E Leão XVI já deu uma prova de que “não vamos perder o património de Francisco”. Mas há tensões - e atenção a 2028
Um Papa com “conhecimento profundo da Cúria Romana” e dos “bispos em particular”, a segunda aposta consecutiva em alguém “de fora do clero secular” e um homem que “vem para criar muitas coisas novas dentro da Igreja Católica”: Leão XIV sucede a Francisco e, para já, conhece-lhe-se um objetivo: “Continuar a missão de retirar ao clero não só o peso que tem na hierarquia, mas, acima de tudo, dessacralizá-lo”, sublinha Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona.
Há vários níveis de continuidade apontados a Leão XIV, até agora conhecido como cardeal Robert Prevost, 69 anos, nascido nos EUA. Mas o mais evidente está relacionado com o legado que transporta de Francisco: é um dos cardeais de maior confiança do anterior Papa, tendo ocupado a direção do Dicastério para os Bispos, uma posição que lhe permitiu estar diretamente envolvido na escolha sobre quem pode ou não ser nomeado bispo.
Precisamente por isso, a escolha de Robert Prevost foi “inteligente”. “É uma grandíssima mais-valia pelo cargo que ocupou antes”, considera Paulo Mendes Pinto. “É uma pessoa que tem a noção do são os desafios práticos e logísticos que se colocam aos bispos e terá mais essa noção do que um Papa que simplesmente tivesse sido bispo ou arcebispo.”
E essa preocupação em escolher para Papa alguém com um “conhecimento profundo” da máquina do Vaticano, como salienta Pedro Gil, consultor de comunicação da Igreja, começou já a materializar-se muito antes sequer do início do Conclave, que durou breves dois dias. “Numa das últimas reuniões que os cardeais tiveram antes de entrarem em Conclave, uma das coisas que foi referido foi a necessidade de se continuar a reforma da Cúria Romana, mas também promover e reforçar a comunhão e a identidade no sentido da Igreja.”
E isso significa, diz Pedro Gil, “que existe uma consciência clara de que existem tensões que é preciso amenizar”. Porém, ao longo do Conclave, à medida que os 133 cardeais começavam a encontrar consensos e os votos se começavam a virar para Robert Prevost, o ambiente que transparecia para fora daquele encontro sigiloso não era de tensão mas de serenidade. “O testemunho de vários cardeais durante este processo indica que nesta fase mais difícil e melindrosa já começava a haver um ambiente bastante sereno, aberto e franco, mas ao mesmo tempo respeitador. Penso que seja uma evolução das aprendizagens próprias da sinodalidade”.
A sinodalidade, uma das marcas do papado de Francisco, procura abrir processos de decisão da Igreja à participação da comunidade católica - e é outro dos legados transportados de Francisco para Leão XIV. Manuel Vilas-Boas, padre e jornalista, diz que isso prova que “não vamos perder o património de Francisco”.
“Queremos ser uma igreja sinodal, que procura sempre a paz, atenta àqueles que sofrem”, disse o novo Papa na sua primeira intervenção na varanda da Basílica de São Pedro. “Sinodal”, continua Manuel Vilas-Boas, é portanto “a palavra que caracterizou de maneira absoluta o pontificado de Francisco”. “É um caminho novo e a igreja terá de enveredar por ele. A Igreja vai deixar de ter apenas um grupo a mandar nela, a projetá-la, porque passa também a contar com aqueles que são cristãos e que também estarão presentes na Igreja Católica.”

Paulo Mendes Pinto explica que a agenda para a sinodalidade da Igreja, que tem um calendário a cumprir até 2028 e que terá de ser seguido, é das primeiras prioridades que Leão XIV tem de ter em conta. “Uma das questões fundamentais é a desclericalização da Igreja, ou seja, o clero deixar de ter o peso que tem na hierarquia e, acima de tudo, deixar de ter um peso de sacralidade até. E esse processo dá-se não só retirando poder e retirando essa sacralidade ao clero, mas sobretudo indo ao encontro da ideia de base da comunidade.”
No fundo, acrescenta Paulo Mendes Pinto, trata-se de “qualquer pessoa que seja batizada” passa a ter voz dentro da Igreja. “Não é o destruir a hierarquia, mas auscultar as bases e criar dinâmicas de decisão a partir das bases e aí foi o que o Papa Francisco deixou de irreversível porque ficou um calendário feito”. E o novo Papa comprometeu-se a isso mesmo na sua primeira intervenção. “Reforçou que a Igreja tem de ser sinodal e que essa dinâmica tem de continuar.”
Dois Papas de fora da ‘bolha’
O cardeal Robert Francis Prevost nasceu em Chicago, nos EUA, em 1955, mas foi no Peru, de onde também tem nacionalidade, que se destacou como missionário e, mais tarde, como bispo. Ingressou na Ordem de Santo Agostinho com 22 anos e manteve a sua ligação àquele movimento até aos dias de hoje.
É também o segundo Papa de seguida que vem não do clero secular, mas do clero regular. “O Papa Francisco era jesuíta, portanto há aqui uma aposta que não acontece apenas em relação ao Papa. É uma aposta que acontece também em muitos bispados e até em paróquias, que é ir buscar padres às ordens religiosas para a gestão de igreja e isso é uma estratégia cada vez mais comum. Talvez porque quem está por dentro de uma ordem religiosa consegue incorporar um sentido maior de missão”, destaca Paulo Mendes Pinto.

Na sua primeira intervenção, o Papa também dedicou uns minutos para vincar que seguirá o exemplo de Santo Agostinho durante o seu pontificado. "Sou um filho de Santo Agostinho. Um agostiniano", afirmou, sublinhando a mensagem daquele que foi um dos mais importantes pensadores nos primeiros séculos do cristianismo: " Disse que, convosco, sou cristão e, nesse sentido, devemos caminhar juntos dentro da terra que Deus nos preparou".
Quem privou com Robert Prevost descreve-o como um homem “calmo, sereno, organizado e tranquilo”, mas que traz o “fulgor do carisma da ordem”, refere o padre João Miguel Silva, da Ordem de Santo Agostinho, que o conheceu o novo Papa enquanto prior-geral da Ordem. “Traz esse fulgor do carisma da ordem de estabelecer pontes e de sublinhar o mais possível o diálogo e a concórdia”. Tem, no entanto, uma diferença face a Francisco: “É bastante mais tímido”.
