Criou o Departamento da Guerra, "mentiu" sobre ter acabado com sete guerras, quer ganhar o Nobel da Paz. Vai conseguir?

9 out, 21:00
Donald Trump (Evann Vucci/AP)

Uns dizem que sim, outros que não. Anúncio será feito pela academia norueguesa na sexta-feira de manhã, um dia depois de Trump ter conseguido que Israel e o Hamas aceitassem avançar com a primeira fase do seu plano de paz para Gaza. Se não vencer, "vai reagir muito mal"

Gritou-se "Nobel da Paz para Trump" na praça dos reféns em Telavive, na manhã desta quinta-feira, horas depois de a administração norte-americana ter anunciado um acordo entre Israel e o Hamas para a implementação da primeira fase do seu controverso plano de paz. Neste primeiro momento, Israel acede a cumprir um cessar-fogo que permita a libertação dos reféns ainda no enclave palestiniano, ordenando, em troca, que as tropas israelitas no terreno retrocedam, mas sem abandonarem o território. A chegar, a paz só virá depois.

"Donald Trump queria à viva força que o acordo entre o Hamas e Israel fosse celebrado antes da atribuição do Prémio Nobel, seria um elemento muito importante para justificar a atribuição", referia há alguns dias José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais, quando questionado sobre as possibilidades de a academia norueguesa premiar o Presidente dos Estados Unidos. Esse acordo acabou mesmo por chegar antes do anúncio. Mas isso não significa que Trump vá ser laureado.

A campanha de e para Trump vencer o Prémio Nobel da Paz (“ineficaz”, segundo o Le Monde) não é de agora. Mas será agora, concretamente esta sexta-feira, que a saga conhecerá o seu novo - ou derradeiro - capítulo. Vai o presidente dos EUA voltar a ser ignorado pela academia norueguesa, apesar do lóbi e das pressões? Ou vamos ter uma surpresa quiçá maior do que a de 2009, quando o comité Nobel premiou o então presidente dos EUA, Barack Obama, meses depois da sua tomada de posse? As respostas são tão polarizadas quanto o mundo de hoje.

“Se Trump tem possibilidade de ganhar? Tem, não apenas pelo número de nomeações, mas também por causa do peso dessas nomeações”, responde José Filipe Pinto a partir da Universidade de Szeged, na Hungria - curiosamente, um dos países que reclama o alto galardão para o atual líder americano. 

“Não creio que ele vá ganhar o Nobel da Paz”, contrapõe Julien Hoez, analista de geopolítica e editor do The French Dispatch, a partir de Paris. “Se ele tivesse acabado com uma guerra, diria que o merecia, mas ele não acabou com nenhuma. Parece ridículo dizer isto, mas se ele fizesse algo para o merecer, então merecia. O problema é que ele não fez nada para o merecer; pelo contrário, ele tornou tudo pior, em todos os lugares”.

Hoez não está sozinho na análise. “A ideia de que este presidente dos EUA iludido, pouco diplomático e nada pacífico possa alguma vez juntar-se a personalidades como Nelson Mandela, Dalai Lama e Martin Luther King Jr. é ridícula”, defende Peter van den Dungen, ex-bolseiro do Instituto Norueguês do Nobel, num artigo de opinião publicado nem um mês depois de Trump ter telefonado a Jens Stoltenberg, atual ministro das Finanças da Noruega e ex-secretário-geral da NATO, para falar sobre o seu direito ao Nobel da Paz.

O comité Nobel “não tem sido alvo de qualquer pressão política direta, mas é óbvio que existem várias campanhas em curso, quer públicas, quer privadas”, garantiu na semana passada Kristian Berg Harpviken, diretor do Instituto Norueguês do Nobel, que funciona como braço administrativo do comité. Harpviken não fez referências a Trump, mas assumiu que já houve, no passado, partes interessadas no prémio a contratar agências locais de relações públicas para aumentarem as suas chances de vencer.

Não foram mencionadas quaisquer entidades, mas sabe-se publicamente que o governo do Paquistão ou os primeiros-ministros de Israel e Camboja, bem como Azerbaijão e Arménia, declararam apoio formal a uma vitória do presidente norte-americano.

As deliberações do comité responsável pela atribuição do Nobel da Paz, composto por cinco pessoas selecionadas pelo Parlamento da Noruega, são mantidas em segredo durante meio século, o que significa que, a menos que Trump seja o vencedor deste ano, os historiadores - e demais curiosos - terão de esperar até 2075 para saber se o atual líder norte-americano chegou sequer a integrar a lista de finalistas. A questão é: vamos ter de esperar?

