ENTREVISTA || Carlos Tavares está a estudar a privatização da TAP e defende que o controlo deve permanecer em Portugal, porque companhias europeias representam sempre interesses estratégicos concorrentes aos nossos, diz. E defende que a primeira linha do caderno de encargos da operação deve ser o compromisso de devolver os 3,2 mil milhões de euros que os contribuintes injetaram na TAP após a crise pandémica. Como? Distribuindo lucros futuros de uma companhia que tem muito crescimento pelo futuro
A entrevista n' O Mistério das Finanças durou pouco mais de meia hora e foi transmitida no fim de semana, nos ecrãs da CNN Portugal e no podcast do Eco. Uma conversa onde Carlos Tavares "desenhou" uma estrutura acionista para a TAP, com recados para o governo, e depois criticou Donald Trump e elogiou o centro português. Ele é provavelmente o gestor português que chegou mais alto e mais longe na indústria mundial, depois de 43 anos no sector automóvel, 20 dos quais em funções executivas de topo, dez deles como líder: trabalhou e viveu no Japão, nos EUA e em França e foi, até dezembro do ano passado, presidente executivo da Stellantis, um colosso com 14 marcas comerciais, incluindo a Peugeot, a Citroën, a Fiat, a Lancia e a Opel.
Pedro Santos Guerreiro (PSG) - Comecemos por tirar o Elefante na Sala: vai comprar a TAP?
Carlos Tavares (CT) - Não está previsto, mas nunca se sabe. (risos) O futuro é o futuro e tem sempre que olhar-se para o futuro com um espírito aberto. A TAP é um projeto que tem criado, da parte dos meus amigos portugueses, um certo apelo, eles pedem-me que eu olhe para este projeto.
Eu tenho estado a estudar o projeto da TAP com muito interesse, porque acho que é um projeto estratégico para o nosso país. É totalmente estratégico. E a primeira observação que se pode fazer é que nos dizem que temos muitas companhias estrangeiras que estão interessadas. A primeira pergunta que se faz é: porquê Portugal não está interessado em utilizar a TAP como um instrumento estratégico de desenvolvimento do seu turismo? Porque a TAP é uma ferramenta essencial do desenvolvimento do turismo e, sobretudo, do turismo que queremos para o nosso país.
PSG - Já lá vamos. Deixe-me só perceber, para nos situarmos: estamos a falar de um grupo de potenciais interessados portugueses em investir na privatização da TAP. Ou seja, há capital em Portugal para um projeto desta dimensão, estamos a falar de centenas de milhões de euros. Em que fase de trabalho é que estão?
CT - Não estamos a falar necessariamente de capitais portugueses, mas estamos a falar de liderança portuguesa, ou seja, de utilização da TAP Portugal como instrumento, como ferramenta do turismo português e do desenvolvimento do turismo português. Então, estarmos a falar de fazer com que esta companhia continue a apoiar o desenvolvimento do turismo português, com capitais portugueses ou com capitais estrangeiros neste momento não interessa, o que interessa é que possamos utilizar estrategicamente esta empresa para desenvolver a nossa instituição turística.
António Costa (AC) - Mas é necessário que haja um grupo para garantir esse objetivo? Isto é, nós percebemos com a crise da pandemia que a aviação é de capital intensivo. Ficou claro que foram as grandes companhias - e mesmo essas com a ajuda de Estados europeus - que conseguiram aguentar-se. No caso português, David Neeleman acabou por sair, o Estado português tomou conta da operação. Não seria repetir o erro e arriscar, em vez de dar uma dimensão - cumprindo esses objetivos, nomeadamente turísticos - garantindo que a TAP integra um grande grupo internacional? Na lógica, aliás, do que aconteceu com o setor privado, uma consolidação muito grande do setor.
CT - Duas observações em relação a esta pergunta. A primeira observação é que não é assim tão capital intensivo como se pensa, porque os aviões, que é o grande investimento, estão todos em leasing. Portanto, não é assim tão intensivo como se poderia pensar. Ponto número dois: não podemos esquecer que há uma grande concorrência a nível da indústria turística dentro da União Europeia. E, portanto, o que me parece óbvio é que se nós queremos atrair os turistas da América do Norte, da América do Sul ou do Médio Oriente para a Europa, eles têm que chegar aqui a Portugal e ficar alguns dias em Portugal. Vender a empresa a um concorrente europeu - que, portanto, é um concorrente de um país que é concorrente turístico de Portugal -, representa um risco muito importante de que esses clientes da América do Norte, do Médio Oriente ou da América do Sul possam ir diretamente para Frankfurt, diretamente para Paris, sem passar por Portugal. Aí é que está o risco.
