Mário Mesquita (1950-2022). Coragem reservada

28 mai 2022, 18:36
Mário Mesquita

Sebastião Bugalho, comentador da CNN Portugal, escreve sobre o fundador do PS e vice-diretor da Entidade Reguladora para a Comunicação Social que morreu esta sexta-feira aos 72 anos

O mais jovem entre os fundadores do Partido Socialista, em 1973, na Alemanha, com 23 anos. Dos mais jovens entre os deputados da Constituinte, logo em 1975. E o mais jovem diretor na já longa história do Diário de Notícias, em 1978, com menos de 30 anos. Mário Mesquita, inesperadamente falecido esta sexta-feira, aos 72, foi o decano do jornalismo português no pós-25-Abril.

A indiferença não era algo que a sua personalidade colhesse. De um modo ou de outro, durante e depois da Revolução, Mesquita esteve no centro dos acontecimentos, no nascimento de instituições que definiram a República e na reformulação de outras, que a moldaram. Romperia com o PS, abandonando a militância, em desacordo com Mário Soares. Manteve, apesar das suas convicções, a autonomia editorial do DN.

A vida de Mário Mesquita é, do início, como ativista anti-fascista, ao fim, na Entidade Reguladora da Comunicação Social, uma história de rebeldia contra poderes instituídos e de obstinação a favor do que julgava certo, mesmo que sozinho, Fê-lo, repetidamente, na solidão que só a independência provoca. Era um apaixonado pelas pinturas de Hopper, como todos os bons solitários.

É uma história que começa nos Açores, em Ponta Delgada, ao lado de Jaime Gama, Medeiros Ferreira, dos irmãos César e onde conheceu Melo Antunes, então lá colocado como oficial. Que passou pela Faculdade de Direito, onde não escondia o vício pela literatura, partilhando fichas de leitura entre os colegas. E que foi indelevelmente marcada pelo mundo dos jornais.

No seu arquipélago natal, era amicíssimo de Horácio César, nascido no mesmo ano, sendo os pais de ambos próximos e conterrâneos. Carlos César, que o lembra com carinho, conviveu com Mário Mesquita desde criança. “Era muito amigo do meu irmão. Foram colegas de liceu, vieram juntos estudar para Lisboa e participavam em cooperativas culturais com significado especial na altura. Ele foi muito importante para a minha formação”, admite o hoje presidente do Partido Socialista. “E devo-lhe também a sorte de, como eles tinham 15 anos e podiam chegar à meia-noite, eu que tinha 10 também podia”, graceja. Mais sério, saúda o seu contributo determinante para o estabelecimento e estudo da comunicação social na democracia. “Era um pedagogo. Em todas as redações há alguém que foi aluno dele”, aponta. Na Fundação Luso-Americana “devolveu-lhe a sua razão de ser”, elogia. E na personalidade? “Era o mais corrosivo do seu grupo [de amigos açorianos próximos do PS]. Isso gerou-lhe amigos próximos e inimigos desconhecidos. Vivia bem com isso”.

Antes disso, ainda durante o Estado Novo, esteve ativamente na oposição ao regime. Entre a fundação do PS e a revolução, era um moderado. “Não sendo cristão, não gostava de jacobinismos”, descreve Francisco Belard, seu colega na faculdade de Direito em Lisboa, na residência estudantil Pio XXII e contemporâneo nas redações do República e do Diário de Notícias. “Ele já era social-democrata quando eu ainda era mais marxista”, sorri o embaixador Luís Castro Mendes, com ele reconciliado só depois do PREC. “Foi sempre um independente. Sempre avesso a qualquer ortodoxia”, conta o ex-ministro da Cultura. E não só na política.

Quando integra a direção do DN, é o seu partido que está no governo, mas nem por isso se deixa influenciar. Acaba mesmo, apesar de pressões, por cessar a militância no Partido Socialista e comprometer-se definitivamente com o ofício de jornalista.ele, que chegou a ir a Paris ver Mário Soares exilado, com um bolo-rei embalado a pedido de Maria Barroso, só faria as pazes com o Presidente no final da vida deste.

A escritora Alice Vieira, de quem foi diretor, diz mesmo que Mesquita “não impunha nada indevido” à redação na Avenida da Liberdade. “Foi um dos melhores diretores que tive, sem dúvida”, assume a autora. E já na altura, com meros 28 anos, fazia da reserva a sua característica mais constante. “Não que não fosse capaz de dar um murro na mesa, se necessário”, recorda outro repórter de então, “mas com uma maturidade invulgar, naquele tempo e naquela idade”.

Arons de Carvalho, igualmente fundador do PS e com percurso académico ligado aos media, salienta um “legado incontornável no jornalismo e na universidade e um feitio frontal, desassombrado e com enorme sentido de humor” – traços que a vasta maioria dos que o conheceram também enumeram. Fernanda Câncio, jornalista e sua próxima, receia que na ERC “nunca mais haja alguém capaz de tamanha lucidez e coragem na defesa do jornalismo”, referindo-se às posições muitas vezes isoladas que não hesitou em tomar como membro do regulador, nomeadamente acerca do pluralismo no meio. Sara Pina, que o conheceu no meio académico, destaca o modo como defendeu “a igualdade e a igual justiça entre as pessoas, havendo dezenas de anónimos que não esquecem certamente isso”.

Pela sua preponderância na imprensa e, ao mesmo tempo, nas faculdades, garantiu uma ponte entre uma geração de jornalistas que aprendeu na tarimba e outra, que foi sua aluna, formada no ensino superior. A crítica literária Filipa Melo lembra-o como “um fantástico professor” e, em particular, das suas aulas com casos práticos em deontologia. “Sem paternalismos, retirava algum excesso de formalismo ao curso”, relata.

O humor era corrosivo, a divergência uma quase inevitabilidade, a postura irremediavelmente discreta. Talvez por isso, na sua despedida, a aclamação seja leve. Mas a marca fica.

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