Fundo offshore exige mais de 24 milhões de euros ao Novo Banco. Há acusações de "fraude" e de "conflito de interesses"

14 nov, 07:00
novobanco

O Novo Banco está a enfrentar um processo de muitos milhões de euros na justiça portuguesa por causa de um negócio que remonta aos tempos de Ricardo Salgado, no Banco Espírito Santo. No centro da questão está um fundo sediado num paraíso fiscal que já recebeu mais de 120 milhões de euros através de operações com o banco. Mas que quer mais. Já o banco português fala numa tentativa de "maximizar indevidamente lucros"

Um fundo de investimento nas Ilhas Caimão está a exigir ao Novo Banco mais de 24 milhões de euros. Chama-se CRC Credit, apareceu nos Paradise Papers, e já avançou com um processo de indemnização num tribunal português. Nos documentos judiciais obtidos pela CNN Portugal, esta offshore acusa o banco de cometer “fraude à lei” ao realizar “um negócio consigo mesmo” e de agir “numa clara situação de conflito de interesses”.

O processo está a decorrer desde abril de 2024 no Tribunal Central Cível de Lisboa. E, no centro desta ação, estão várias operações financeiras relacionadas com a negociação de créditos hipotecários - empréstimos imobiliários garantidos por hipotecas - com “sociedades de fachada” e um esquema que remonta ao tempo de Ricardo Salgado, o líder do BES que está a ser julgado por mais de 60 crimes pelo seu papel na derrocada do banco.

A disputa em que o Novo Banco está envolvido começou entre 2003 e 2004, quando o BES criou dois veículos para vender créditos hipotecários a investidores. Isso permitiu ao banco obter liquidez rapidamente e transferir o risco desses empréstimos para esses investidores, incluindo este fundo das Ilhas Caimão, que acabou por subscrever mais de 16 milhões de euros em títulos desta natureza. A ideia era que o investimento permitisse obter lucros em 2047, altura em que as obrigações atingiriam a maturidade.

Para conseguir vantagens fiscais, estas operações foram desenhadas de forma peculiar: em vez de os investidores comprarem títulos diretamente aos fundos que os vendiam, o BES criou uma série de “sociedades-veículo” na Irlanda que, por sua vez, seriam as detentoras desses ativos. Assim, era a essas sociedades (que “não tinham instalações ou trabalhadores”, alega a CRC) que os investidores adquiriram obrigações.

As carteiras eram quase na sua totalidade compostas por créditos hipotecários e, a partir de 2015, com o aumento exponencial do preço das casas em Portugal também esses títulos aumentaram significativamente o seu valor. É nesse contexto que, em 2019, o Novo Banco decidiu liquidar antecipadamente os fundos, mais de 20 anos antes do seu fim previsto, e decidiu recomprar os créditos. De acordo com a CRC, este negócio foi realizado “sem que fosse feito um processo competitivo, por um preço abaixo do valor de mercado e com base numa avaliação levada a cabo pelo seu próprio auditor (a EY)”.

De acordo com cálculos da sociedade que colocou o banco em tribunal, houve pelo menos uma diferença de 17,6 milhões de euros “entre o que foi pago e o que deveria ter sido pago”. “Valor esse o qual o Novo Banco se apropriou em claro prejuízo dos investidores”. Para contexto: segundo os cálculos do banco português, o investimento rendeu àquele fundo mais de 120 milhões de euros em juros.

Embora os fundos estivessem programados para durar até 2047, os regulamentos de gestão permitiam que existisse uma liquidação antecipada caso os mesmos fossem controlados a 100% por um único titular. O que, na prática, acontecia. Porque quem os controlava eram as tais sociedades-veículo e não os investidores. Segundo a petição inicial apresentada em tribunal, o banco português, aproveitando-se desta cláusula, deu instruções às sociedades que estavam na sua esfera para pedirem o reembolso antecipado, desencadeando a liquidação dos fundos.

Com esta atuação, o Novo Banco conseguia que os créditos hipotecários fossem retransmitidos para si próprio sem realizar um processo de venda e sem procurar outros compradores que poderiam oferecer mais pelos créditos. “O Novo Banco não se pode eximir da responsabilidade pela sua atuação ilícita e escudar-se em sociedades-veículo que ele próprio criou por motivos fiscais”, alega a defesa do fundo sediado nas Ilhas Caimão, acrescentando que essas mesmas sociedades “não exercem uma verdadeira atividade” e que os seus gestores “são apenas de direito, mas não de facto”. “Não têm instalações ou trabalhadores e servem um propósito puramente formal”.