PSG - Então, o que está a dizer é que o controlo da TAP não deve ser vendido a empresas que já mostraram o seu interesse potencial na privatização: não deve ser vendido à Lufthansa, que é alemã; à Air France, que é francesa; ou à IG, que o grupo British Airways/Iberia.
CT - Eu acho que do ponto de vista estratégico - ou seja, não estamos a pensar no ano que vem, estamos a pensar a cinco ou a dez anos -, para desenvolver o turismo de qualidade para o nosso país, deveríamos fazer com que não haja um risco de que um comprador da TAP possa levar esses turistas diretamente do ponto de origem para o país deles.
Ou seja, um concorrente europeu representa esse risco, porque todos os países europeus são concorrentes turísticos de Portugal.
Para Portugal, o que nós queremos é que os turistas da América do Norte, da América do Sul e do Médio Oriente aterrem na Europa em Portugal e fiquem aqui uma semana, obviamente, a criar um crescimento económico para o país. E não queremos que esses turistas, volta e meia, possam ir diretamente para Paris ou diretamente para Frankfurt. É isso que nós queremos evitar.
O que quer dizer o quê? Quer dizer que, se formos a fazer uma parceria estratégica, com, por exemplo, 20% do capital com uma dessas empresas, está tudo muito bem, se conseguirmos limitar essa venda a 20%, sem que haja qualquer parte do contrato menos bem estudada que possa dar a possibilidade a essa empresa, um dia ou outro, de controlar a TAP Air Portugal.
E porque é que eles o fariam? Por uma questão de escala e por uma questão de posicionamento geográfico em relação às Américas, porque estamos, obviamente, muitíssimo bem situados em relação às Américas.
E, portanto, há toda uma série de benefícios que estão ligados à nossa geografia que eles não têm, e, portanto, precisam de mais escala e precisam aqui de uma espécie de aeroporto para estar a olhar para o Atlântico.
Ora, isso é uma qualidade, é uma força que temos que explorar para o nosso país. E não há necessariamente razão para que a gente considere que a nossa sobrevivência está dependente da escala desses grupos, porque esses grupos já têm os seus próprios objetivos estratégicos. E os objetivos estratégicos desses grupos não são, repito, não são de desenvolver o turismo português.
PSG - Portanto, na sua opinião, a TAP não deve ser vendida a um grupo europeu; não deve ser vendida uma participação superior a 20% a um concorrente; e o controlo deve ficar em Portugal.
CT - Estrategicamente, o seu resumo está perfeito.
PSG - Tem noção de que esta é uma conversa démodé em Portugal? A defesa de centros de controlo nacionais é um tema que, talvez desde há mais de uma década, não tem muitos apoios...
AC- Desde logo porque os contribuintes tiveram de meter três mil milhões de euros na TAP...
CT - Exatamente! Essa é a razão pela qual eu espero que, no caderno de encargos [da privatização], a primeira linha seja: "há compromisso deste país para se reembolsar essa ajuda ao cidadão português".
PSG - Como? Ainda não há avaliações, mas hoje a TAP não vale isso.
CT - Não vale isso, mas vai ter um crescimento rentável, nomeadamente graças ao segundo aeroporto [de Lisboa], que lhe vai dar a capacidade para reembolsar com o tempo essa ajuda dos cidadãos portugueses.
PSG - Ou seja, comprar hoje e partilhar lucros futuros.
CT - Exatamente, exatamente.
AC - Tenho que lhe fazer esta provocação, porque eu percebo o ponto em que está: Um grupo português, liderado por si...
CT - Não necessariamente.
AC - Então, já tem pessoas a trabalhar consigo?
CT - Eu tenho estado a discutir com muitas pessoas aqui.
AC - Mas ainda não tem, digamos, uma equipa.
CT - Não, não, não existe.
AC - Este grupo, na verdade, não vai capturar - com competências, seguramente - o que o Estado pode capturar fazendo hoje o negócio diretamente? Nós estamos aqui a criar apenas uma fase intermédia?...
