Os cromos que não o deviam ser (numa caderneta encharcada de lágrimas)

8 dez 2022, 09:38
Cards of Qatar

«Quando os adeptos pisarem o mármore daqueles hotéis, lembrem-se do meu marido»: as histórias que fazem corar de vergonha o Mundial do Qatar deram origem a uma coleção de figurinhas. Para que ninguém se esqueça.

Esta é a caderneta que não devia existir.

Mas existe, infelizmente, e há quem peça que não seja esquecida. Foi criada pela Blankspot, uma plataforma de jornalismo investigativo da Suécia, e pretende honrar a memória de cem trabalhadores que morreram para construir as infraestruturas do Mundial do Qatar.

Tudo começou quando o mundo discutia quantos trabalhadores migrantes tinham morrido ao certo, o que para os jornalistas da Blankspot era uma discussão superficial.

«Por isso quisemos contar as histórias de quem eram as pessoas por detrás das estatísticas. Quem eram as pessoas que deixaram o sudeste asiático para sustentar as suas famílias, para conseguir enviar os seus filhos para a escola e não voltaram para casa ou só regressaram dentro de um caixão», explica ao Maisfutebol o editor-chefe Martin Schibbye.

«Por isso, há dois anos e meio começámos este trabalho de tentar conhecer tantas famílias quanto nos fosse possível no Nepal, na Índia, no Bangladesh, no Sri Lanka e no Paquistão.»

Em colaboração com jornalistas locais chegaram a várias famílias, viajaram para o local para conhecer as histórias e quando acabaram de recolher o material ficaram com uma dúvida.

«Nessa altura pensamos: ‘ok, como vamos apresentar isto?’ Quer dizer, o meu trabalho é ser editor-chefe do Blankspot, que é um meio pequeno, que se concentra nos conflitos esquecidos: temos relatado muito, por exemplo, sobre Nagorno-Karabakh ou sobre o Corno da África.  Por isso o nosso público é um nicho. Mas agora sentimos que estas histórias deviam ser lidas por essas pessoas, sim, mas queríamos que chegassem também aos adeptos de futebol», conta.

«Nesse sentido tivemos a ideia de criar os cromos, que em vez de divulgar factos sobre os jogadores contassem a história de um trabalhador migrante. Queríamos que parecessem cromos reais de futebol, mas com um conteúdo diferente. Foram publicados na Suécia e são distribuídos gratuitamente em várias lojas no país, mas também existem cromos digitais que foram publicados num site especial que conta a história destas pessoas.»

O trabalho desta plataforma de jornalismo investigativo contou com a colaboração da Forza Italia, um site de resultados desportivos, que acompanha várias competições.

«Quando os adeptos pisarem aquele mármore, lembrem-se do meu marido»

Mas contou sobretudo com a vontade de muitos familiares, no Nepal, no Bangladesh ou na Índia, de participar no projeto, de contar as histórias e de honrar a memória dos mortos.

«Uma das viúvas que conheci no Nepal, Nir Maya Bishworkarma, nunca recebeu o corpo do falecido marido, Bine Bahadur Bishworkarma. Ele era trabalhador migrante, morreu nas obras para o Mundial e ela não sabe onde está o corpo.  Mesmo assim fez-lhe uma cerimónia fúnebre, na qual queimou algumas das suas roupas velhas para se despedir dele», refere.

«Então eu perguntei-lhe que sentimentos tinha em relação a este Mundial, sabendo que havia muita gente a pedir um boicote ou punições para o Qatar. Ela respondeu-me: ‘Eu só quero que as pessoas se lembrem de meu marido’.»

Bine Bahadur Bishworkarma estava no Qatar há vinte anos e especializara-se a trabalhar com o mármore mais caro. Alguns dos pisos mais luxuosos nos hotéis tinham sido feitos por ele.

«E o que ela me disse foi isso: ‘Quando os adeptos pisarem aquele mármore, que admirem o trabalho e que se lembrem do meu marido, porque ele era um trabalhador perfeito.’ Ela estava orgulhosa do falecido marido e as palavras dela têm-me acompanhado neste processo», diz.

«É de facto uma questão de honrar estas pessoas, lembrar esta gente que construiu o Qatar e tornou este Mundial possível. Saber os seus nomes e os nomes dos seus filhos. Este projeto é isso que quer, honrar estas pessoas e o seu trabalho.»

A conversa de Martin Schibbye com o Maisfutebol foi feita por Zoom, o que permitiu ver como o jornalista muitas vezes se emociona a falar. Os outros parecem ficar cheios de lágrimas, sobretudo ao recordar algumas histórias de pessoas que conheceu no meio da pobreza.

«Havia um migrante, o nome dele é Anish Gurung, que morreu aos 18 anos. Visitei a aldeia dele no Nepal. Estava muito longe de qualquer cidade e só recentemente tinha tido a primeira estrada. Antes disso só se chegava lá a caminhar», começou por contar.

«Quando a estrada foi construída, Anish Gurung quis muito tirar a carta de condução, para trabalhar no Qatar como motorista. Acabou por o conseguir e arranjou um emprego no Qatar, mas na construção civil. Morreu ao fim de seis meses. A família recebeu o corpo e recusava-se a aceitar que o filho tinha morrido. O pai dele disse-me que mantinha o telemóvel sempre com carga porque acreditava que o filho ainda lhe ia ligar.»

