Marcelo não tem sonhos, tem medos

30 mar 2022, 20:05

Marcelo foi desinspirador porque quis. Fez um discurso chato sobre contexto internacional porque quis. Foi displicente nas referências porque quis. Embrulhou conceitos económicos e entrou ele próprio numa estagflação de vinte minutos - porque quis. E vai pôr os comentadores e analistas a falar muito sobre um só tema porque quis - e conseguiu. A análise de Pedro Santos Guerreiro ao discurso do Presidente após a tomada de posse de António Costa

Medo da crise inflacionista que come dinheiro. Medo da crise económica que derrube mitos de pujança. Medo de crise social que dependure os derrotados da desigualdade. E além destes céus que podem cair sobre a cabeça, medo que um tapete fuja debaixo de uns pés – ou, melhor, que dois pés fujam do tapete hoje vermelho. Os pés de Costa. De Presidente para primeiro-ministro: não se vá embora a meio.

Politicamente, o discurso do Presidente de tomada de posse do novo governo foi isto.

E isto é uma frase: “Agora que ganhou por quatro anos e meio, Vossa Excelência sabe que não será politicamente fácil que a cara que venceu de forma incontestável e notável possa ser substituída por outra a meio do caminho”.

Quem diria que uma maioria absoluta começa assim, sem ensejo nem desejo. 

Marcelo Rebelo de Sousa marca sempre pontos e não dá ponto sem nó. Ao exortar desta maneira António Costa, para que não se vá embora, está conscientemente a ditar o título das notícias sobre o seu discurso; está conscientemente a plantar uma frase que pode ser-lhe útil no futuro; e está conscientemente a criar um facto político, o de que António Costa pode não ser suficientemente duro para resistir a ser Durão e sair a meio da legislatura.

Os comentadores e analistas vão doravante falar disso, como neste texto, e foi isso que Marcelo quis.

Quis porquê? Tem informações, privilegiadas ou mediúnicas, sobre os planos de carreira de António Costa? Receia que ele não aguente o que aí está e o que aí vem e voe para o calor de um cargo internacional? Está simplesmente pessimista?

O resto do discurso explica. A Europa enfrenta uma escalada inflacionista que vai retirar poder de compra também aos portugueses, sobretudo se incluirmos no custo de vida não apenas os produtos petrolíferos e alimentares mas também os juros, que já estão a subir. A economia vai crescer menos e sussurra-se o risco de uma recessão. E isso significa uma crise social, que se transforma em política até porque a oposição de esquerda está pronta para disparar paus de bandeira e a oposição de direita está de moca afiada. Sim, aquilo que seria uma espécie de passeio no parque para António Costa, uma maioria absoluta com dinheiro do PRR para investir e folga financeira do fim da pandemia para gastar, será afinal um tempo atormentado.

Marcelo já viu este quadro que se vai desenhar. E assim decidiu personalizar o seu discurso, que não foi para o governo, foi para António Costa. Mesmo ao talhar o início de um novo ciclo, de coincidência de poder autárquico, executivo e presidencial nos próximos quatro anos, Marcelo quis responsabilizar Costa pela manutenção dessa permanência. 

Sentado, Costa ouviu protegido pelo casaco assertoado e pela máscara na boca. Provavelmente, foi para o lado que dormiu melhor. Depois, num discurso também pobre e copy-paste da campanha eleitoral, o primeiro-ministro lá diria que não abusará dos poderes da maioria absoluta, que todos ouvirá, que criará oportunidades, e mais palavras, palavras, palavras.

Marcelo foi desinspirador porque quis. Fez um discurso chato sobre contexto internacional porque quis. Foi displicente nas referências porque quis (chegou a juntar evocações a John Donne e a Braga de Macedo na mesma frase, “não somos ilha nem um oásis”). Embrulhou conceitos económicos e entrou ele próprio numa estagflação de vinte minutos - porque quis. E quis, possivelmente, porque o tal “novo ciclo” não é bom, é o de um governo cheio de si mesmo, de um Parlamento desfigurado na oposição à direita, de crises económicas e sociais pela frente.

Marcelo não falou de sonhos porque não quis. Nem de sonhos, nem de esperança, nem de propósito, nem de um só raio de primavera. Falou de medos. Ou os seus ou os que quer que nós tenhamos. Provavelmente, a “cara que venceu de forma incontestável e notável” não está preocupada com as preocupações de Marcelo. Mas já sabe que agora lhe perguntarão se tenciona “ser substituída por outra a meio do caminho”. 

Como escreveu o poeta brasileiro, “no meio do caminho tinha uma pedra”. Marcelo já a anunciou.

Relacionados

Política

Mais Política

Patrocinados