, ecografias… ficou logo tudo marcado. Mas tenho relatos de pessoas próximas, que não tiveram a mesma sorte e que, mesmo no privado têm sentido dificuldades”.
Realidade “localizada geograficamente”
Fernando Cirurgião admite que estejamos a falar de uma “realidade indiscutível”. Mas também de uma realidade “localizada geograficamente”, com um enfoque maior “na região de Lisboa e Vale do Tejo”.
E, a avaliar pelas palavras de Caldas Afonso, diretor do Centro Materno-Infantil do Norte Albino Aroso (CMIN) e obstetra no Hospital dos Lusíadas no Porto, parece ser verdade. “Qualquer senhora que está grávida, automaticamente têm o seguimento garantido no público. O que acontece é que, muitas vezes, as pessoas andam a ser seguidas em vários sítios ao mesmo tempo, no público e no privado, e isso leva a um duplicar de trabalho desnecessário”, diz.
“A questão das ecografias é um pouco diferente. Não é só a ecografia na gravidez. São exames que de uma maneira generalizada que precisam de um recurso humano qualificado para o fazer. E o problema em obstetrícia agravou-se desde o caso do ‘bebé sem rosto’. Nós devemos ter cerca de 250 colegas com aptidão para fazer ecografias obstétricas a nível nacional. É um número muito pequeno e não é uma situação facilitadora em termos de marcação de exames”, admite.
“Vai ouvir falar de pessoas com dificuldades para marcar ecografias renais também. São exames dependentes de um operador com competência específica para o fazer”, acrescenta.
O médico diz que qualquer gravidez que não seja de risco deve ser seguida no Centro de Saúde e os exames devem ser feitos no hospital de referência. E, em caso de complicações, o seguimento da gravidez deve ser feito no hospital.
“O processo tem de que estar perfeitamente estabelecido. Algo que não seja assim, não pode acontecer no Norte, nem no Centro, nem no Sul. O sistema de saúde como está tem de funcionar e os serviços têm de estar articulados”, defende.
Caldas Afonso sublinha que “a grande maioria dos partos” que acontecem no CMIN, “nem são da nossa Unidade Local de Saúde”. “Damos respostas às nossas grávidas quanto mais às outras”, garante.
O obstetra assegura que a linha de encaminhamento para as grávidas está a funcionar e que “até encaminha para as urgências por excesso”. “O que acontece, muitas vezes, é enviar para as urgências casos que seriam para enviar para o centro de saúde. Um serviço de urgência de obstetrícia tem de estar vocacionada para o parto. A linha SNS Grávida identifica muito bem as situações que devem ser encaminhadas para as urgências”, reforça.
“O espírito João Semana existe cada vez menos”
Ana tem 39 anos, psicóloga, é mãe de Eva, quatro anos, que nasceu no Reino Unido. “Ela nasceu no serviço público de saúde e só fui vista pelo médico uma vez. Lá as coisas funcionam de maneira diferente. Somos seguidas pelas midwives, que, na realidade são parteiras. Todo o processo é menos medicalizado. No caso da Eva, por acaso, tive algumas complicações e já foi feito por um médico. Caso contrário, seria feito também por uma midwife”, recorda.
Fernando Cirurgião não hesita em defender que devíamos “falar dos modelos que se vão seguindo nos outros países”: “O seguimento das gravidezes nesses países não é feito por obstetras de uma maneira geral. As ecografias também não são feitas por obstetras”.
Mas, no contexto que temos em Portugal, não seria por aí que se resolvia o problema. Fernando Cirurgião defende que “alguma coisa tem de ser pensada para atrair quadros, porque de futuro isso vai trazer-nos problemas, até de formação de novos médicos”.
“A nossa dificuldade é em termos humanos. Esta instabilidade também dificulta a atração de médicos para a especialidade e há cada vez há menos médicos a quererem ficar no serviço público. O espírito do João Semana existe em cada um de nós, mas existe cada vez menos, porque todos temos casa para pagar, escolas dos filhos para pagar”, defende.
“Tenho aqui colegas, médicos tarefeiros, diferenciados, claro, e que vêm aqui resolver o problema de falta de recursos humanos para as urgências, claro, mas que ganham à hora cinco vezes mais do que eu”, exemplifica.
Um susto, mas “tudo a correr bem”
Eva está prestes a ter uma irmã, que, ao contrário dela, vai nascer em Portugal. A mãe Ana está gravida de 30 semanas e é seguida desde o início no Hospital de Cascais, por se tratar de uma gravidez de risco. É lá que o bebé deverá nascer.
Ainda antes de ser encaminhada pelo Centro de Saúde para o Hospital de Cascais, Ana passou pela dificuldade de marcar a ecografia do primeiro trimestre. “Não conseguia marcar em lado nenhum. Pelo SNS não conseguia marcar e, mesmo no privado, não conseguia marcar para as datas que era necessário”, conta.
Depois disso, ainda passou por um susto: “Tive um sangramento, liguei para o SNS Grávida e mandaram-me para o meu centro de saúde. Mas, como o meu centro de saúde estava fechado, mandaram-me ir no dia seguinte à unidade de Mem Martins, que se o médico achasse que era importante, então encaminhar-me-ia para o hospital”.
“Foi horrível. Nem pensei duas vezes. Na altura, fui direta ao privado. Mas sinto-me uma privilegiada, porque, se eu não tivesse seguro de saúde pensava duas vezes antes de ir ao privado e teria ficado em casa com um sangramento que não se revelou grave, mas que poderia ter sido”, admite.
Desde que começou a ser seguida no Hospital de Cascais, Ana diz que “tem sido tudo muito rápido e certinho”.
Embora as notícias diárias sobre urgências fechadas e bebés que nascem em ambulâncias a deixem assustada, sente-se “bem acompanhada” e tem o alívio de saber que “as urgências do Hospital de Cascais não costumam fechar e até costuma receber grávidas de outras unidades que fecham”.