Grupos no Facebook continuam a publicar de forma diária conteúdo negacionista sobre a covid-19 mas o foco também já se virou para a hepatite aguda ou para a guerra. Relatório de segurança interna avisa: estes movimentos "aumentaram as ações de desinformação" e radicalizaram o seu discurso e a sua ação
Os negacionistas perderam algum espaço mediático mas não desapareceram. Um pouco por todo o mundo continuam a tentar fazer valer as suas teorias, seja dificultando o processo de vacinação de covid-19, como aconteceu em Portugal, seja a estabelecer ligações não comprovadas entre a hepatite aguda que apareceu este ano nas crianças e as vacinas contra o SARS-CoV-2.
Chama-se “O Elefante na Sala” e tem mais de cinco mil membros: é um grupo no Facebook que “pretende juntar pessoas para apoiar a Alternativa Democrática Nacional (ADN)” e tem o objetivo de eleger pelo menos um deputado para a Assembleia da República. Um dos membros é Bruno Fialho, presidente da ADN, que publica com regularidade naquela página - que entretanto evoluiu além da questão política, que ficou relegada para segundo plano.
À entrada o Facebook faz logo um aviso: “este grupo debate sobre vacinas”. Mas não só. TAP, guerra ou partilha de dados são alguns dos temas discutidos, sempre numa ótica em que o contribuinte está a ser enganado.
Na partilha de uma notícia da CNN Portugal sobre a União Europeia dar mais poder à Europol, um dos utilizadores refere que “tudo se está a alinhar para o domínio completo de todos os cidadãos com o #novotratadopandemias e a #leideemergênciadesaúdepública”.
Numa outra publicação do mesmo utilizador, desta vez sobre a aquisição de medicamentos contra a covid-19 para Portugal, é sugerido que existe um “jogo da procura e da oferta com os antivirais assassinos que aí vêm e os que já cá estão”.
As duas publicações aqui referidas são ambas dos últimos dois dias, num grupo que tem várias partilhas diárias e que vão direcionando o tema consoante a mediatização. O grupo surgiu para a candidatura da ADN às eleições legislativas de 30 de janeiro. A primeira publicação é um cartaz com algumas das medidas defendidas pelo partido: não aos confinamentos, contra a obrigatoriedade do uso de máscara ou eliminação do certificado digital são algumas delas. Nessa mesma publicação alguém comenta dizendo que falta referir a utilidade de medicamentos como a ivermectina ou a hidroxicloroquina, que as autoridades de saúde de todo o mundo já disseram não serem recomendados para tratar a covid-19.
Após as eleições as publicações alargaram-se a vários temas - combustíveis, guerra na Ucrânia, TAP, etc.
Questionado pela CNN Portugal, Bruno Fialho refere que existem centenas de partilhas no grupo e que se revê na maior parte delas. Sobre aquelas que falam na eficácia das vacinas contra a covid-19, o presidente da ADN diz que "tecnicamente nem são vacinas", afirmando que são "ineficazes" contra a doença.
A Associação 21/26, da negacionista Anabela Seabra, que ficou conhecida pelo alter ego Ana Desiderat e que liderou o grupo que criticou e insultou o então presidente da Assembleia da República Eduardo Ferro Rodrigues, também está presente no Facebook. Com menos seguidores (são pouco mais de dois mil) e com publicações mais comedidas, esta organização foi criada por considerar que "a liberdade de todos nós se encontra ameaçada".
É comum ver Anabela Seabra em vídeos, muitos deles em direto, mas também pequenas publicações, sobretudo partilhando notícias sobre a pandemia com entradas que perguntam, por exemplo, se "há resistentes no Montijo?".
Como a ADN, também o Ergue-te se candidatou às últimas legislativas, com o presidente José Pinto Coelho como grande figura. Em conjunto com Bruno Fialho foi uma das figuras do debate entre partidos sem assento parlamentar, onde várias questões negacionistas foram levantadas. Na página oficial do partido, que tem mais de 50 mil seguidores, o Ergue-te partilha com regularidade publicações relacionadas com a pandemia.
Numa das últimas, a 30 de maio, referia que "a realidade é clara: mais vacinas, mais casos, mais mortalidade".
A hepatite aguda e monkeypox causadas pela vacina contra a covid-19
O aparecimento de uma nova forma de hepatite em crianças espoletou uma nova teoria: que essa doença é causada pela vacinação contra a covid-19. Uma tese que foi lembrada por Bruno Fialho no grupo “O Elefante na Sala”, onde o presidente da ADN refere que “a Organização Mundial da Saúde está a investigar um surto em crianças no Reino Unido, Irlanda e Espanha, tudo países onde a vacinação de crianças contra a covid-19 foi potencializada ao máximo”.
O político termina a publicação dizendo que “o Governo português, e principalmente António Costa, serão os maiores responsáveis por tudo o que possa acontecer às crianças que foram tomar a vacina contra a covid-19”.
Bruno Fialho sugere mesmo que as vacinas da covid-19, além de serem ineficazes, são o "denominador comum" do aparecimento de várias outras doenças: "Há estudos muito seguros acerca dessa situação [relação entre vacina contra a covid-19 e hepatite aguda]", afirma à CNN Portugal, referindo que tem um grupo de trabalho que analisa estudos com regularidade.
Esta é uma teoria que também está a ter eco internacional, com vários grupos de negacionistas a estabelecerem uma relação causa-efeito entre a toma da vacina e o aparecimento desta hepatite infantil. Houve mesmo quem tenha referido, numa publicação que entretanto se tornou viral nas redes sociais, um estudo em que a Pfizer teria sugerido que esta nova doença podia ser causada pelas vacinas contra a covid-19. A farmacêutica já veio desmentir tal publicação.
