Um Mundial por dia: 1962, o génio de Garrincha à solta no bicampeonato do Brasil

26 nov 2022, 00:05
Garrincha

Viagem à história do Campeonato do Mundo em histórias, imagens, figuras, números, frases e curiosidades

Enquanto se escreve nova história no Qatar, o Maisfutebol olha para o que está para trás. De 1930 a 2018, um Mundial por dia em pequenas histórias, figuras, números, frases, curiosidades ou o percurso de Portugal. Pistas para recordar do que falamos quando falamos do Campeonato do Mundo.

Chile 1962

30 maio a 17 junho de 1962

Campeão: Brasil

2º lugar: Checoslováquia

3º lugar: Chile. 4º lugar: Jugoslávia

Jogos: 32

Golos: 89 (2,78 por jogo)

Melhor marcador: Garrincha (Brasil), (Vavá (Brasil), Leonel Sánchez (Chile), Florient Albert (Hungria), Drazan Jerković (Jugoslávia) e Valentin Ivanov (URSS), todos com 4 golos

Portugal

Num grupo de três equipas, a campanha de Portugal começou com uma alegre goleada ao Luxemburgo (6-0). O resultado da receção à Inglaterra no jogo seguinte (1-1) soube a pouco, num país que começava a saber o que era vencer, depois de ter conquistado nesse ano o título europeu de juniores e de viver a caminhada europeia do Benfica – que jogou e ganhou a final da Taça dos Campeões Europeus dez dias depois do empate com a Inglaterra. Seguia-se a visita ao Luxemburgo, essa equipa de amadores, e poucos duvidavam de que seriam favas contadas. E no entanto. Pelo meio tinha havido mudança de selecionador. A Armando Ferreira sucedeu Fernando Peyroteo, o histórico goleador que assumia ali o seu primeiro – e único – desafio como treinador. Na comitiva seguiu uma jovem promessa. Mas nem Eusébio evitou o escândalo. Portugal deixou-se surpreender pelo Luxemburgo e viu Schmidt marcar três golos em menos de uma hora. O estreante Eusébio ainda reduziu, mas o Luxemburgo respondeu com o quarto golo. Perto do fim, um golo de Yauca selou o resultado: 4-2. Agora, Portugal precisaria de vencer em Inglaterra. Não aconteceu, apesar de uma boa reação da seleção em Wembley, já depois de estar em desvantagem. Portugal perdeu por 2-0, mas deixava boa imagem. Eusébio apresentava-se à Inglaterra.

O Mundial

O génio de Garrincha embalou o Brasil e iluminou um Mundial que não deixou de resto grandes memórias, recordado por um futebol sem chama e quezilento. Pela primeira vez marcaram-se menos de três golos por jogo, barreira que nunca voltou a ser aliás atingida.

O Chile manteve a organização do Mundial, mesmo depois do terramoto que assolara o país dois anos antes, e avançou até à meia-final, enquanto várias seleções cotadas ficavam cedo pelo caminho. Uruguai, Itália, Argentina e Espanha despediram-se na primeira fase, Alemanha, URSS e Hungria caíram nos quartos de final. Já tinham faltado à chamada a Suécia e a França, segundo e terceiros classificados quatro anos antes, que falharam o apuramento.

O Brasil começou a defesa do título a vencer o México mas ao segundo jogo, um nulo com a Checoslováquia, perdeu Pelé. Aquele que tinha tudo para ser o astro do Mundial ressentiu-se de uma lesão e não voltaria a jogar no Chile. Mas esse não foi o fim da história, porque Mané Garrincha assumiu a responsabilidade e conduziu o escrete ao bicampeonato.

A Final

Brasil-Checoslováquia, 3-1

Estádio Nacional, em Santiago do Chile

Brasil: Gilmar, Djalma Santos, Mauro Ramos, Zozimo, Nilton Santos, Zito, Didi, Garrincha, Vavá, Amarildo, Zagallo. Treinador: Aymore Moreira

Checoslováquia: Schrojf, Popluhar, Novak, Pluskal, Tichy, Masopust, Kvasnak, Scherer, Jelinek, Pospichal e Kadraba. Treinador: Rudolf Vytlacil

Golos: Masopust (0-1, 15m), Amarildo (1-1, 17m), Zito (2-1, 69m), Vavá (3-1, 78m)

 

