Factos Primeiro: Ventura violou a lei ao nomear pai de deputada para assessor do grupo parlamentar do Chega?

29 abr 2022, 18:00
André Ventura caminha ao lado de Rita Matias (Chega)

A legislação em vigor prevê que o titular de um cargo público não possa nomear ascendentes ou descendentes. Porém, o despacho da nomeação de Manuel Matias para assessor do grupo parlamentar do Chega - pai da deputada Rita Matias - foi assinado por André Ventura. Há violação do espírito ou da letra de lei? E agora, que Matias se demitiu, ainda poderá ser responsabilizado? Há hipótese de ter de devolver o que ganhou no Parlamento

O presidente do Chega, André Ventura, então na qualidade de presidente provisório do grupo parlamentar do partido, nomeou os assessores do Chega para os órgãos da Assembleia da República, por despacho de 29 de março de 2022. 

Da lista então publicada em Diário da República, e onde constam Cristina Rodrigues, ex-deputada do PAN, ou Paulo Ralha, antigo militante do PS e apoiante do Bloco de Esquerda, fazia parte Manuel José Cardoso Matias. Nomeado como assessor político, Manuel Matias fora assessor de André Ventura na legislatura anterior e antigo líder do Partido Pró-Vida/Cidadania e Democracia Cristã - que acabou por se fundir com o Chega. Mas também é pai da deputada Rita Matias, que aos 22 anos foi eleita para a direção nacional do Chega e lidera a juventude do partido.

Apesar de a lei prever que não sejam nomeados ascendentes ou descendentes de titulares de cargos públicos, também refere que a nomeação é proibida apenas se houver relação de parentesco com quem nomeia. Ora, neste caso, sendo Ventura a assinar o despacho de nomeação do assessor político, que tinha grau de parentesco com uma das deputadas que iria assessorar, ficavam muitas dúvidas por esclarecer.

O pedido de esclarecimento e a demissão

Perante esta nomeação, a organização Transparência Internacional (TI) enviou esta semana uma carta ao presidente da Assembleia da República (AR), Augusto Santos Silva, a pedir esclarecimentos. E, já esta sexta-feira, Manuel Matias apresentou a demissão do cargo, alegando que, mesmo "estando seguro da absoluta legalidade e transparência com que o processo foi conduzido", renuncia às funções "como forma de evitar quaisquer constrangimentos adicionais ao normal funcionamento do grupo parlamentar, numa altura em que a oposição ao Governo do Partido Socialista tem que ser o foco principal da ação política do Chega". Mas será que Ventura pode ser sancionado por ter feito esta nomeação, ou porventura o próprio ex-assessor? Em ambos os casos, provavelmente, não. 

Vamos por partes: em comunicado divulgado no seu site, a TI referia que a nomeação do pai da deputada para assessor do grupo parlamentar poderia violar a lei e expunha as suas reticências: "A dúvida baseia-se no facto de tal ato de nomeação [ser] proibido pelo disposto na alínea b) do n.º 2, conjugado com o n.º 4 do artigo 2 da Lei n.º 78/2019, de 2 de Setembro, que estabelece regras transversais às nomeações para os gabinetes de apoio aos titulares de cargos políticos, dirigentes da Administração Pública e gestores públicos”.

Ora, a lei de 2019, aprovada após terem sido noticiados vários casos de nomeação para cargos públicos de familiares de membros do Governo, aperta as regras das nomeações governamentais e restringe as nomeações de parentes até quarto grau na linha colateral. Para este caso, prevê que "os membros dos gabinetes de apoio aos titulares de cargos políticos e cargos públicos" sejam "livremente designados e exonerados por despacho do titular do cargo respetivo", mas não podem ser nomeados "cônjuges ou unidos de facto do titular do cargo", "irmãos e respetivos cônjuges e unidos de facto", "pessoas com as quais o titular do cargo tenha relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil" ou "ascendentes e descendentes", quer sejam do titular do cargo ou do cônjuge da pessoa que os nomeia. 

Há violação da lei?

Assim sendo, na prática, não parece haver aqui taxativamente uma violação da letra de lei: quem assina o despacho que nomeia Manuel Matias, pai de Rita Matias, para assessor do grupo parlamentar, é André Ventura, com quem nenhum dos dois tem qualquer relação de parentesco. Porém, segundo fontes parlamentares ouvidas pela CNN Portugal, pode haver uma violação do espírito da lei, que procura claramente impedir relações familiares nos gabinetes de apoio aos políticos, ainda que esta situação, em termos de grupos parlamentares e sua assessoria, não esteja prevista com contornos específicos na legislação. 

É precisamente o que alega a Transparência Internacional: apesar de ser Ventura a assinar o despacho, enquanto presidente provisório do grupo parlamentar do Chega, a organização defende que “este ato de nomeação parece violar tanto a letra, quanto o espírito da norma, além de contrariar a razão e finalidade da lei”, que foi feita para “impedir e tornar ilegal a nomeação para órgãos políticos de familiares dos respetivos titulares”.

Em comunicado, a organização não-governamental destaca que o caso se torna ainda mais flagrante porque se trata de “uma relação de pai e filha, expressamente prevista e proibida pela letra da lei”. Além disso, o cargo de assessor “constitui uma função de assessoria ao grupo parlamentar ou aos deputados e não, do ponto de vista jurídico, incluindo constitucional e da regulação parlamentar, de um só deputado”.