PSG - Deixe-me complementar a pergunta. Portugal tem uma relação muito emocional com a TAP...
CT - Exatamente.
PSG - ... e além de ter essa relação emocional, está habituado a olhar para a TAP como uma fonte de prejuízos, historicamente foi assim. Mas quando olhamos para a frente, o que vemos é que hoje a TAP é uma empresa financeiramente "limpa" pela intervenção do Estado, tem uma frota moderna, tem restrições de crescimento que vão ser ultrapassadas e ainda tem a possibilidade de, perante um segundo aeroporto internacional de Lisboa, crescer muito. Ou seja, o que a TAP tem pela frente, possivelmente, se for bem gerida, é um futuro de lucros.
CT - Exatamente. Portanto, a TAP pode ser um instrumento de criação de valor não só para si mesma, como para a indústria do turismo português, e um valor de qualidade. Portanto, não podemos pôr a hipótese de que só empresas estrangeiras ou só gestores estrangeiros são capazes de gerir a TAP para criar valor. Isso seria uma hipótese mortífera. Não podemos fazer essa hipótese. A segunda hipótese que já podemos pôr na nossa reflexão é que o Estado já concluiu que não é um bom gestor da TAP. Portanto, se essa conclusão está feita de maneira razoável, vamos ter que confiar a TAP a gestores privados que possam criar esse valor, o que não quer dizer que não tenhamos interesse em guardar um controlo estratégico da ferramenta número 1, da indústria número 1 do país, que é o turismo.
PSG - Além disso, ainda diz que os contribuintes podem receber os 3,2 mil milhões de euros que injetaram [na pandemia].
CT - Isso, para mim, é a primeira linha do caderno de encargos. Falando ao povo português, sabendo o que disse àcerca da relação emocional e do que isto já custou ao povo português, a primeira coisa que devemos fazer é reembolsar a ajuda que foi dada durante o Covid - e que foi muito bem dada, porque se não hoje a empresa não existia e não estaríamos aqui a discutir esta oportunidade de criação de valor. Portanto, essa ajuda foi bem dada, temos que reembolsar.
Isso vai levar um certo tempo, porque vai ser reembolsado na base dos lucros da empresa e os lucros da empresa vão ser criados pela existência de um segundo aeroporto, que vai aumentar o volume de negócios, nomeadamente para o lado de lá do Atlântico. E portanto temos aqui uma abordagem em que todos podem ganhar, temos simplesmente de encontrar, no centro do nosso espectro político, uma solução que pode satisfazer todas as partes, e contribuir para que este país...
AC - Estamos mesmo a terminar este nosso Elefante na Sala...
CT - ... é um grande elefante (risos)
AC - ... é só um comentário/pergunta. Viveu em França, foi gestor em França, onde é conhecida a intervenção do Estado nas empresas. Tem essa experiência. Em Portugal não nos temos dado bem com isso. O que está a pedir, na verdade, é capital público e gestão privada.
CT- Exatamente.
AC - Não sei se será um bom caminho...
CT - Eu acho que isso é possível. Para já, como disse, e acho que tem toda a razão em mencionar isso, eu já vivi essa situação e não tive problemas com essa situação, não tive problemas. Obviamente, o Conselho de Administração e a liderança do Conselho de Administração tem que ser forte para que essas intervenções não possam acontecer e para que a empresa seja gerida no interesse dos seus acionistas, dos quais um deles pode ser o Estado, ou seja, o cidadão português.
PSG - É muito possível que esta privatização seja de 49%. O governo já chegou a dizer que preferia vender 100% mas não há condições políticas para isso. Parece-lhe bem uma venda de 49%?
CT - Eu acho que se pode responder a todas as perguntas de maneira muitíssimo simples: para que o Estado seja um ator apoiante e que não possa criar perturbação, o Estado pode perfeitamente estar abaixo dos 50%, digamos com 40%. Se quisermos um grupo de acionistas portugueses que garanta o controlo português desta empresa, como do meu ponto de vista deveria ser, é muito fácil, basta que 10 ou 20% do capital esteja na mão dos empregados e dos gestores e dos líderes da empresa. Com 40% nas mãos do Estado, a soma dos dois é 60%. Portanto, podemos guardar um controlo português com um bloco de acionistas portugueses de mais de 50%, perfeitamente. O Estado pode ser minoritário e ter um compromisso de não interferir na gestão da empresa, graças a uma liderança do Conselho de Administração que seja muito forte. Portanto, tudo isto é possível. Podemos alinhar as estrelas todas.
