O que nos quis dizer Angelina Jolie?

18 dez 2022, 13:18
Angelia Jolie e António Guterres. 14 setembro 2017. Foto: Mary Altaffer/AP

“Ao fim de 20 anos de trabalho para o sistema da Nações Unidas, senti que era tempo de trabalhar de forma diferente, envolvendo-me diretamente com refugiados e organizações locais, apoiando a sua luta por soluções”, escreveu Angelina Jolie no comunicado em que oficializou a renúncia ao cargo de embaixadora das Nações Unidas para os refugiados. Não foi um fim de ciclo, nem uma missão dada por concluída e por isso mesmo devemos questionar, afinal, o que vai mal nas Nações Unidas.

Liderada por António Guterres, que foi também Alto Comissário para os Refugiados, a ONU trouxe sempre celebridades que ajudassem a exaltar a mensagem primordial da agência. Angelina Jolie agarrou a oportunidade e tornou-se num dos rostos mais reconhecidos na representação do Alto Comissariado para os Refugiados. Por ser uma estrela de Hollywood trouxe atenção global para muitas das zonas sensíveis que não tinham nem a visibilidade nem o escrutínio necessário. Esteve no Bangladesh, no Cox’s Bazar, o maior campo de refugiados do mundo, na Síria, no Iémen, no Afeganistão ou no Mianmar. Recentemente, foi vista na Ucrânia, onde, na verdade, foi por conta própria trabalhar com organizações não-governamentais e não com a ONU: poderá ter sido o prelúdio de uma renúncia expectável e que não é apenas um fait-divers?

Num ensaio publicado na revista Time, este ano, para assinalar o Dia Mundial do Refugiado, Jolie escreveu que “devido à forma como a ONU se estabeleceu, está voltada os interesses e para dar voz às nações mais poderosas, à custa das pessoas que mais sofrem com conflitos e perseguições, cujos direitos e vidas não são tratados com igualdade”. O desconforto tornou-se evidente. Estarão as Nações Unidas demasiado longe da procura das soluções concretas para a vida dos refugiados? O mundo bateu um recorde inédito: há, neste momento, 100 milhões de pessoas deslocadas. Por isso mesmo, nunca foi tão importante a salvaguarda de direitos fundamentais e uma ação humanitária eficaz para uma realidade soberba. É agora que as exigências são maiores, mas é também agora que as Nações Unidas estão a passar igualmente por uma crise de financiamento. Por causa da guerra na Ucrânia, há uma grande dificuldade em garantir dinheiro que apoie as missões noutras zonas do mundo em conflito: Médio Oriente, África e sul da Ásia. Este é um desafio de António Guterres e a saída de Jolie, com quem trabalhou de forma próxima durante vários anos, é mais um golpe na agência.

Na cerimónia dos Óscares em 2013, Jolie recebeu o Prémio Humanitário Jean Hersholt. O discurso de agradecimento foi emotivo, mas, sobretudo, um alerta. Contou-nos que nunca percebeu porque algumas pessoas, como ela, nascem com direito à vida, e outras não. Algures no mundo há uma mulher “com as mesmas capacidades, os mesmos desejos, a mesma ética profissional e o mesmo amor pela família, que faria melhores filmes e melhores discursos, mas que está num campo de refugiados”. Para Angelina Jolie, essa mulher, representação de milhões de tantas outras, não tem voz, cuja maior preocupação é aquilo que os seus filhos irão comer, como mantê-los seguros e se alguma vez poderão regressar a casa. “Não sei porque é que esta é a minha vida e esta outra é a dela.”

Este discurso foi há praticamente 10 anos e, desde 2013, o mundo assistiu às piores catástrofes humanitárias às portas dos países mais desenvolvidos, berços da Democracia. Centenas de caixões a enterrar em Lampedusa, Itália, pilhas de coletes salva-vidas de vítimas mortais na ilha de Lesbos, na Grécia, e uma floresta gelada onde, ainda hoje, centenas de requerentes de asilo congelam até à morte nas fronteiras da Polónia. Em 2021, assisti a funerais de refugiados nas portas na Europa, na fronteira polaca com a Bielorrúsia. Um deles foi o enterro de um pequeno caixão branco: uma mulher iraquiana grávida acabou por perder o filho ao tentar chegar a um lugar seguro. Poderia ser Jolie ou qualquer outra estrela de Hollywood, bastaria ter nascido numa cidade como Mossul, onde a guerra e o terrorismo condenam perpetuamente o mais talentoso ser humano.

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