De resto, existe uma possível correlação entre a covid-19 e a hepatite aguda mas não está relacionada com a vacina: segundo um estudo da revista The Lancet, muitas das crianças que desenvolveram hepatite aguda tiveram uma combinação de um adenovírus e de uma infeção por covid-19, o que pode sugerir que isso esteja a provocar a nova patologia.
Além disso, como vincam as pessoas que defendem a vacinação, a maioria das crianças diagnosticadas com hepatite aguda nunca foi vacinada contra a covid-19 porque não tinha idade para isso.
Bruno Fialho vai mais longe e assinala a covid-19 como "denominador comum" dos últimos dois anos, durante os quais apareceram doenças como a monkeypox ou a hepatite aguda, bem como problemas de coração ou problemas renais: "basta ler o composto das vacinas", conclui, dizendo que a vacina da AstraZeneca foi responsável por infeções por monkeypox. Bruno Fialho refere-se à teoria de que um adenovírus de chimpanzé que é utilizado na vacina da AstraZeneca causa a monkeypox. Uma análise de verificação dos factos da agência Associated Press desmente esta teoria.
"Os adenovírus e os poxvírus não têm relação e os macacos e os chimpanzés são espécies diferentes. O vírus monkeypox é um poxvírus que se origina em animais selvagens e ocasionalmente passa para pessoas. O adenovírus do chimpanzé causa constipação comum em chimpanzés. A vacina da AstraZeneca contra a covid-19 utiliza uma versão enfraquecida e inofensiva do adenovírus do chimpanzé para aumentar a resposta imunitária. A forma foi modificada para que não possa infetar humanos com adenovírus, muito menos com monkeypox", esclarece a publicação.
Lá como cá (o perigo do sarampo)
Apesar de existirem grupos de negacionistas, Portugal será dos países onde isso menos se nota. O fenómeno não tem cá a dimensão que conseguiu nos Estados Unidos, onde a cobertura vacinal continua longe do desejável - e não só contra a covid-19.
Como refere o New York Times numa publicação desta semana sobre grupos negacionistas, os especialistas do país estão preocupados com o eventual aparecimento de surtos de doenças como a poliomielite ou o sarampo.
O vice-presidente do Comité de Doenças Infecciosas da Associação Americana de Pediatras refere isso mesmo, admitindo o aparecimento de focos daquelas doenças por causa das baixas taxas de vacinação nos mais jovens.
“Provavelmente vamos enfrentar um grande problema nos próximos meses ou anos”, afirmou Sean O’Leary, que não tem dúvidas: existem mais pessoas a recusar a vacinação.
A Organização de Saúde Pan-Americana apresenta dados que confirmam a preocupação. Segundo os últimos dados, a taxa de vacinação contra a poliomielite desceu para o valor mais baixo desde 1994 nos países do continente americano.
O mesmo problema se verifica com o sarampo, o que já motivou a Organização Mundial da Saúde a avisar que existem "condições para um tempestade" da doença, com o número de casos a aumentarem em 79% nos dois primeiros meses do ano. Uma tendência que se verifica nos Estados Unidos, onde o mais recente relatório do Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças dá conta da diminuição da taxa de vacinação nas escolas.
Também ao The New York Times, o diretor da Escola Nacional de Medicina Tropical da Universidade de Medicina de Baylor admite que a questão poderá ter maior repercussão no futuro: "O movimento antivacinas é tão forte, tão organizado, tão bem financiado que duvido que vá parar nas vacinas contra a covid-19". A preocupação de Peter Hotez é que surjam novos surtos de doenças praticamente erradicadas, num país fértil a teorias da conspiração. Basta lembrar a dimensão que teve o caso em que dois médicos associaram as vacinas ao aparecimento de autismo, o que veio a ser considerado falso.
Um "risco para a saúde pública"
O médico Bernardo Gomes não tem dúvidas: "A questão da desinformação é um risco para a saúde pública". Em conversa com a CNN Portugal, o especialista lembra que esta situação já foi definida pela OMS como prioritária e sugere uma modernização do papel das estruturas de saúde em relação às redes sociais: "Não vivemos na mesma situação de há 20 anos. Há que ser proativo, esclarecer e reconhecer que são tempos em que as pessoas precisam de espaço".
O especialista em saúde pública nota que grande parte do problema está presente online, onde até surge uma "sobreposição de informação", com contas que partilham teorias sobre tudo, desde a vacinação, seja contra a covid-19 ou outra doença, até à guerra na Ucrânia.
"É uma questão para os serviços se organizarem, nomeadamente para ocuparem espaço público de forma esclarecida. Já não estamos no tempo da medicina paternalista e nesse contexto temos de estar mais munidos de informação e mecanismos para esclarecimento", reforça, sublinhando que "é muito mais fácil espalhar uma mentira do que gastar o tempo para a desmontar".
Este é um problema que os médicos de saúde pública discutem diariamente - e Bernardo Gomes lembra que toda a sociedade tem um papel a desempenhar no problema
A força dos negacionistas em 2021 em Portugal
De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2021, “movimentos inorgânicos antissistema”, entre os quais estavam negacionistas, dificultaram a implementação do processo de vacinação, obrigando um reforço da segurança, a ações de prevenção e investigação criminal e até ao acompanhamento de determinadas figuras. Lembre-se o que aconteceu com o então coordenador da task-force de vacinação, o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, que teve de ser escoltado para sair em segurança de um centro de vacinação em Odivelas.
Foram apenas algumas das ações de grupos que atuam, de forma preferencial, através da Internet. O RASI salienta o “aumento das ações de desinformação que visaram desacreditar o processo de vacinação e negar o efeito das diversas vacinas”, referindo que estes movimentos radicalizaram o seu discurso e a sua ação, baseando-se em “teorias da conspiração”.