PSG - Acabou de desenhar uma estrutura acionista.
CT - Claro.
PSG - Estado com cerca de 40%, acionistas portugueses e trabalhadores com cerca de 20%, e o resto?...
CT - Pode fazer uma parceria estratégica com outra companhia aérea a nível de 20%, desde que não haja "call", se for europeia...
PSG - Ou seja, desde que não haja uma opção de compra [de uma participação acima dos 20%]
CT - E pode ter um fundo de investimento estrangeiro sem qualquer tipo de problema.
PSG - E com gestão portuguesa.
CT - Exatamente.
PSG - Pronto, fica a proposta para o governo.
AC - Vamos ver nas próximas semanas se o governo vai ouvir.
CT - Tudo isto é perfeitamente pacífico. Tudo isto é para ajudar o país. Não estou aqui a dizer que o governo fez bem ou fez mal. Não é o ponto. Estamos nesta situação já há muitas décadas e temos que avançar numa direção em que crie valor para o país. Temos que tratar da relação com o cidadão português, reembolsando a ajuda que foi feita durante o Covid. Temos que tirar as conclusões do facto de que o Estado não é um bom gestor deste tipo de empresas, portanto tem que ser minoritário, o que não impede que haja um controlo português da maioria do capital da empresa. E, portanto, podemos fazer com que todos ganhem. É isso que eu quero dizer.
Mistério n.º1: o carro elétrico foi um erro europeu?
AC - O carro elétrico foi um erro europeu?
CT - O carro elétrico foi o resultado do dogmatismo da governança europeia. E foi uma situação
AC- Explique-nos.
CT - Eu vou tentar, de maneira breve. Foi um erro que nasceu em 2015 com a "batota" do grupo Volkswagen, que desencadeou uma reação muito emocional dos líderes políticos europeus. A partir daí, correu tudo mal. E correu tudo mal porque a trilogia da governação europeia, ou seja, o Parlamento, a Comissão e o Conselho, não conseguiram olhar para esta questão de maneira objetiva, foi tudo muito emocional e muito dogmático. Chegou-se a uma situação em que, ignorando o facto que os veículos elétricos custam 40% mais do que os veículos térmicos, se pôs a classe média europeia numa situação em que já não pode comprar carros.
PSG - Aquilo que diz é que basicamente isto foi um erro de dimensões bíblicas para a indústria automóvel europeia, que emprega cerca de 14 milhões de pessoas. Eu percebo o seu argumento, que é basicamente dizer que os impostos europeus estão a ser usados para financiar, para subsidiar compras de carros chineses à custa de empregos europeus. Aqui chegados, acha que ainda há margem de ação por parte da Europa?
CT - Eu acho que há uma margem de ação. E o que eu acho muito grave neste episódio, que já dura desde 2018 - começou com a Volkswagen em 2015, o Parlamento Europeu tomou as primeiras decisões estruturantes em 2018 -, o que eu acho muito triste é que tudo isto foi dito e redito e explicado e explicado várias vezes, ou seja, não conseguimos fazer com que a trilogia europeia - Parlamento, Conselho e Comissão - tomassem a dimensão social deste problema. A dimensão social está agora à vista, como disse muito bem, há entre 13 e 14 milhões de pessoas na Europa a trabalhar para a indústria automóvel.
PSG - Mas sabe o que é que essa trilogia diz? Diz que foi a indústria automóvel que não se preparou para esses desafios.
AC - O ponto é esse, saber qual é a responsabilidade da indústria automóvel. Na verdade, se não tivessem sido criados os incentivos para a indústria europeia automóvel passar para o elétrico, hoje a indústria europeia não estaria ainda mais atrasada na transformação face ao que é a avalanche brutal dos chineses?
CT - Eu queria, se me permite, de maneira totalmente amigável, discordar da opinião que está por trás da pergunta, porque isso é que é o interesse da nossa conversa. O que se passa é que os regulamentos europeus não foram, a partir de um certo momento, neutros em tecnologia. Ou seja, era perfeitamente possível continuar-se a fazer evoluir a regulamentação no sentido de reduzir as emissões e obrigar a que todos os construtores de automóveis estivessem numa concorrência de tecnologias para encontrar a tecnologia que fosse a melhor em termos de redução de emissões para o custo mais favorável para as classes médias. E, portanto, se a regulamentação tivesse sido neutra em tecnologia, essa melhoria para o planeta teria acontecido numa competição entre diferentes tecnologias com custos diferentes.