Um espinho chamado Obama

Uma das mais recentes referências de Trump ao Nobel teve lugar há poucas semanas, durante a Assembleia Geral da ONU - e de todas as falsidades que proferiu nesse discurso caótico, esta terá sido talvez a maior: “Acabei com sete guerras e toda a gente diz que eu devia ganhar o Prémio Nobel da Paz - mas eu não estou interessado em prémios.”

Não só a maioria das supostas guerras a que o presidente dos EUA diz ter posto fim nunca existiram (ou o seu fim não teve envolvimento da administração norte-americana), como é sabido pelos mais e pelos menos atentos que se há coisa que o líder norte-americano deseja mesmo muito é ganhar o Nobel da Paz - em parte, defende José Filipe Pinto, porque “no atual mundo de múltiplas ordens, Trump apresenta-se como líder da ordem liberal ocidental, e não entende como é que uma academia ocidental não valoriza o esforço que, segundo ele próprio, tem feito enquanto líder ocidental para promover a paz no mundo”.

Em 2019, ainda durante o seu primeiro mandato, quando alegadamente recebeu do então primeiro-ministro japonês Shinzo Abe uma carta a nomeá-lo para o prémio, Trump disse aos jornalistas: “Muitas outras pessoas também sentem [que o mereço] - provavelmente nunca vou ganhar, mas tudo bem.” Meses depois, antes de se encontrar com o então chefe do governo paquistanês, Imran Khan, disse que “se eles dessem o Nobel da Paz de forma justa - o que não acontece”, ele seria laureado “por muitas coisas”. 

Em janeiro de 2020, antes de uma horda dos seus apoiantes ter invadido o Capitólio para impedir que Trump passasse o testemunho a Joe Biden, reclamou que devia ter sido ele o distinguido e não Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro da Etiópia que supervisionou a assinatura de um acordo de paz com a Eritreia. “Vou contar-vos sobre o Prémio Nobel da Paz. Fiz um acordo, salvei um país e acabei de saber que o chefe desse país vai receber o Prémio Nobel da Paz por ter salvado o país. Mas sabem, é assim que as coisas são. Desde que nós o saibamos, é tudo o que importa... eu evitei uma grande guerra, salvei algumas pessoas.”

"Trump nunca digeriu bem a questão de Obama ter recebido um Nobel da Paz", defende o especialista em Relações Internacionais José Filipe Pinto (Getty Images)

Já antes de ser reeleito para a presidência, em 2024, voltou a fazer referência ao antigo presidente dos EUA laureado em 2009, num encontro no Detroit Economic Club em que disse: “Se eu me chamasse Obama, já teria recebido o Prémio Nobel em 10 segundos”. “Trump nunca digeriu bem a questão de Obama ter recebido um Nobel da Paz logo no início do mandato, sem obra que o justificasse, e aí assiste-lhe razão”, concede José Filipe Pinto - “e portanto, ele, Trump, não ter ainda recebido também esse galardão é uma mágoa que carrega desde o primeiro mandato e que se acelerou imenso no segundo mandato”.

Aparte a ironia de Alfred Nobel, pai dos prémios, ter sido o inventor da dinamite, “a grande verdade é que as justificações da academia norueguesa em vários casos, não apenas mas também no caso de Obama, têm sido frágeis e altamente contestadas”, adianta o especialista português. “Nem sempre as decisões do comité são isentas de contestação, bem pelo contrário - e por isso mesmo é que se torna fácil justificar a atribuição a Trump”.

Mas a ser atribuído, quais seriam os argumentos do júri? “Provavelmente colocaria a tónica na sua campanha de luta contra o terrorismo, na tentativa de resolver os conflitos através da negociação - apesar de não os ter resolvido”, adianta José Filipe Pinto. “Ele mudou de postura relativamente ao conflito na Ucrânia e esta mudança também foi ditada pela intenção de receber o Nobel. Esta nova postura de apelar à moderação, à contenção, ao não-envolvimento dos EUA - não houve aqui uma mudança no sentido da estratégia do país, é uma estratégia apenas e só de personalidade, com vista a ganhar o prémio.”