A Transparência Internacional questionou assim o Presidente da Assembleia da República, no sentido de esclarecer a aplicação da lei e a constitucionalidade da nomeação, perguntando a Santos Silva "se entende a Assembleia da República que a lei permite a nomeação para membros de gabinetes de apoio de grupos parlamentares familiares de deputados que compõem o respetivo grupo parlamentar" e "se considera a Assembleia da República que ocorreu uma violação legal e/ou ética da regulação e/ou ética aplicável".

Caso a AR considerasse que existe uma violação, a TI perguntava ainda que diligências tomaria "para repor a legalidade". A lei prevê "a nulidade do ato de nomeação" caso se verifique violação das regras, bem como "a demissão do titular do cargo que procedeu à nomeação".

“Esta nomeação viola a lei e a ética parlamentar. A Assembleia da República aprovou a lei e está sujeita a ela. Não pode haver dois pesos e duas medidas, não é uma lei para se aplicar somente aos outros. Além disso, o Parlamento deveria estabelecer um padrão ético mínimo neste comportamento político e partidário, dando o exemplo, pela positiva, a fim de estabelecer um precedente, legal e ético”, defende Nuno Cunha Rolo, vice-presidente da Transparência Internacional Portugal, na declaração divulgada pela organização.

Apesar da demissão de Manuel Matias, a carta enviada pela Transparência Internacional ao presidente da Assembleia da República poderá ainda ser remetida para a Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, mesmo que seja apenas para efeitos de arquivamento. Em termos de penalização, e uma vez que não há relação de parentesco entre Ventura e Matias, o presidente do Chega dificilmente seria sancionado. Mas se a Comissão de Transparência considerar que houve uma infração ao espírito da lei pode, no limite, pedir a Manuel Matias que reponha os valores que auferiu durante o curto período em que foi assessor político do grupo parlamentar do Chega.

André Ventura quis limitar "relações familiares" na política

Em 2021, quando André Ventura ainda era deputado único do Chega, apresentou uma proposta de revisão constitucional à qual chamou "projeto Mortágua", com o objetivo de limitar as relações familiares de primeiro e segundo grau no exercício de cargos políticos. "O Governo de Costa estava cheio de relações familiares, Mariana Mortágua e Joana Mortágua são irmãs no mesmo grupo parlamentar, as autarquias são a vergonha que se conhece. Queremos acabar com isto!", chegou a escrever o líder do Chega na sua conta no Twitter, em março do ano passado.

O Governo de Costa estava cheio de relações familiares, Mariana Mortágua e Joana Mortágua são irmãs no mesmo grupo parlamentar, as autarquias são a vergonha que se conhece. Queremos acabar com isto!https://t.co/d9Iqa48D7X

— André Ventura (@AndreCVentura) March 14, 2021

A proposta previa que o artigo 109º da Constituição, que se refere à participação política dos cidadãos, passasse a contar com um número 2 que estabelecia que eram "expressamente proibidas relações familiares de 1° e 2°grau dentro do Governo, do mesmo Grupo Parlamentar na Assembleia da República ou nas Assembleias Legislativas Regionais, ou ainda na mesma lista de candidatura a Órgão Regional ou Local".

Mas esta restrição não foi tida em conta, por exemplo, nas listas do Chega nas legislativas de 2019, em que apenas Ventura chegou ao parlamento: Diogo Velez Pacheco de Amorim era o número dois do presidente do Chega na lista por Lisboa e o irmão João Salvador Velez Pacheco de Amorim era o cabeça de lista pelo círculo eleitoral de Coimbra. Mais quatro familiares dos Amorim concorriam nas listas: Lopo Durão Pacheco de Amorim, filho do vice-presidente do Chega, era cabeça de lista pelo círculo eleitoral de Viana do Castelo, o sobrinho Lopo de Santiago Sottomayor Pacheco de Amorim era 35.º na lista do Porto, Matilde Diogo da Silva Santiago Sottomayor, sobrinha de João Salvador Amorim, era quarta na lista de Vila Real e o irmão Francisco Velez Pacheco de Amorim foi o primeiro suplente na lista pelo círculo da Europa.

André Ventura chegou a justificar estas relações familiares nas listas com o facto de o partido ter decidido apenas em 2020 que não deveriam existir familiares em listas para os mesmos órgãos, decisão colocada em memorando interno da direção. E dizia mesmo que, não sendo aprovada a proposta de revisão constitucional de proibição de relações familiares, esta seria "a norma ética do Chega".

Já na legislatura atual, o Chega entregou no Parlamento um projeto de lei para impedir negócios entre o Estado e familiares de membros do Governo, que prevê que "nenhum familiar até ao terceiro grau de um membro do Governo poderá ter negócios com o Estado, numa primeira fase dentro da tutela do próprio ministério", disse André Ventura aos jornalistas.

O presidente do partido defendeu, num encontro de jovens do grupo político europeu Identidade e Democracia, no qual o Chega se insere, uma "luta sem tréguas contra a corrupção". E revelou que está a ser estudada a hipótese de impedir juridicamente que "familiares de membros do Governo possam ter qualquer negócio com qualquer área do Estado", em qualquer área governativa.

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