O país que foi dos mais ricos da América Latina tornou-se num dos mais pobres. O chavismo transformou a “democracia” em espetáculo e a pobreza em instrumento de manipulação. Mas a democracia não poderá ser imposta de fora – terá de ser conquistada pelos venezuelanos.
O país que se orgulhava de uma economia próspera consolidou-se, ao longo dos doze anos do consulado de Nicolás Maduro, como um laboratório de autoritarismo, militarização e colapso institucional. Maduro ascendeu à presidência em 2013, como sucessor de Hugo Chávez, solidificando um regime em que tribunais, forças de segurança e milícias paramilitares operam em perfeita sintonia para manter o poder. A fraude eleitoral tornou-se rotina: as eleições de 2018, 2020 e 2024 careceram de transparência, com a oposição marginalizada, perseguida ou exilada. O resultado é um país fragmentado, empobrecido e amedrontado, onde quase 83% da população vive na pobreza e um quarto dos cidadãos abandonou o país.
A oposição venezuelana, liderada por María Corina Machado e representada pelo diplomata Edmundo González, resiste com coragem e legitimidade eleitoral, ainda que sob ameaça constante. Machado, laureada com o Nobel da Paz, mobilizou milhões em torno de uma causa democrática que desafia a maquinaria repressiva do regime, para desgosto do Presidente dos Estados Unidos, que queria o prémio para si. Mas, apesar do reconhecimento internacional, a oposição enfrenta barreiras quase intransponíveis: prisões políticas, perseguição sistemática e um aparato militar profundamente leal a Maduro e ao chavismo.
A estratégia americana oscila entre um apoio clandestino, sanções seletivas e pressão militar, refletindo a ambivalência de Trump. Desde o início do seu segundo mandato, o Presidente apresentou sinais contraditórios: de uma abordagem transacional para uma postura beligerante, com a destruição de navios supostamente ligados ao narcotráfico e o reforço militar nas Caraíbas. Ao mesmo tempo, manteve canais diplomáticos abertos, explorando interesses estratégicos que vão além da democracia, como energia ou as migrações.
O dilema dos Estados Unidos desenrola-se em três cenários. O primeiro seria uma insurreição interna, organizada por setores militares descontentes e mobilizações populares, apoiada discretamente por serviços de intelligence e logística americana. Mas, apesar da retórica de Machado, tal movimento enfrentaria obstáculos quase intransponíveis – o controlo militar absoluto de Maduro, a divisão da oposição e a eficácia repressiva do regime. O segundo cenário, ainda mais temerário, seria a intervenção direta: ataques aéreos e terrestres, neutralização das defesas e eventual captura de Maduro. Uma operação de enorme risco perante sistemas de defesa, milícias leais e a presença de grupos dissidentes colombianos e paramilitares pró-governo. A Venezuela poderia colapsar num conflito prolongado, com repercussões regionais imprevisíveis e devastadoras.
O terceiro cenário, talvez o mais plausível, seria uma negociação: sanções condicionadas, supervisão internacional, libertação de presos políticos e um plano de transição democrática inspirado no “Democratic Transition Framework”. Proposto em 2020, o plano previa uma reforma institucional e eleições monitorizadas pela comunidade internacional, em troca de incentivos económicos e diplomáticos. As sanções permaneceriam até que o regime aceitasse uma transição política genuína, com a vantagem clara de devolver a voz aos venezuelanos e abrir caminho para superar a crise política, económica e humanitária.
No contexto latino-americano, alianças cruzadas e antagonismos perenes complicam ainda mais o quadro. Maduro mantém apoio estratégico de Rússia, China, Irão, Cuba, Turquia ou Nicarágua. Ao mesmo tempo, democracias regionais, como Brasil, Colômbia e México, operam com cautela, exigindo transparência eleitoral mas evitando confrontos diretos. Tanto Lula da Silva como Petro têm optado pelo pragmatismo: criticam Maduro, mas mantêm canais de negociação. Em contrapartida, líderes como Daniel Ortega e Miguel Díaz-Canel reforçam a retórica revolucionária, tentando preservar a unidade ideológica do bloco. A esquerda latino-americana, outrora unida pelo antiamericanismo, encontra-se fragmentada, evidenciando a redução da influência de Cuba e a ilusão de uma nova revolução que muitos ainda aguardam.
Mas a crise venezuelana não se limita às suas fronteiras. A migração pressiona os países vizinhos: mais de 2,8 milhões de venezuelanos estabeleceram-se na Colômbia, meio milhão no Brasil e centenas de milhares noutros países latino-americanos. A presença de grupos armados, tráfico de drogas e disputas territoriais, como o contencioso latente sobre o Essequibo com a Guiana, acrescenta tensão à instabilidade regional. A política de Trump, que combina sanções, incentivos e ataques militares nas Caraíbas, procura explorar fragilidades, enquanto Machado e a oposição articulam um plano pós-Maduro para recuperar o horizonte democrático, garantir o regresso dos venezuelanos ao seu país e reconstruir uma economia devastada.
O dilema americano é claro: intervir militarmente num país pode derrubar um ditador, mas raramente constrói uma democracia. A negociação exige paciência, consistência e mecanismos de verificação e supervisão. A Venezuela será um teste à inteligência diplomática e à responsabilidade internacional, demonstrando que é possível libertar um país sem impor uma transição desde fora. Sem dividir a sociedade ou reformar instituições à custa de uma guerra civil.
Mas não convém ter demasiadas ilusões sobre María Corina Machado. Por mais meritória que seja a sua resistência a um regime criminoso, defende parcerias com governos que praticam políticas condenáveis noutras latitudes: apoia há anos o governo de Israel e a transferência, contrariando as resoluções das Nações Unidas, da embaixada venezuelana para Jerusalém, alinhando-se com Washington e com Donald Trump, que não se cansa de elogiar. O seu partido, Vente Venezuela, terá mesmo assinado acordos com o Likud e desde então, não há registo de qualquer retração ou preocupação em relação ao povo palestiniano.
Mas o pessimismo é um luxo dos que podem desistir. A verdadeira vitória, tanto para a Venezuela como para os venezuelanos, seria que todos os envolvidos abrissem a porta a uma saída negociada – a umas eleições realmente livres. E que os Estados Unidos evitassem as opções que tanto sofrimento trouxeram à região. Não foi há muitas décadas que oito ditaduras militares conspiraram para sequestrar, torturar, violar e assassinar centenas de opositores políticos.
Evitar uma espécie de Operação Condor e permitir que a democracia emergisse do autoritarismo sem uma guerra civil seria um triunfo digno de um Prémio Nobel. Num cenário em que a administração Trump autorizou ações encobertas da CIA na Venezuela e o Pentágono estuda diferentes cenários, as potências regionais terão certamente um papel a desempenhar. De Nicolás Maduro, pouco poderemos esperar. Mas de María Corina Machado – Prémio Nobel da Paz – será legítimo esperar que tenha em conta que o que está em causa não é apenas o futuro e as aspirações legítimas de alguns venezuelanos, mas de todos.
E da própria América Latina, onde o realismo é mágico por necessidade, não por escolha.