"Não cabe na cabeça de ninguém que seja preciso ficar mais obeso para ter acesso a um medicamento". Mas em Portugal é assim

7 dez 2024, 08:00

A obesidade foi considerada doença em Portugal há 20 anos. E todos os anos custa cerca de 1.500 milhões de euros aos cofres do Estado. O problema é que a quase totalidade desse valor vai para tratar complicações. Daí que os especialistas insistam que, para poupar, evitando o avanço da doença, seja preciso começar a comparticipar os medicamentos que combatem o excesso de peso. No SNS, a única porta aberta é a das cirurgias bariátricas

“A minha relação com o peso era complicada. Nada fácil mesmo. Era como um ioiô”. Rui Ramízio, 53 anos, lembra-se bem como era andar com 85 quilos. Não era obesidade, mas o excesso de peso já estava a limitar-lhe a vida. “Sentia cansaço, desconforto. E parecia que andava sempre cabisbaixo, sem alegria para nada, não me apetecia fazer nada.”

Tentou várias dietas, mas a regra de pesar a comida não funcionava com ele. Os produtos light assustavam-no. Mas Rui não queria desistir. E a última abordagem, prescrita pela nutricionista Conceição Calhau, tem dado resultados. “Deixei de comer hidratos de carbono à noite. Comecei a comer leguminosas. Grão e feijão, por exemplo”, exemplifica.

Em um ano de mudanças, Rui Ramízio perdeu 13 quilos. No dia da entrevista com a CNN Portugal, fez questão de usar uma camisa que, no passado, lhe ficava apertada. É nestas pequenas coisas que estão grandes feitos. Mais à frente, contamos como Rui se sente hoje.

Rui Ramízio perdeu 13 quilos

Medicamentos: revolução em curso

Antes, é tempo de vincar que nem todos os processos de perda de peso têm resultados apenas com alterações na alimentação e mais exercício físico. “A obesidade não é imagem, é uma doença, que é importante tratar”, vinca Conceição Calhau, nutricionista e professora catedrática na NOVA Medical School.

E daí que esteja em curso uma autêntica revolução nos medicamentos para a perda de peso. Há em estudo cerca de 20 novas soluções. E, garantem os médicos, com resultados visíveis.

“Os medicamentos que surgiram nos últimos anos têm uma taxa de eficácia muitíssimo superior face ao que existia há dez anos no mercado. Há portas que se estão a abrir no desenvolvimento e investigação de novas moléculas, com o mesmo princípio fundamental, que tornam o tratamento farmacológico da obesidade cada vez mais promissor”, atesta Miguel Vasques, endocrinologista e também professor na NOVA Medical School.

Os especialistas alertam que, quando já há muito tecido adiposo, torna-se difícil gerir esta gordura só corrigindo o estilo de vida. “Precisamos, obviamente, desta ajuda farmacológica”, insiste Conceição Calhau.

Miguel Vasques, endocrinologista, insiste na importância de comparticipar os medicamentos que combatem a obesidade

Barreira em Portugal: não há comparticipação

O problema é que, em Portugal, onde existem quatro medicamentos aprovados para o combate à obesidade, estes fármacos não são comparticipados. Há muito que associações e profissionais de saúde vêm argumentando que o apoio estatal deveria fixar-se entre os 30% e os 40%.

“Não é possível aceder a estas terapêuticas porque, não sendo comparticipadas, são muito dispendiosas para a carteira dos portugueses”, lamenta Miguel Vasques, lembrando que os medicamentos para a obesidade podem ter resultados “já muito próximos de uma cirurgia bariátrica”.

“Não sendo um milagre, porque o doente não fica curado, pelo menos fica controlado. Passa-se a atingir um controlo na larga maioria dos doentes”, reitera.

Mesmo sem comparticipação do Estado, os portugueses estão a gastar mais dinheiro em medicamentos para a obesidade. Em 2023, gastaram 9,2 milhões de euros, praticamente o dobro do ano anterior. Uma caixa de um dos medicamentos mais procurados, com o nome comercial Saxenda, que dá para um mês, custa 245 euros. A mesma substância (liraglutida) na versão para diabéticos é comparticipada em 90%.

Medicamentos para a obesidade não são comparticipados em Portugal

Ficar mais obeso, desenvolver diabetes, ter acesso a terapêutica

Talvez esteja a fazer esta questão a si próprio: porque é que os medicamentos para responder à obesidade não são comparticipados? A dimensão (e, logo, o custo) desta pandemia – a pandemia do século XXI, segundo a Organização Mundial de Saúde – pode ajudar a explicar as opções políticas ao longo dos últimos anos.

