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Comentador da CNN Portugal

Os Estados Unidos podem ser o país de Trump - mas também o país de Mamdani

5 nov, 15:47

Os Democratas serão julgados não apenas pelos resultados das eleições intercalares de 2026, mas pela capacidade de renovação. De romper com o statu quo e criar uma ligação emocional com os americanos que votaram em Trump, não apenas com aqueles que o desprezam. 

Nos Estados Unidos, a democracia não é apenas testada no dia das eleições. É testada antes mesmo de os eleitores saírem de casa. A Constituição delega aos estados a prerrogativa de controlar o tempo, o local e a forma das eleições. Ainda assim, o Presidente dos Estados Unidos procurou influenciar o redesenho dos distritos eleitorais, restringir o voto por correspondência e controlar as máquinas de votação, sem oferecer explicações coerentes ou credíveis.  Estas ações criam precedentes perigosos e levantam suspeitas sobre a legitimidade do processo eleitoral, uma vez que a democracia está longe de ser apenas um conjunto de regras – é também um capital de confiança acumulado, a expectativa de que mesmo que um Presidente dos Estados Unidos telefone para a Geórgia, não “aparecerão” onze mil votos.  

A contenda começa antes da votação. Mas prolonga-se na arena da informação. Ao observarmos as diferentes presidências americanas, torna-se evidente que cada Presidente redefiniu a forma de comunicar com o eleitorado americano. Trump, porém, opera noutra dimensão – performativa, alimentada pelo Truth Social, por teorias da conspiração e por um merchandising político sem precedentes. Domina porque é capaz de captar a atenção, uma virtude que poucos Democratas dominavam até à ascensão de Gavin Newsom ou Zohran Mamdani. 

No seio do Partido Republicano, a narrativa de um eventual terceiro mandato - impossibilitado pela Vigésima Segunda Emenda, apesar do que diga Steve Bannon – tornou-se uma ferramenta de polarização. Donald Trump não poderá permanecer na Casa Branca em 2028, mas a ambiguidade das suas declarações desorienta a oposição e amplia a sua influência junto da sua base, limitando a margem de manobra dos seus sucessores. Poderá haver um trumpismo sem Trump, mas parece cada vez menos provável que exista um Partido Republicano sem ele.  

Os Democratas, apesar dos esforços de Ocasio-Cortez ou de Sanders, não têm sido capazes de articular uma oposição eficaz. Mas convém recordar que o poder eleitoral nos Estados Unidos, tal como na maioria das democracias, não se mede apenas pelo voto popular, mas também pelo controlo de posições estratégicas – dos governadores aos presidentes de câmara. 

Para recuperar a Câmara dos Representantes ou conquistar lugares no Senado no próximo ano, os Democratas terão de fazer muito mais do que desprezar Trump: precisarão de construir coligações amplas, capazes de abranger estados e interesses diversos. Mais do que estar contra, terão de ser a favor de alguma coisa. Políticos como Mamdani demonstram que é possível conciliar coerência ideológica com eficácia eleitoral. Que é possível alargar uma “tenda eleitoral” sem que isso implique necessariamente uma diluição da identidade política. 

Enquanto os Democratas tentam expandir a sua base, o seu adversário dedica-se a concentrar poder e a moldar a realidade institucional, contrariado por Governadores Democratas como Gavin Newsom, da Califórnia, Josh Shapiro, da Pensilvânia, ou Tim Walz, do Minnesota. O padrão autoritário de Trump revela-se na fabricação de emergências e na invocação de poderes extraordinários. Das tarifas - hoje questionadas - à mobilização da Guarda Nacional, cada gesto segue uma lógica: criar uma emergência e invocar autoridade excecional.  

As mobilizações em cidades governadas por Democratas, contra a vontade dos seus líderes, sob o pretexto de combater o crime, os protestos ou a imigração ilegal, ao contrário do que se diz, não resultam de impulsos presidenciais. São o culminar de uma estratégia calculada ao longo dos anos, concebida pelo Project 2025 para associar o aparelho militar à política de deportações em massa e transformar a Guarda Nacional num instrumento de autoridade federal

A manipulação das perceções e a pressão sobre as agências federais convergem na consolidação do poder e na redefinição dos pesos e contrapesos. O resultado é previsível, mas nem por isso menos perigoso: a coexistência entre normas aplicáveis a todos e decisões discricionárias aplicáveis apenas a adversários. A presença de tropas nas ruas das cidades americanas é também ela uma metáfora da deriva autoritária que ameaça os fundamentos da república americana. O que começa com a perseguição de imigrantes pode rapidamente alargar-se ao espaço cívico, transformando a exceção em norma e a segurança num instrumento ao serviço de um só homem – para quem o shutdown de trinta e seis dias é culpa de todos, menos dele.  