Anish Gurung tinha morrido num acidente na estrada, outros caíram de edifícios, outros foram eletrocutados. Muitas mortes podiam ter sido evitadas, adianta.

Apesar disso, Martin Schibbye diz que quem quiser encontrar explicações para tanta gente ter morrido no Qatar, deve procurar essas respostas no Nepal, no Bangladesh, na Índia.

«Depois de fazer este projeto percebemos que essas respostas não estão no Qatar: estão no sul da Ásia. É preciso ver como a pobreza é um martelo em cima da cabeça das pessoas nestas aldeias. Isso é que impulsiona os migrantes a irem para o Qatar e trabalharem para apoiar as famílias com um salário baixíssimo e um risco altíssimo. Conhecer as famílias permitiu-me compreender profundamente porque as pessoas vão para o Qatar», sublinha.

«No início eu até pensava que era os mais pobres dos pobres que faziam isto, mas na verdade não é: os mais pobres dos pobres não conseguem pagar o visto. São geralmente as pessoas que já trabalham que vão, porque só com o dinheiro que ganham no Qatar podem colocar um telhado novo em casa ou enviar o filho para estudar. Esse dinheiro realmente muda a vida das pessoas. Então quando vê que o vizinho foi para o Qatar e de repente os filhos dele puderam seguir os estudos, claro que também vai quer essa vida para ele.»

«Um trabalhador esteve tanto tempo fora que os filhos não o reconheceram quando voltou a casa»

A pobreza no sul da Ásia é muitas vezes extrema e condena à partida as pessoas.

Por isso, viajar para um país abusador e esclavagista é muitas vezes a única solução para dar o salto para uma vida melhor. O risco de trabalhar no Qatar é tremendo e muitas pessoas sabem que é, mas mesmo assim arriscam: vão atrás do sonho de mudar completamente a vida.

«Outra coisa que aprendi foi que estas famílias também estão a pagar um preço mental muito alto. Muitas vezes a pessoa passa cinco, dez ou quinze anos longe da família, não vê os filhos crescerem, não vê esposa envelhecer. Por isso pudemos perceber que há muitos suicídios, tanto no Qatar, como no Bangladesh, na Índia ou no Nepal.»

O jornalista conta que muitas vezes as pessoas percebem que o sonho não se tornou realidade.

Não ganharam o dinheiro suficiente para mudar de vida, não se tornaram executivos do Golfo Pérsico e tiveram de voltar para a sua aldeia sem vestir um fato e sem dinheiro.

«Enfrentar esse estigma é muito difícil e muitos optam por acabar com a própria vida. Por isso digo que é preciso dar atenção também ao preço mental que esta geração está a pagar», diz.

«Houve um sobrevivente que me disse que seus filhos não o reconheceram quando ele voltou a casa, não sabiam quem ele era, ele teve de conhecer os filhos de novo. Esteve longe por tanto tempo que agora tem de reconstruir outra vez a família. Isto é muito, muito, muito duro.»

São essas histórias que os cromos contam, numa caderneta encharcada de lágrimas. Cromos que ninguém quer ter, mas que não podem ser esquecidos quando a euforia do Mundial passar.

«Foi muito difícil chegar às histórias. No início contactámos as embaixadas dos países de origem, mas eles não quiseram ajudar. Tudo o que está relacionado com o Qatar é bastante sensível no sul da Ásia, porque há muito dinheiro envolvido na migração de trabalhadores. Por exemplo, 30 por cento do PIB do Nepal é dinheiro enviado do exterior para casa», conta.

«Mais tarde soubemos que essas famílias não recebem nenhuma indemnização das empresas que empregavam as pessoas que morreram, ou do governo do Qatar, mas para as compensar foram criados fundos governamentais no Nepal, na Índia e em Bangladesh, através dos quais as famílias podem solicitar indemnização. Conseguimos chegar a essas listas de famílias que solicitaram e receberam indemnizações. Essa lista foi o ponto de partida. Ligámos às famílias, perguntámos se queriam ser entrevistadas e assim conhecemos as histórias das pessoas.»

Setenta cromos já estão publicados, há mais trinta que o vão ser em breve e depois há várias outras histórias de trabalhadores que ficaram aleijadas ou afetadas de outra forma: estas últimas vão ser contadas através do site da Blankspot após a publicação de todos os cromos.

«A verdade é que grande parte dessas famílias quer falar. Alguns tiveram medo, sobretudo porque ainda têm parentes no Qatar. Mas outras ficaram até contentes quando jornalistas estrangeiros apareceram à porta de casa a interessar-se pelos familiares mortos», revela.

«Por norma, eles só receberam um cadáver e um atestado de óbito que dizia ‘morte natural’ ou ‘ataque cardíaco por causas naturais’. Para as famílias não era nada natural porque os familiares eram jovens e saudáveis quando partiram.»

Numa altura em que as histórias já chegaram a quase um milhão de pessoas, saber que a memória do pai, do marido ou do filho não vai ficar enterrado nos alicerces do Mundial pode ser um bálsamo para muita gente. É isso que os cromos que não o deviam ser tenta fazer.

 

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