B.1.1.529 foi identificada na África do Sul e no Botswana e já chegou a Hong Kong. Tem 32 mutações muito preocupantes, parece altamente transmissível e pode conseguir fugir às vacinas
Cientistas sul-africanos identificaram uma nova variante do SARS-Cov2, que também já foi detetada no Botswana, e tudo indica que é a pior variante de todas - provavelmente mais perigosa e mais contagiosa do que a variante Delta. O dado que fez soar os alarmes dos investigadores é uma insólita concentração de mutações na proteína espícula (spike), que funciona como o “gancho” pelo qual o vírus se liga às células humanas.
A nova variante, com o número de código B.1.1.529, tem 32 mutações na proteína espícula, o dobro do que acontecia com a variante Delta (que tinha entre 13 e 17 mutações nesta mesma proteína). “Uma horrível proteína espícula”, foi como o virologista Tom Peacock, do Imperial College de Londres, classificou a nova descoberta. “O número incrivelmente alto de mutações da proteína spike sugere que esta pode ser uma grande preocupação”, escreveu o investigador, citado pelo jornal inglês The Guardian.
Esta sexta-feira a Organização Mundial de Saúde vai reunir de emergência para analisar a nova variante e decidir se a classifica como “de interesse” ou “de preocupação”, e eventualmente dar-lhe uma letra do alfabeto grego - se for esse o caso, ficará conhecida como variante Nu, a 13ª letra do alfabeto grego.
Vários países reagem de imediato
Bastaram os primeiros dados dos investigadores para o Reino Unido reagir de imediato, proibindo na quinta-feira à noite os voos de seis países africanos: África do Sul, Namíbia, Lesoto, Botswana, Suazilândia e Zimbábue. A Índia já determinou “controlos e testes rigorosos” a viajantes que cheguem da África do Sul, e as autoridades da Nova Zelândia e do Japão deram a mesma indicação. A Austrália, que se prepara para reabrir as fronteiras a quem está vacinado, admite recuar nessa decisão “se for essa a recomendação médica”, disse o ministro da saúde.
Maria Van Kerkhove, líder técnica da OMS para a Covid-19, disse numa conferência de imprensa na quinta-feira: “Ainda não sabemos muito sobre esta [variante]. O que sabemos é que tem um grande número de mutações. E a preocupação é que quando temos tantas mutações, isso pode ter impacto na forma como o vírus se comporta.”
Embora um grande número de mutações possa tornar o vírus mais transmissível, mais resistente e mais perigoso, não é necessariamente assim. No Japão, os investigadores estão neste momento a estudar a hipótese de a grande quantidade de mutações do SARS-Cov2 estar a levar à sua “extinção natural”. Essa é uma das hipóteses que estão sobre a mesa para explicar o súbito declínio de novos casos entre os japoneses.
Alarme com o contágio em Hong Kong
Apesar de ter surgido na África austral - o primeiro caso detetado foi no Botswana, a 11 de novembro -, já há dois casos de B.1.1.529 identificados na Ásia: em Hong Kong, um passageiro oriundo da África do Sul terá sido o portador da nova variante, e já contagiou pelo menos outra pessoa. O indivíduo de 36 anos - um cidadão de Hong Kong que esteve na África do Sul entre 22 de outubro e 11 de novembro - tem as duas doses da vacina da Pfizer e apresentou resultado negativo nos testes de PCR feitos à partida de Hong Kong, e também quando regressou da África do Sul.
Apesar disso, teve de ficar num hotel de quarentena indicado pelas autoridades de Hong Kong, como acontece com todas as pessoas que entram no território. Só o segundo teste de PCR, feito já durante a quarentena, dois dias depois do voo de regresso, deu resultado positivo. A análise genómica do vírus confirmou que se trata da nova variante B.1.1.529.
O que se sabe das circunstâncias do contágio em Hong Kong torna o caso ainda mais preocupante: os dois homens não se conhecem e estavam em quartos separados, mas contíguos - porém, nunca terão estado juntos, pois isso é proibido durante a quarentena. Apesar disso, o passageiro oriundo da África do Sul terá contagiado o passageiro do quarto ao lado, um indivíduo de 62 anos que tinha iniciado a quarentena um dia antes depois de ter chegado do Canadá.
