"Não vejo que haja qualquer conduta criminal do ministro Nuno Melo nem da parte dos ativistas da flotilha"

6 out, 22:08
Nuno Melo (Lusa)

Ministro da Defesa comparou os ativistas portugueses da flotilha humanitária a simpatizantes do Hamas. Fomos ver como a lei define e pune crimes de terrorismo - ou de apoio a terrorismo. Mas também o que diz a lei sobre a difamação de alguém - ou dos atos de alguém

Quando um ministro da Defesa equipara quatro ativistas portugueses a bordo de uma flotilha humanitária a simpatizantes de terroristas levanta questões legais e políticas que vão além de um habitual “bate-boca” entre representantes partidários: deveriam ser investigados ou penalizados, no caso de suspeitas de ligação ao Hamas? Poderiam os mesmos ativistas processar o Governo ou um dos seus membros, pelas acusações em causa? E o que diz afinal a lei portuguesa sobre terrorismo?

De acordo com o advogado ouvido pela CNN Portugal, Paulo Saragoça da Matta, o Executivo “nada tem que ver com declarações de uma pessoa singular, ainda que seja ministro”, o que significa que uma eventual queixa por parte dos tripulantes portugueses da Global Sumud teria de ser dirigida a Nuno Melo enquanto cidadão.

O enquadramento possível seria o crime de difamação, previsto no Artigo 180.º do Código Penal - “Um atentado contra o bom nome, contra a honra, das pessoas que participaram nessa expedição” - mas apenas se se provasse intenção de ofender ou a falsidade das afirmações. “Todos sabemos que os crimes contra a honra admitem situações nas quais não são puníveis, e uma delas é o visado pela queixa - o suposto arguido - ter feito afirmações verdadeiras ou, de boa-fé, acreditar que fez afirmações verdadeiras”, esclarece Paulo Saragoça da Matta.

O advogado considera, por isso, limitada a possibilidade de um processo contra o ministro, argumentando que “afirmar que alguém é simpatizante de terroristas pode ter categorizações muito diversas de gravidade”. Até porque se "trata de uma declaração a nível político, que atualmente acaba por não ter relevância criminal”, aponta.

Em segundo lugar, acrescenta, “em termos de prova de verdade ou de convicção de que é verdade é natural que, olhando para as atividades dos ativistas, se verifique um apoio à Palestina quando se sabe que a Palestina, para ser um Estado, tem der ter um poder político e o poder político é o Hamas, que é internacionalmente considerado pela grande esmagadora maioria dos estados um grupo terrorista”.

No que concerne aos próprios tripulantes portugueses, Paulo Saragoça da Matta também não considera que exista base legal para qualquer penalização, uma vez que a lei portuguesa sobre terrorismo (lei n.º 52/2003) apenas criminaliza o financiamento, a recolha de fundos ou o apoio material a grupos classificados como terroristas. O transporte de bens alimentares e mantimentos, como acontece com a flotilha, não se enquadra nestes critérios, “nem de perto, nem de longe”, conclui o advogado.

O que diz a lei portuguesa?

A Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto, define e pune os crimes de terrorismo, as organizações terroristas e os crimes relacionados com atividades terroristas em Portugal. Esta lei transpõe para o direito português as diretivas europeias no combate ao terrorismo, e foi alterada várias vezes para se adaptar às novas formas de ameaça, incluindo o extremismo religioso e o terrorismo individual.

Segundo o artigo 2.º, é considerado terrorismo o conjunto de atos cometidos com a intenção de intimidar a população, obrigar o Estado ou uma organização internacional a praticar ou abster-se de praticar um ato, ou desestabilizar as estruturas políticas, constitucionais, económicas ou sociais.

Os atos terroristas incluem, entre outros: homicídios, sequestros, destruição de infraestruturas, sabotagem ou incêndios quando cometidos com fins terroristas; O fabrico, posse ou utilização de armas, explosivos, substâncias radioativas ou biológicas com o mesmo propósito.

O artigo 4.º pune quem recrute, financie, forneça meios, ou acolha pessoas com vista à prática de atos terroristas, ainda que não participe diretamente nos ataques.