“É um problema demasiado grande para comparticipar [o tratamento] a toda a gente. É um problema industrial, que implica uma resposta industrial. Primeiro, o produtor do fármaco não tem capacidade para produzir muitíssimo mais neste momento. E nós, enquanto sistema de saúde, não temos capacidade de pagar para que uma parte substancial dos doentes tenha acesso”, descreve Miguel Vasques.

Contudo, como já vimos acima, coloca-se uma questão de justiça. Em Portugal são comparticipados medicamentos para a diabetes tipo dois, mas que têm impactos comprovados na redução de peso – como o famoso Ozempic. Contudo, para aceder, é preciso cumprir um duplo critério. Para aceder a estes medicamentos com desconto, a pessoa com obesidade também tem de ser diabética.

“Não faz sentido nenhum. É como se tivéssemos uma premissa de que a pessoa tem de ficar com mais obesidade e, depois, com diabetes, para ter depois acesso ao medicamento”, reage Conceição Calhau.

Francisco Goiana da Silva, professor de Política Nutricional na NOVA Medical School, concorda: “Não cabe na cabeça de ninguém que seja preciso uma pessoa ficar ainda mais obesa para, então, desenvolver diabetes, para então ser elegível, para ter acesso a um medicamento que lhe vai dar resposta à obesidade.”

O passo óbvio, concordam os especialistas, está em alargar o acesso. É, dizem, uma forma de prevenção.

Ozempic tem efeitos na perda de peso. Mas só é comparticipado se a pessoa for obesa e diabética (Mario Tama/Getty Images)

Quanto gastamos com a obesidade (ou melhor, com as complicações dela)

Para os profissionais de saúde, é claro: o Estado acabaria a poupar dinheiro se comparticipasse o acesso aos medicamentos para a obesidade, numa abordagem preventiva, em vez da atual abordagem que está a ser seguida.

Façamos as contas. Todos os anos, segundo o estudo “O Custo e Carga do Excesso de Peso e da Obesidade em Portugal”, o Estado gasta entre 1.200 e 1.600 milhões de euros na resposta à obesidade. Tendo um valor médio como referência, cada português paga cerca de 150 euros por ano para dar essa resposta.

Contudo, da fatura total, mais de 99% destina-se a cobrir despesas com as complicações relacionadas com a obesidade. Esta doença, em si, pesa 13 milhões de euros.

“Ao tratarmos esta doença estamos também a tratar as outras patologias associadas, estamos a preveni-las. É cada vez mais clara a evidência do impacto destes medicamentos. Temos de encará-los como um investimento, não um custo”, argumenta Conceição Calhau.

Conceição Calhau alerta que mudanças alimentares e prática de exercício nem sempre são suficientes para perder peso

Até porque a lista de complicações associadas é longa. Hipertensão, diabetes, colesterol alto são as mais comuns. Há impactos na saúde mental. E, avisam os especialistas, na própria economia: basta ver os estudos que avaliaram os níveis de absentismo laboral mais elevados nas pessoas com mais peso.

“O que nós poderíamos estar a gastar, se investíssemos mais na prevenção, é brutalmente inferior àquilo que nós já estamos a despender em recursos do Serviço Nacional de saúde para o tratamento anual associado aos problemas da obesidade”, vinca Francisco Goiana da Silva.

Goiana da Silva lembra que “as medidas de prevenção da doença e promoção da saúde não colhem votos. Porque não têm visibilidade tangível, já que estamos a pagar para uma coisa não acontecer”.

Está à frente dos olhos de todos. E os números não mentem. Em Portugal, praticamente sete em cada 10 pessoas (67,6%) têm excesso de peso. Destas, três (28,7%) são obesas. E o estigma continua a fazer com que muitos se demorem na hora de pedir ajuda.

“Há o estigma de que são pessoas malcomportadas, que comem mal ou fazem pouco exercício físico. Em consulta, há doentes que sentem necessidade de se justificar. Explicam que se querem tratar, não pela imagem, mas por uma questão de saúde. Isso é lógico: é o corpo a gritar porque, efetivamente, já não estão bem”, confessa Conceição Calhau.

Em Portugal, a dieta mediterrânica funcionou como nossa aliada. Contudo, nos últimos anos, com as crescentes alterações de hábitos, que nos tornaram mais sedentários, o excesso de peso foi dando sinais. Mas, como vinca o cirurgião Gil Faria, especialista na área da obesidade, a trabalhar no Hospital Trofa Saúde, em Vila do Conde, a genética também tem a sua quota de responsabilidade.