O grande erro da liderança política europeia foi o de impor uma tecnologia sem se preocupar com o custo dessa tecnologia. E o custo dessa tecnologia que foi imposta, não pelos resultados, mas pelo dogmatismo europeu, gerou este problema de custo. E face a este problema de custo, chegaram os chineses num segundo tempo, com uma estrutura de custo que não tem nada a ver com a estrutura de custo europeia em termos de competitividade, dizendo que "nós sabemos fazer veículos elétricos ao custo dos veículos térmicos. Vocês não, mas nós sabemos". Mas isso foi o segundo tempo. Portanto, o grande erro da liderança política europeia foi impor uma tecnologia, em vez de fazer regulamentações cada vez mais difíceis, mas neutras em termos de tecnologia.
PSG - Toca num ponto super importante, que é impor a tecnologia aos consumidores. Porque os consumidores estão a ser altamente financiados, estimulados e incentivados a comprar carros elétricos. Não foram os consumidores que escolheram o carro elétrico, houve uma assimetria de condições, um desnivelamento criado pelo Estado para, desculpe a expressão, impingir o carro elétrico aos consumidores. E isto é altamente questionável num mercado livre. Mas foi feito, em princípio, para atingir um bem maior, que é o equilíbrio climático, o combate às alterações climáticas. Hoje, os Estados Unidos não querem saber disso, sobretudo com Donald Trump, a China não quer saber disso - e nós somos os bons alunos e estamos a perder com isso. Eu percebo este dilema, este paradoxo. Mas não está a ser uma espécie de negacionista em relação à necessidade de alteração industrial de produção, nomeadamente desta indústria, face às alterações climáticas?
CT - A sua pergunta é excelente. Eu acho que está a pôr exatamente o dedo onde deve pôr, ou seja, temos um bem maior que é a proteção do planeta. E não há qualquer discussão sobre isso. E não há qualquer discussão sobre o facto de as emissões de CO₂ serem a causa raiz desse problema.
Como é que tratamos do problema? Parece óbvio que temos hoje à nossa frente um egoísmo do mundo ocidental, que está claramente a dizer-nos, começando pelos Estados Unidos, que o planeta está para o segundo plano, o que interessa é a nossa qualidade de vida material. É o que os Estados Unidos nos estão a dizer. E, à medida que as condições económicas europeias se tornam mais difíceis, está a acontecer a mesma coisa na Europa. Porquê? Porque os subsídios alemães desapareceram, os subsídios italianos desapareceram, os subsídios franceses vão desaparecer.
Esses subsídios todos, para, como disse, impingir o veículo elétrico às populações, estão a desaparecer. Ou seja, a realidade daqueles 40% de custo excessivo está a aparecer: ou os carros são muito mais caros, ou temos que fazer reestruturações brutais com consequências sociais que ninguém quer ver.
AC - Ou a indústria é mais produtiva e mais eficiente.
CT - Exatamente, mas isso é o que obviamente a indústria sempre quis fazer e foi sempre impedida de fazer pelos políticos. Digamos as coisas como elas são. Porque, obviamente, ainda hoje se viu as visitas do Sr. Olaf Scholz às fábricas Volkswagen na Alemanha. A primeira coisa a dizer é "não, não, as fábricas não vão fechar". Portanto, estamos aqui numa ambiguidade em que o fusível - e por isso é que a sua pergunta é essencial, para os meus netos -, o fusível é o planeta.
O fusível do egoísmo americano, o fusível do egoísmo chinês e o fusível eventual do egoísmo europeu que possa vir a acontecer é o planeta. E isso é que é grave. Ora, havia e ainda há uma outra maneira de reduzir as emissões abordando este problema por um ângulo completamente diferente. E o ângulo é muito simples. Temos 1,3 mil milhões de carros térmicos em circulação no planeta, com emissões de há 20 anos, que são brutais.
Portanto, a verdadeira maneira de tratar este problema é de fazer com que esses 1.3 mil milhões de carros térmicos que têm uma idade média, digamos, entre 12 e 15 anos, sejam substituídos por carros que têm emissões divididas por dois ou por três.