Novo Banco nega "patente fraude à lei" e acusa fundo de tentar "maximizar indevidamente lucros"

Richard Robb é um dos fundadores da CRC. É professor universitário na Universidade de Columbia e autor de vários livros sobre investimento / DR

Esta prática que a CRC narrou ao tribunal é vista pelo fundo estrangeiro como uma “patente fraude à lei”. O Novo Banco, acrescenta, “como gestor dos fundos e intermediário financeiro, violou o dever de proteger os interesses dos investidores ao agir em conflito de interesses”. “Fez um negócio consigo mesmo, determinando o reembolso antecipado das obrigações e a liquidação do fundo, comprando os créditos para si próprio”. Além disso, “não priorizou os investidores ao evitar um processo de venda competitivo, vendendo os créditos por um valor abaixo do mercado, causando prejuízos aos investidores”.

Narrativa essa que é contestada pela defesa do Novo Banco, que argumenta que as operações foram conduzidas de forma legítima e transparente. “O que a CRC vem agora colocar em causa foram, ao longo dos anos, e sob diversas perspetivas, objeto de um escrutínio rigoroso por parte das entidades reguladoras, sem que nunca tenha sido suscitada qualquer questão de ilegalidade por parte de tais entidades". 

O banco afirma ainda que a utilização de sociedades-veículo para controlar os fundos não servia para “permitir qualquer intervenção ou controlo”, mas antes para “proteger os interesses dos próprios investidores”. A defesa do Novo Banco fala ainda numa “derradeira tentativa” por parte da CRC de “maximizar indevidamente os lucros que recebeu com estes investimentos”. O banco remata que o fundo das ilhas Caimão pretende “colocar em causa a legalidade das próprias estruturas adotadas nas operações, estruturas essas que eram em tudo idênticas a tantas outras em que a CRC investiu e continuará a investir”.

O caso continua em tribunal, sendo que o valor da ação que a CRC colocou contra o Novo Banco ascende a 24.206.160,08 euros. O fundo de investimento alega ainda que o banco enriqueceu indevidamente à sua custa. “Trata-se, naturalmente, de uma vantagem patrimonial, atenta a aquisição dos referidos créditos por um valor inferior ao seu valor real de mercado”, refere, acrescentando que “o enriquecimento se deu à custa da CRC, existindo uma evidente relação entre o incremento do património do Novo Banco, com o consequente empobrecimento da CRC, no sentido da diminuição da sua esfera patrimonial”.

Contactada pela CNN Portugal, fonte oficial do Novo Banco critica o timing da ação por terem passado “mais de 20 anos desde as operações de titularização feitas pelo BES (2003/2004) e mais de 5 anos desde a recompra (2019)”. Além disso, continua, há a “inexistência de qualquer relação contratual da CRC com o Novo Banco”, já que os investimentos foram feitos em títulos emitidos por sociedades irlandesas.

“As operações de titularização foram levadas a cabo pelo BES – em data muito anterior à constituição do Novo Banco –, quaisquer contingências que porventura tivessem existido permaneceram no BES”, acrescenta a mesma fonte, sublinhando que “as operações em causa são prática corrente de mercado” e “seguiram um mecanismo contratualmente previsto e que observou todos os trâmites legais e contratuais”.
 
Os tribunais portugueses, reforça por fim, “não são competentes para julgar o litígio, sendo que todos os contratos eram regidos pela lei inglesa e encontravam-se sujeitos à jurisdição dos tribunais ingleses”. “A CRC sabe que não teria vencimento nos tribunais ingleses e por isso vem agora, passados todos estes anos, montar uma tese que permita que o tema seja julgado nos tribunais portugueses”.

Embora pouco se saiba sobre os negócios da CRC, os homens que a lideram são figuras conhecidas no mundo da alta finança. O norte-americano Johan Christofferson, um dos fundadores, foi o segundo maior doador para a campanha de Boris Johnson em 2019. Já Richard Robb, outro dos criadores do fundo, é professor de economia na Universidade de Columbia e foi um dos oradores convidados da edição deste ano do Festival dell'Economia de Trento, Itália.​

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