Os únicos momentos em que o indivíduo vindo da África do Sul abriu a porta do quarto foi para receber refeições - mas nessas ocasiões estaria sem máscara ou a usar uma máscara N95, com válvula, as chamadas máscaras “egoístas”, pois protegem quem as usa, mas não os circundantes. Terá sido assim que o vizinho do quarto do lado foi contagiado.
Este segundo paciente, que também foi vacinado com duas doses da Pfizer em maio/junho, só testou positivo ao quarto teste PCR feito em quarentena; ou seja, ao oitavo dia de isolamento (durante a quarentena obrigatória em Hong Kong, os viajantes são testados de dois em dois dias). Ambos os indivíduos apresentaram cargas virais muito elevadas e as amostras recolhidas nos seus quartos indicam uma grande presença de vestígios do vírus.
Ainda há poucas certezas sobre esta variante, mas tudo indica que poderá ser mais agressiva, mais transmissível e capaz de escapar aos anti-corpos de quem já está vacinado. O epidemiologista Eric Feigl-Ging, da Federação Americana de Cientistas, escreveu no Twitter que “parece que o escape vacinal poderá ser real com esta variante”.
“Um grande salto na evolução” do SARS-Cov2
De acordo com a informação divulgada na quinta-feira pelo Instituto Nacional de Doenças Transmissíveis da África do Sul, já há no país 22 casos confirmados da nova variante, sobretudo na cintura de Joanesburgo e Pretória, na província de Gauteng. Os casos ainda são poucos, mas é a tendência que é preocupante, bem como a eventual transmissibilidade e perigosidade da variante. As autoridades estão a investigar se o grande aumento de novos casos detetados nesta província nos últimos dias estará relacionado com a nova variante.
O ministro da Saúde do Botswana confirmou a identificação de quatro casos no seu país, todos de pessoas que terão estado na África do Sul, todas completamente vacinadas e com teste negativo quando saíram do Botswana.
Apesar de haver vários infetados com a B.1.1.529 que já estavam vacinados, a maioria são jovens sem vacinação. A África do Sul tem uma taxa muito baixa de cobertura vacinal - apenas 24% da população tem as duas doses - e a resistência à vacina é particularmente alta entre os mais jovens. O país tem milhões de vacinas armazenadas, mas a adesão à campanha de vacinação mantém-se baixa.
Segundo Mosa Moshabela, investigador da Universidade de KwaZulu-Natal, a África do Sul está a entrar na quarta vaga da pandemia, e o motor desta subida poderá ser a nova variante B.1.1.529, mas também uma outra variante detetada no país, a C1.2, que chamou menos as atenções, mas desde o início deste mês se está a sobrepor à variante Delta.
Mas neste momento todos os olhos estão na B.1.1.529. “Esta variante surpreendeu-nos, pois é um grande salto na evolução [do SARS-Cov2], com muitas mais mutações do que esperávamos, especialmente depois da terceira vaga da [variante] Delta, que foi muito severa”, admitiu Tulio Oliveira, diretor do Centro de Inovação e Resposta Epidémica da África do Sul, citado pelo New York Times.
Mais de trinta mutações apenas na proteína espícula significa “uma constelação de mutações muito rara”, acrescentou Oliveira. Só no recetor ACE2 (a proteína que provoca o ponto de entrada do coronavírus nas células humanas) esta nova variante tem 10 mutações. Para se perceber a gravidade, note-se que a variante Delta tem duas mutações nesse recetor; e a variante Beta (também surgida na África do Sul, no final de 2020) tem três.
Esta sexta-feira os mercados asiáticos já se ressentiram dos receios levantados pela nova variante. O índice Nikkei, no Japão, estava a cair 2,4%; na Austrália as ações começaram a negociar em queda. De acordo com a Reuters, esta sexta-feira os mercados registaram a maior queda em quase dois meses.