PSG - Incentivos ao abate?
CT - Incentivos ao abate - e os carros de substituição só têm que ser muito mais virtuosos em termos de emissões, mas não necessariamente elétricos. E esses carros podem ser comprados pela classe média porque têm um custo muito mais moderado. E, portanto, a abordagem dogmática desta questão pela tecnologia que é imposta, não tendo em conta os estudos que foram feitos e explicados pela indústria automóvel, ou seja, "isto custa 40% mais caro, acautelem-se", a ignorância de tudo isto, e a vontade de ignorância de tudo isto, é que criou um problema maior em que agora, na situação em que estamos, em que o risco que se está a descrever é o risco de que a única pessoa que não está aqui à volta desta mesa, que é o planeta, é que é o fusível. E isso é gravíssimo para os meus netos. E, portanto, não estamos aqui a tratar de uma questão de negacionismo, estamos a tratar de uma questão de dogmatismo da liderança política europeia.
PSG - Eu acrescento outro risco de dependência, num continente que está a discutir as suas grandes dependências, militar, energética e geopolítica. Neste momento, nas baterias elétricas, a China é um rolo compressor, produz 80% das baterias mundiais e está a instalar linhas de produção na Europa.
CT - Claro, claro.
PSG - ... e isso leva-nos ao próximo misterio.
Mistério 2: qual é o destino económico da Europa e a estratégia política de Trump?
PSG - Este mistério é trazido por si. Porque escolheu este mistério?
CT - Por duas razões. Primeiro porque acho que a estratégia económica dos Estados Unidos neste momento não é boa para os Estados Unidos e não é boa para o planeta, mas principalmente não é boa para os Estados Unidos e vou explicar porquê. E a segunda, porque isto representa uma oportunidade para a Europa que eu gostaria de descrever, porque eu queria que a Europa melhorasse e a Europa tem capacidade para melhorar.
Primeiro, a nível dos EUA, a questão das tarifas é uma armadilha para os Estados Unidos. O aumento das tarifas vai traduzir-se por uma inflação para a classe média americana. E quando há inflação na classe média americana, há um impacto a nível de votos. E, portanto, isso vai criar um problema político para o Sr. Trump muito rapidamente.
PSG - Donald Trump está a cometer um erro para a economia norte-americana e isso pode ser uma oportunidade para a Europa?
CT - Exatamente. Portanto, o que eu estou a dizer é que quando se põe uma cúpula de tarifas aduaneiras por cima do seu próprio mercado, está a impor um consumo do que se é produzido dentro do mercado americano. Ora, a sociedade americana é uma sociedade materialista. É uma sociedade que vive do bem-estar material. E se há uma coisa que é óbvia hoje em dia é que a indústria americana de produção de mercadorias físicas - não estou a falar digital - é uma indústria que não é nada competitiva. Não é nada competitiva a nível de produtividade, a nível do que é capaz de fazer.
Isso vai-se traduzir por inflação. E o que ninguém está a dizer, e obviamente o Sr. Trump não está a dizer, é que o problema dele é que ele já não vai ser capaz de exportar bens e mercadorias físicas porque a sua indústria não é competitiva. E, portanto, está a pôr uma dimensão política por cima de um problema industrial muito básico, é que a produtividade da indústria.
AC - Está a proteger a sua indústria.
CT - O que quer dizer que, quanto mais protege, menos competitiva ela será e menos exportará no futuro. Ou seja, está a reduzir o seu campo de ação económico ao seu próprio mercado.
AC - Como é que a Europa pode responder?
CT - Fazendo o contrário. Ou seja, a Europa vai ter aqui uma consequência óbvia que é, primeiro, explicar ao cidadão europeu, o que obviamente vai ser muito difícil politicamente...
AC - São 27 a explicarem aos eleitores...
CT - E a explicação é: "cidadãos europeus, vocês têm de trabalhar mais". Ui, politicamente isso é um problema, não é? Não se pode explicar que temos de trabalhar mais. Portanto, a única possibilidade que temos não é necessariamente trabalhar melhor, mas é trabalhar melhor. Como é que se vai trabalhar melhor na Europa, perdendo menos energia e menos tempo, com regulamentações que não criam valor acrescentado e com burocracias que não criam valor acrescentado?
