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Comentador da CNN Portugal

Os 5% e o preço da subserviência

24 jun, 17:07

Esta história dos 5% não é um pacto de segurança. É um contrato de fornecimento

Nos corredores bem iluminados da NATO e nas cimeiras em Bruxelas onde se acumulam apertos de mão e promessas de unidade, está a ser desenhado, com um sorriso diplomático, um dos maiores realinhamentos estratégicos e comerciais das últimas décadas: a imposição, não formal, mas pressionada, de que os países europeus atinjam 5% do seu PIB em investimento em defesa. Não se trata de uma recomendação simbólica, como o já cansado alvo dos 2% que muitos membros da Aliança Atlântica sempre contornaram com habilidade contabilística. Desta vez é diferente: a ordem vem de Washington, tem selo da era Trump (ainda que subtilmente apontada por Obama e Biden) e implica consequências profundas para a economia e soberania europeias.

O que não se diz — ou melhor, o que se evita discutir — é que este investimento não é um esforço extraordinário de uma só vez, como um programa especial de rearmamento. Trata-se de uma mutação estrutural da política orçamental: de agora em diante, e por anos, décadas talvez, os Estados-membros da NATO estarão a ser empurrados para dedicar 5% do seu Produto Interno Bruto à máquina militar. Países como Portugal, que historicamente rondam os 1,3%, veriam as suas contas públicas adaptadas a um novo dogma: mais tanques, menos professores; mais drones, menos hospitais, é isso?

Os exemplos mais próximos já existem. A Polónia, impulsionada pelo receio da ameaça russa e pelo trauma histórico das partilhas e invasões, já ultrapassa os 4%. A Suécia, recém-integrada na NATO, apontou o horizonte para 3,2% com metas crescentes. Os países bálticos, pela sua vulnerabilidade geográfica e pela memória do jugo soviético, caminham para os 3,5%, com margens suplementares previstas para 2028. Mas até nos países onde o instinto de defesa é mais natural, o salto até aos 5% levanta dúvidas. Dúvidas orçamentais, dúvidas estratégicas — e sobretudo dúvidas sobre quem, afinal, beneficia com esta corrida armamentista.

A resposta é clara: os Estados Unidos. A pressão exercida por Washington sob o pretexto de uma “responsabilidade partilhada” mais não é do que uma operação de transferência de custos. Desde 2022, os EUA gastaram mais de 70 mil milhões de dólares em apoio direto à Ucrânia, somando assistência militar, humanitária e económica. Estão agora fartos. A Casa Branca quer que a Europa pague a fatura, e Donald Trump, mestre em tornar dívidas em slogans, não esconde: se os europeus querem segurança, paguem-na. Ao preço de mercado. Americano, claro.

Porque a Europa não está, neste momento, sequer remotamente equipada para responder com autonomia. A sua indústria de defesa foi durante décadas negligenciada ou integrada em estruturas multinacionais ineficientes. Os arsenais estão vazios, a produção é lenta, os programas de armamento conjunto arrastam-se em comités burocráticos. O que significa isto? Que nos próximos anos, se quiser atingir os benditos 5%, a Europa terá de comprar à pressa. E comprará sobretudo a quem tem escala, qualidade, entregas imediatas — aos Estados Unidos.

Do F-35 às baterias Patriot, dos mísseis guiados ao software de comando e controlo, o catálogo está disponível. Em troca, os europeus exportam pouco mais do que boas intenções e promessas de reorganização industrial até 2035. A balança comercial entre os dois lados do Atlântico, já profundamente desequilibrada em matéria de defesa, tornar-se-á ainda mais assimétrica. A NATO, concebida como um pacto de defesa mútua, arrisca transformar-se numa plataforma de vendas do complexo militar-industrial americano.

E como reage a Europa a isto? Com resignação. Marco Rutte, recém-nomeado secretário-geral da NATO, parece mais um delegado comercial de Raytheon do que um defensor da autonomia europeia. A maioria dos países da Aliança assinou já um compromisso vago de atingir os 5% entre 2031 e 2035. Espanha resistiu. Sozinha. Todos os outros acenaram com a cabeça. E ninguém, verdadeiramente ninguém, se deu ao trabalho de perguntar: 5% para quê?

Porque o problema não é apenas orçamental. É conceptual. Em que se vai gastar este investimento colossal? Em forças navais para garantir liberdade de navegação no Indo-Pacífico? Em tecnologia espacial e satélites de vigilância? Em mísseis hipersónicos, inteligência artificial militar, ciberdefesa? Ou apenas em mais tanques para a frente leste? Ninguém sabe. Ninguém exige um plano. Apenas se exige o dinheiro.

A Europa tinha aqui uma oportunidade única: aproveitar a pressão externa para reforçar a sua própria indústria de defesa, criar autonomia estratégica, e garantir que cada euro gasto em segurança servisse também para impulsionar a inovação, o emprego e a coesão industrial europeia. Mas essa decisão exige liderança. Exige visão. E exige coragem política para dizer a Washington: “sim, vamos investir mais — mas vamos investir na Europa, para a Europa”.

Até lá, esta história dos 5% não é um pacto de segurança. É um contrato de fornecimento. E a Europa, sempre prestável, já começou a assinar.

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