Esta convergência - entre manipulação eleitoral, espetáculo mediático e abuso institucional - é um padrão. E o futuro da democracia americana dependerá do reconhecimento desse padrão e da forma como os americanos lhe responderem. A vitória de Zohran Mamdani em Nova Iorque, a eleição de Abigail Spanberger como Governadora da Virgínia e de Mikie Sherrill como Governadora de Nova Jersey, além da viabilização da Proposta 50 na Califórnia, com margens confortáveis, enviam uma mensagem clara: não pode haver “reis” na América.  

Mamdani - o primeiro muçulmano Presidente da Câmara de Nova Iorque - encarna uma geração que não pede autorização para reinventar a política. As suas prioridades são claras: tornar os autocarros gratuitos, congelar as rendas dos apartamentos regulados, instituir cuidados universais para crianças desde as seis semanas de idade, aumentar os impostos sobre os mais ricos, o imposto sobre o rendimento das empresas e acabar com as deportações conduzidas pela ICE. O seu discurso funde a social-democracia com o quotidiano, procurando abranger a diversidade urbana de Nova Iorque – imigrantes, jovens, muçulmanos, eleitores progressistas – sem ceder à retórica sectária, e defendendo a ideia de que as crises sociais não são delitos, mas sintomas de desigualdade. No âmbito internacional, critica abertamente os crimes humanitários em Gaza, sublinhando a diferença entre antissionismo e antissemitismo, ao contrário do seu rival.  

A sua campanha foi, ao mesmo tempo, espetáculo e mobilização de massas. Mamdani começou com 1% de apoio e menos de cem mil seguidores no Instagram – à hora que escrevo, conta com quase seis milhões. Recorre ao humor como arma e às redes como ponte, com um tom próximo e autêntico que chega às pessoas. Arregimentou voluntários como poucos candidatos e entrou em bairros onde o voto não é visto como uma oportunidade, esforçando-se por mostrar como é viver na cidade que vai governar – uma cidade com um orçamento de cento e dezasseis mil milhões de dólares, trezentos mil funcionários e uma força policial maior do que o Exército belga

O Partido Democrata talvez não esteja preparado para Mamdani. A sua figura ultrapassa o próprio candidato: simboliza a irrupção de uma política pós-tribal, forjada nos movimentos sociais e na diversidade cultural que redefine o rosto da América urbana - a mesma que Donald Trump tanto abomina. E não seria certamente um candidato competitivo em muitas cidades ou estados americanos. Mas seja qual for a cor do estado - azul, roxo ou vermelho - os Democratas têm hoje pelo menos dois modelos de oposição capazes de reanimar a sua base - Newsom ou Mamdani - e travarem a agenda do Presidente dos Estados Unidos nas eleições intercalares de 2026.  

Porque mais do que uma mera oposição, impõe-se a reconstrução de uma coligação política – que junte a ala moderada e a ala progressista do Partido Democrata, desabituada de ganhar e empenhada em se autossabotar - capaz de devolver substância ao “Yes We Can”. Não como memória, mas como princípio orientador. Do direito à saúde à habitação, das creches aos transportes públicos - a luta contra a desigualdade e a recuperação de um melhor nível de vida para a classe média trabalhadora, não apenas para aqueles que ganham mais de cem mil dólares.  

Nos próximos anos, os Democratas serão julgados não apenas pelos resultados nas urnas, mas pela sua capacidade de renovação, de romper com o statu quo e estabelecer uma ligação emocional com os americanos que votaram em Trump – não apenas com aqueles que o desprezam. De deixarem de ser vistos como uma elite desligada dos problemas reais, mais próxima das "microcausas do que da microeconomia".  

Os Estados Unidos podem ser o país de Trump - mas também o país de Mamdani. 

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