As penas são severas: entre 8 e 15 anos de prisão para quem participar numa organização terrorista; Até 25 anos para quem planear, executar ou liderar tais atos; Entre 1 e 8 anos para quem apoie logisticamente ou financeiramente as atividades terroristas.

O artigo 5.º abrange ainda o incitamento público ao terrorismo, punindo quem divulgue mensagens que incentivem ou justifiquem tais atos.

Por outro lado, a lei protege os direitos fundamentais e sublinha que o combate ao terrorismo deve respeitar o Estado de direito democrático e os direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição.

Montenegro repreendeu "todo o Governo"

“Parece-me ser tudo discurso político, sem qualquer preconceito, mas muito irrelevante do ponto de vista jurídico”, analisa Paulo Saragoça da Matta, referindo-se às declarações de Nuno Melo e à missão dos quatro portugueses. “O senhor ministro fez uma declaração política para marcar uma posição política e os ativistas, quando fizeram o que fizeram, também foi para marcar uma posição política. Pela via da difamação não vejo que haja qualquer conduta criminal por parte do senhor ministro e também não vejo que haja conduta criminal da parte dos ativistas”.

José Filipe Pinto concorda: foi uma “manobra política”, mas as palavras do ministro da Defesa expuseram a fragilidade da fronteira entre discurso partidário e linguagem de Estado. A partir da Universidade de Szeged na Hungria, o politólogo e comentador da CNN Portugal diz que as declarações de Nuno Melo devem ser ouvidas à luz do seu duplo papel: o de ministro da Defesa e o de líder do CDS-PP. Essa sobreposição, afirma, “dificulta a separação de águas”, sobretudo num contexto pré-eleitoral, em que o discurso político tende a ser mais marcado.

O especialista sublinha que, enquanto dirigente partidário, Nuno Melo procurou responder a uma parte do eleitorado que vê na flotilha uma ação “com motivação política” e não puramente humanitária, associada ao Bloco de Esquerda e ao seu esforço de recuperar protagonismo mediático. No entanto, ao fazê-lo enquanto ministro da Defesa, ultrapassou o grau de prudência exigido pelo cargo, “porque um titular de pasta governamental “não pode dizer, nem sequer insinuar, que há uma ligação entre a flotilha e o Hamas”.

José Filipe Pinto considera ainda que o caso pode ter repercussões internas no Governo, verificando que o Ministério dos Negócios Estrangeiros, liderado por Paulo Rangel, tem adotado uma postura de maior “contenção”, evitando pronunciar-se politicamente sobre a flotilha: “Não queria arranjar um problema com Israel, mas também não queria criar um problema diplomático, porque o Estado da Palestina acabou de ser reconhecido por Portugal”.

Acrescenta também que o episódio poderá reforçar a visibilidade do Bloco de Esquerda, que “tirará partido da vitimização política” e das reações públicas às palavras do ministro. “Vão pedir que o ministro seja demitido, vão ameaçar com queixas, mas de facto ele tem de ter muito cuidado. Uma coisa é dizer que a flotilha tem uma finalidade política e que não contribui para resolver a situação de calamidade humanitária em Gaza, outra é dizer que esta flotilha tem uma ligação ao Hamas”.

Apesar da gravidade das declarações, o politólogo diz que é “improvável” uma eventual demissão de Nuno Melo. “Nem o primeiro-ministro Luís Montenegro parece disposto a abrir uma crise governamental por causa deste episódio, nem o ministro tem interesse em recuar a poucos dias de um novo ciclo eleitoral”, observa.

Segundo a mesma leitura, a advertência pública feita por Montenegro, esta segunda-feira, quando defendeu “menos extremismo na forma como se expõem opiniões”, funcionou como uma chamada de atenção discreta “a todo o Governo” - e não apenas ao ministro da Defesa - mas sem consequências práticas. O objetivo, diz José Filipe Pinto, é evitar que esta situação fragilize o Governo e impedir que “sucessivos casos e casinhos se transformem naquilo que foi a parte final do Executivo de António Costa”.

“O Governo tem um orçamento para aprovar, há muitas dificuldades em cima da mesa e é preciso tento na língua, é preciso ponderação”, conclui.

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