“É fundamental. Há estudos científicos que mostram que cerca de 70% a 80% do nosso peso na idade adulto é determinado geneticamente”, diz.

Francisco Goiana da Silva diz que medidas de prevenção "não colhem votos"

20 anos como doença

A obesidade foi classificada em Portugal, pela Direção-Geral da Saúde, como doença em 2004. Passaram 20 anos. “Mas a verdade é que, fazendo o filme destes 20 anos, pouco ou nada se avançou”, reage Conceição Calhau. “É estranho declararmos uma doença e não comparticiparmos o tratamento”, junta Miguel Vasques.

Neste momento, a DGS não tem um plano estratégico para a obesidade, como já acontece com a diabetes ou com a atividade física. E, em dezembro de 2023, o então Governo criou um programa de prevenção da obesidade que, até agora, não viu a luz do dia.

Números da obesidade em Portugal preocupam especialistas

Cirurgia bariátrica: sempre o último recurso?

Os médicos acreditam que o acesso comparticipado aos medicamentos para a obesidade vai permitir perceber que doentes não reagem aos fármacos, filtrando-os para uma eventual cirurgia bariátrica. É, neste momento, o único tratamento para esta doença comparticipado pelo SNS.

Contudo, segundo os especialistas, os doentes chegam até ele já num estado avançado da doença, com um grau de obesidade extremo e doenças associadas. O processo inteiro, da primeira consulta à cirurgia, pode levar praticamente quatro anos. Tempo que ajuda a agravar ainda mais a doença.

Gil Faria, cirurgião, lembra que Portugal aplica critérios de acesso mais apertados do que outros países

Além disso, como explica o cirurgião Gil Faria, os critérios de acesso em Portugal estão “um passo atrás” daquilo que já se aplica no estrangeiro. Estima-se que existam 150 mil a 200 mil pessoas com indicação cirúrgica no país à custa da obesidade.

“Se utilizássemos os critérios internacionais, teme-se que esse valor poderia ascender 1,5 milhões ou mesmo dois milhões de pessoas. Estamos a falar de um aumento muito significativo da capacidade de tratamento destes doentes”, vinca.

Por ano, o SNS realiza entre duas mil a três mil cirurgias. A lista de espera está numa proporção parecida. Vejam-se os dados de 2023 da Administração Central do Sistema de Saúde: foram operadas 1.965 pessoas. Em lista de espera estavam outras 1.397.

“Muitas vezes olhamos para a obesidade como o fim da linha. Mas começamos a perceber que, pelo menos para alguns doentes, se calhar devíamos oferecer o tratamento cirúrgico o mais cedo possível, para evitar a progressão da obesidade”.

Valores das cirurgias bariátricas no setor privado são bloqueio para muitos obesos em Portugal. Alternativa no SNS pode demorar anos

Contudo, no privado, o preço será um obstáculo para a maior parte das pessoas – sobretudo porque a obesidade é mais prevalente quando as condições económicas são mais frágeis. “Uma cirurgia destas, no privado, pode variar entre os oito e os 12 mil euros. No SNS está avaliada em cerca de 4 mil e poucos euros. Mas é um valor puramente teórico, que não reflete aquilo que são os gastos reais”, revela.

O cirurgião assegura que, “no pior dos cenários, ao final de oito anos”, o SNS começa a poupar por optar pela cirurgia, uma vez que, sem ela, a evolução da doença pode implicar mais doenças associadas – e todos os tratamentos que a ela estão associados.

Pequenos passos, grandes mudanças

Prevenir é sempre o melhor remédio. Contudo, quando o problema já existe, a estratégia é clara: um passo de cada vez. Rui Ramízio, que perdeu 13 quilos num ano, concorda que a medicação para a obesidade devia ser comparticipada, mesmo que no caso dele não tenha sido preciso.

Rui não quer esquecer as fotografias antigas, porque elas recordam um estado a que não quer voltar. Mas na praia, em Carcavelos, a memória do telemóvel enche-se agora de fotografias de um por do sol raro nestes dias frios.

A mão está quase sempre dada à mulher, que o apoiou em todo o processo. “Além do peso estar estável, sinto-me com vontade e energia para tudo e mais alguma coisa.” Até para comprar camisas novas. Porque as antigas já começam a ficar largas. “É nestas coisas que se vê o resultado.”

Rui Ramízio diz sentir outra energia depois de ter perdido peso

 

Relacionados

Saúde

Mais Saúde

Mais Lidas

Patrocinados