Nós temos na Europa um problema gravíssimo de excesso de burocracia, de excesso de regulamentação, que faz com que uma parte muito importante da nossa energia, do nosso cérebro e do nosso saber, seja absorvido.
AC - Para lá disso, na sua avaliação, que alterações, reformas, na Europa, no contexto europeu, devem ser a prioridade para aumentar essa capacidade de fazer crescer a economia?
CT - O que é óbvio é que, para além desta questão económica da Europa, que é o contraponto do que está a passar nos Estados Unidos, temos um outro problema que é a subida dos extremos.
A subida dos extremos está a acontecer porque o centro - isto é particularmente relevante no nosso país, em que temos um centro a 60% dos votantes -, o centro está a desiludir os seus votantes com uma falta de execução, uma falta de capacidade de execução. Se o centro tivesse uma capacidade de execução maior, já muitos dos votantes não estariam frustrados pelo facto do "isto não mudar, isto não avança, nada se faz".
O nó de tudo isto é mais capacidade de execução do centro, centro-esquerda, centro-direita, para que haja menos votantes que tenham a tentação de ir buscar os extremos porque nada muda.
E porquê que o centro não consegue executar? Não é que não queira, não é que não tenha boa vontade. Eu quero felicitar o centro, quero felicitar o centro-esquerda e o centro-direita. É porque eles não conseguem, porque estão eles próprios completamente armadilhados na burocracia e no excesso de regulamentação e no excesso de juridismo. Portanto, se queremos libertar essa energia, trabalhar melhor, quer dizer, trabalhar mais porque trabalhamos melhor, e aumentar a nossa competitividade em relação aos Estados Unidos.
PSG - E isso leva-nos à Boa Moeda, que nos trouxe hoje. E a boa moeda é o centro.
Boa moeda: Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro
PSG - A boa moeda que escolheu, o elogio que decidiu fazer, foi a Pedro Nuno Santos e a Luís Montenegro. Estes políticos não são muito elogiados...
CT - Eu queria elogiá-los por uma razão simples. A primeira razão é que ser um líder político na Europa, hoje em dia, é uma missão impossível. É uma missão impossível. Porque o nível de expectativas dos cidadãos europeus é excessivo em relação ao que eles podem fazer no contexto burocrático e jurídico em que tentam operar. Portanto, o que nós podemos fazer na Europa hoje é fazer com que o centro melhore a sua capacidade de execução. Se melhorarmos a nossa capacidade de execução com mais boa vontade, com mais compromisso, com menos regras, com menos burocracia, com menos normas, vai haver muito mais votantes de bom senso que vão votar ao centro. E, portanto, vamos travar a subida dos extremos. Para que isso aconteça, é preciso que, a nível do centro, e por isso é que eu mencionei Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos, é preciso que haja uma forma de coabitação, de respeito mútuo, de moderação nas próprias palavras que existe em Portugal.
Quando se regressa a Portugal depois de 40 anos no estrangeiro...
AC - Vê isso, vê essa moderação?
CT - Eu posso partilhar e testemunhar com os meus compatriotas que a maneira como os nossos políticos do centro se respeitam, que não sejam frente à comunicação social, é um positivo positivo da nossa paisagem política. E eu quero felicita-los porque esse respeito e essa moderação linguística é o primeiro passo de uma colaboração para aumentar a capacidade de execução do que os nossos cidadãos estão à espera.
Essa capacidade de execução necessita que se compreenda os problemas, necessita que haja menos ideologia, porque a ideologia do centro é a mesma, fundamentalmente é muito próxima, e portanto o que interessa é resolver os problemas para que a vida no país seja melhor. E isso começa por uma capacidade em interagir, em falar, em respeitarem-se uns aos outros, para que não haja insultos que possam poluir essa situação.
Dentro do microcosmos português, parece que há muita tensão. Eu posso partilhar e testemunhar que, dentro do microcosmos português, essa tensão é bem menor do que existe em França, do que existe na Alemanha, do que existe na Itália.
Isso é positivo. O que interessa é resolver os problemas do país. E, para resolver os problemas do país, nós temos uma alavanca que é muito forte, temos um centro a 60%. Nós, os cidadãos portugueses, temos todo o interesse em encorajar, felicitar, a empurrar os 60% para se entenderem na resolução dos problemas concretos deste país, porque podíamos ficar aqui mais duas horas a fazer a lista dos problemas, não é? (risos)