Um "líder histriónico" num mar de "ressentimento"

Apesar de todas as promessas e garantias durante a campanha eleitoral, prometendo ser o "Presidente da Paz" que acaba com guerras em poucos dias, Trump não só não acabou com a guerra em Gaza (o acordo acabado de alcançar corresponde apenas a uma trégua, para já, e não ao compromisso com a paz), como também está longe de conseguir acabar com a guerra da Rússia na Ucrânia. Contudo, foi por manter sempre os olhos no prémio que se assistiu a uma mudança de postura de Trump em relação a este último conflito, sugere José Filipe Pinto.

“Quando Trump humilhou Zelensky ficou mais próximo de Putin, depois quando recebeu Putin na cimeira do Alasca mais se reforçou essa ideia, e a partir daí ele percebeu que dificilmente lhe seria atribuído o prémio, por estar a fazer o jogo de Putin, e portanto alterou a sua posição: afastou os EUA do conflito e passou a apelar continuamente ao estabelecimento da paz. Esta mudança de estratégia só tem sentido para poder vir a ganhar o Nobel da Paz.”

Sendo esse o seu desejo, não é certo que o consiga, até porque o período de nomeações para o Nobel 2025 — 338 candidatos, incluindo 94 organizações — encerrou a 31 de janeiro, menos de duas semanas após o regresso de Trump à Casa Branca. Isso significa que as recentes manifestações de apoio de vários líderes como Benjamin Netanyahu, de Israel, ou Hun Manet, do Camboja, só contarão para o prémio de 2026. Acima de tudo, os acesos debates sobre se Trump merece ou não o Nobel da Paz são só mais um sinal dos tempos, ressalta Julien Hoez.

“A política hoje em dia tornou-se tão fragmentada e tão repleta de desinformação que pessoas como Trump mentem sem qualquer resistência”, aponta o analista. “Este é o homem que está a mobilizar tropas contra os próprios cidadãos dos EUA, que rebatizou o Departamento de Defesa para Departamento da Guerra porque os adolescentes que o apoiam gostam mais de como isso soa. A forma como ele e a equipa dele se comportam é ultrajante e muito do que ele está a fazer agora são coisas que, durante a campanha, disse que não iria fazer. Enfrentou alguma consequência? Não, porque as pessoas simplesmente não se importam. Quem o apoia acha que ele merece tudo – merece o Nobel, ser Presidente de França, ser Presidente do Timbuctu  e prefere ignorar as mentiras para poder continuar a apoiá-lo. É por isso que Trump chegou até aqui. Em última instância, tudo se resume a esta política de ressentimento.”

Destacando um “líder histriónico” que “inventa muitas vezes factos”, José Filipe Pinto não discorda da análise de Hoez, referindo-se às “complicações” de Trump “chegar atrasado ao encontro com a verdade” (já depois da entrevista, um estudo do International Center for Journalists concluiu que o agora presidente dos EUA foi a “principal fonte distribuidora de desinformação” no país em 2024, ano em que foi eleito). “Trump tem a sua análise da História, diz que terminou sete guerras mesmo que essa versão não encontre respaldo na realidade”, destaca o analista. “Ele cria a sua própria realidade, o que, para um líder de uma potência como os EUA, diria que é… não posso dizer perigoso, mas diria que é, no mínimo, complicado.”

Tudo isto é alimentado pelo que José Filipe Pinto diz ser o “autoconceito muito elevado, mas autoestima muito baixa” de Trump, que o levam a “precisar a todo o momento de reconhecimento por parte do mundo”, sendo o Nobel da Paz um reconhecimento muito apetecível. E isso poderá ditar uma reação muito má caso volte a ser ignorado pela Academia Norueguesa.

“Trump acha que pode reclamar o Nobel, quer reclamar o Nobel e não espera que o comité decida livremente, tenta condicionar a escolha. E se o comité não lho atribuir, ele vai reagir muito mal - desvalorizando o comité e o prémio e retaliando contra todos aqueles que, a seu ver, possam ter estado na base da não-atribuição do prémio” - que, na opinião do próprio Trump, será um "grande insulto" tanto para si próprio quanto para os Estados Unidos. 

A forma que essa retaliação tomará é só mais uma incógnita, embora haja suspeitas sobre um reforçar da guerra comercial com um país sentado sobre o maior fundo soberano do mundo, a rondar os dois biliões de dólares, que já se tornou arma de arremesso por causa da ofensiva de dois anos de Israel contra Gaza. Questionado pela Bloomberg sobre uma possível reação do imprevisível presidente dos EUA caso não vença, um alto funcionário norueguês limitou-se a responder em tom jocoso que pondera tirar o 10 de outubro por motivo de doença.

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