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Psicólogo, Vogal do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses

O Psicólogo Responde: e se o problema não estiver nos outros? Um olhar sobre o narcisismo no quotidiano

6 jul, 10:00
Narcisismo (D.R.)

O Psicólogo Responde é uma rubrica sobre saúde mental para ler todas as semanas. Tem comentários ou sugestões? Escreva para opsicologoresponde@cnnportugal.pt

Nos últimos anos, a palavra “narcísico” tornou-se presença habitual nas conversas do dia a dia. Usa-se para descrever ex-namorados/as, chefes difíceis, políticos, figuras públicas e até colegas que falam excessivamente de si próprios. Mas o uso frequente do termo nem sempre vem acompanhado de uma compreensão clara do que ele realmente significa.

A verdade é que todos nós podemos manifestar traços narcísicos em certos contextos: quando somos elogiados, quando queremos causar boa impressão ou quando reagimos mal à crítica. Isso, por si só, não configura um problema de saúde mental. É fundamental não confundir comportamentos ocasionais com um padrão clínico persistente. Mas será que todos temos o tal “lado narcísico”? E, talvez mais importante, como saber se esse lado ultrapassou os limites do que é saudável? Para responder a esta pergunta, é essencial compreender o que está realmente em causa quando falamos de comportamento narcísico, ou seja, quando é apenas um traço da personalidade e quando pode configurar um problema ao nível da saúde mental.

O narcisismo não se resume a vaidade ou egoísmo. Trata-se de um padrão de funcionamento marcado por uma imagem grandiosa de si mesmo e da sua própria importância, uma necessidade intensa de admiração e uma reduzida empatia pelas necessidades e sentimentos dos outros. Estes traços, quando persistentes, intensos e inflexíveis, podem configurar uma perturbação da personalidade narcísica, como descrito em manuais de diagnóstico internacionais como o DSM-5 ou a CID-11.

Algumas pessoas revelam uma crença quase fantasiosa no seu próprio brilho ou poder. Outras exigem validação constante e reagem com irritação quando não a recebem. Há ainda quem espere tratamento especial em todas as circunstâncias ou instrumentalize os outros para alcançar objetivos pessoais, sem consideração pelas suas consequências.

Estes comportamentos, por mais subtis que possam parecer, devem ser avaliados como parte de um padrão, e não isoladamente. Pessoas com este tipo de funcionamento podem ter carreiras de sucesso e uma imagem exterior controlada, mas enfrentam frequentemente relações instáveis, isolamento emocional, conflitos interpessoais e crises de autoestima disfarçadas de arrogância.

Reconhecer estes padrões em nós próprios pode ser desconfortável, mas representa uma oportunidade de autoconhecimento. Ter consciência dos próprios comportamentos é o primeiro passo para compreender o seu impacto e, se necessário, procurar ajustá-los. Importa reforçar: ter traços narcísicos não é o mesmo que ter uma perturbação de personalidade narcísica. A diferença está na intensidade, na rigidez e, sobretudo, no grau de sofrimento e disfunção que provocam. Por isso, mais do que nos rotularmos (ou rotular os outros), importa perguntar: “Estes comportamentos estão a prejudicar as minhas relações?”, “Consigo reconhecer o outro nas minhas interações, ou o meu foco está sempre em mim?” ou “Estou disponível para refletir e mudar?”. A boa notícia é que a personalidade não é um destino. É possível mudar ou, pelo menos, ajustar-nos às nossas circunstâncias, desenvolvendo formas mais empáticas e saudáveis de nos relacionarmos com os outros, e connosco próprios. Esse processo exige disponibilidade interior, mas pode ser profundamente transformador. E muitas vezes começa com uma pergunta simples: “E se o problema não estiver nos outros?”.

A psicoterapia é um espaço seguro para explorar estes traços, compreender as suas origens, frequentemente ligadas a inseguranças precoces, experiências de desvalorização ou dinâmicas familiares disfuncionais, e construir formas mais equilibradas de estar no mundo. Também pode ser útil refletir sobre algumas questões. Por exemplo, sinto que sou mais especial ou importante do que os outros? Tenho uma necessidade constante de ser admirado ou elogiado? Reajo mal à crítica, com hostilidade ou com desprezo? Costumo usar os outros para atingir os meus objetivos? Tenho dificuldade em reconhecer as necessidades ou emoções dos outros? Sinto inveja das conquistas dos outros, ou acredito que me invejam?

Responder “sim” a uma ou mais das perguntas anteriores não significa que tenha uma perturbação narcísica. O mais importante é perceber a frequência com que estes comportamentos surgem, a sua intensidade e o impacto que têm na vida pessoal e profissional. Existe, afinal, um narcisismo “normal” e até saudável, todos precisamos de alguma validação externa para desenvolver autoestima, ambição e autoconfiança. Gostar de si próprio ou sentir orgulho nas suas conquistas não é, por si só, um sinal de narcisismo patológico. O problema surge quando a autoestima depende exclusivamente da aprovação dos outros ou quando o “eu” apaga o “outro”, comprometendo a empatia, a reciprocidade e os limites.

A pergunta “Sou uma pessoa narcísica?” não tem uma resposta simples ou imediata. Mas a capacidade de a fazer já é, em si, um sinal de maturidade emocional. E talvez a mudança comece aí.

Sugestões:

Falar com um psicólogo ou um psiquiatra não é um exagero. Pare e observe os seus padrões de comportamento. Tente perceber se são pontuais ou repetidos, e como têm impacto nos outros. Se reconhece padrões rígidos de comportamento, dificuldades nas relações ou sentimentos de vazio persistente, procurar apoio profissional é um sinal de coragem, não de fraqueza.

Preste atenção às reações desproporcionadas. Sentir-se ameaçado perante uma crítica ou reagir com agressividade quando contrariado pode ser um sinal de que algo precisa de ser olhado com mais profundidade.

Quem está ao seu lado sente-se ouvido? Escutar verdadeiramente o outro, sem tentar dominar, corrigir ou desvalorizar, é um excelente termómetro das nossas relações e da nossa empatia. Valorize as conquistas dos outros sem se comparar. Admiração genuína não diminui o seu valor, apenas o enriquece.

Às vezes, o problema não é só connosco. Se cresceu num ambiente exigente, negligente ou marcado por relações instáveis, pode ter aprendido a proteger-se com estratégias que hoje já não servem, mas que ainda magoam.

Se se reconhece em comportamentos que causaram dor a alguém, não desista de si. Responsabilizar-se pelo impacto das suas ações é o primeiro passo para reparar e crescer. A mudança é possível, e começa por assumir essa vontade.

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