Figura

Garrincha

O Anjo das Pernas Tortas, assim o imortalizou em poema Vinicius de Moraes, já tinha soltado o génio quatro anos antes, ao lado de Pelé. No Chile, com o Rei fora de combate, Garrincha assumiu o palco e levou o Brasil até ao título. Com o seu drible de sempre, com assistências e com golos. De pé esquerdo, de livre, de cabeça, a deixar o mundo rendido ao craque que era futebol em estado puro. No último jogo da fase de grupos, frente à Espanha, o passe para o golo de Amarildo, o «substituto» de Pelé, anunciou o que estava para vir. Nos quartos de final, Garrincha marcou dois golos na vitória sobre a Inglaterra (3-1) e nas meias-finais voltou a bisar frente ao Chile (4-2). O craque com malformações congénitas, intelecto limitado e nome de pássaro voou para a glória, marcando um Mundial como só outro predestinado faria daí para a frente: Maradona. «De que planeta veio Garrincha?», perguntava o jornal chileno El Mercurio no dia seguinte. Faz lembrar alguma coisa? Garrincha acabou expulso na meia-final por responder a uma agressão de Rojas, mas a pressão política foi grande e seria liberado para jogar a final. No dia decisivo acordou com febre, mas esteve em campo na vitória que deu o bicampeonato ao Brasil. Quatro anos mais tarde, no Mundial 66, marcou no jogo inaugural com a Bulgária, o último que jogou ao lado de Pelé. Com os dois astros juntos, em mais de trinta jogos, o Brasil nunca perdeu. O registo de Garrincha é ainda mais impressionante: a sua única derrota em 50 jogos pela seleção foi na partida seguinte, com a Hungria, o seu último jogo com a camisola canarinha. Já não esteve em campo frente a Portugal, na amarga despedida do Brasil desse Mundial. Algumas das memórias do génio e das origens de uma vida atormentada estão aqui, numa visita do Maisfutebol a Pau Grande, onde nasceu aquele que João Saldanha, jornalista e ativista que foi selecionador do Brasil resumiu assim: «Daqui a 400 anos, toda vez que falarem de futebol, terão de falar de Mané Garrincha.»

 

Frase

«Porque não temos nada, faremos tudo»

É possível que não tenham sido exatamente estas as palavras que Carlos Dittborn usou em Lisboa no congresso da FIFA de 1956, para defender a candidatura do Chile em resposta ao dirigente argentino que dizia que o seu país tinha tudo para receber o Mundial. Mas essa foi a ideia que passou e, lenda ou não, a frase virou lema depois da tragédia que arrasou o Chile em maio de 1960, a dois anos do Mundial. O terramoto de Valdivia, um dos mais violentos de que há registo e que desencadeou vários maremotos, causou cinco mil mortes, deixou mais de dois milhões de desalojados e obrigou o país a um enorme esforço de reconstrução. O Mundial deixava de ser prioritário, mas o Chile decidiu manter a organização da prova, reduzindo-a para apenas quatro cidades em vez das oito previstas originalmente. Dittborn, o presidente do Comité Organizador, não chegou a ver o Mundial por que lutou: morreu, aos 38 anos e vítima de doença, dois meses antes de começar a competição. Mas a frase que o imortalizou esteve sempre presente, escrita inclusivamente nos placards com os marcadores.

Número

6, o número do azar de Di Stéfano

Depois de falhar a presença nas duas edições anteriores, a Espanha estava de volta ao Mundial e levou três reforços de peso que tinham vários pontos em comum: eram veteranos, estrelas do Real Madrid e já tinham representado outras seleções. Nada menos que Ferenc Puskas, a estrela da Hungria no Mundial 1954, José Santamaria, que também esteve no Mundial da Suíça em representação do Uruguai, e ainda Di Stéfano, de entre os grandes jogadores da história aquele que teve mais azar ao Mundial. Don Alfredo representou três seleções e não chegou a jogar um único jogo do Campeonato do Mundo. Começou por vestir a camisola da Argentina, depois a da Colômbia quando jogou no Millonarios e a seguir a da Espanha. Jogou a qualificação, mas lesionou-se antes do Mundial do Chile. Ainda viajou com a equipa - era o número 6 da Espanha no Mundial -, mas não chegou a entrar em campo. Tudo somado, a Espanha não conseguiu passar da primeira fase, terminando em último lugar no grupo.

Histórias

A Batalha de Santiago

As hostilidades começaram bem antes do jogo, através da imprensa, com artigos de dois jornalistas italianos a descrever o Chile em tons negros, respostas igualmente incendiárias na imprensa chilena e reações indignadas a nível diplomático. Quando chegou o encontro, a contar para a segunda jornada do Grupo 2, o ambiente era muito tenso nas bancadas. E foi uma guerra em campo. A primeira falta aconteceu aos 12 segundos. Aos oito minutos o italiano Giorgio Ferrini foi expulso mas recusou sair, forçando a primeira de quatro (!) entradas da polícia em campo. O árbitro, o britânico Ken Aston, foi deixando jogar, ignorando sucessivos episódios violentos e acabando por expulsar «apenas» dois jogadores. «Pensei em terminar o jogo antes do tempo, mas não conseguiria garantir condições de segurança para os jogadores italianos nesse caso», explicou depois o juiz, que aliás viria a tornar-se famoso por ter estado na origem da invenção do conceito de cartões amarelos e vermelhos, que entrariam em vigor oito anos mais tarde. Para a história ficaram as palavras com que o apresentador da BBC, David Coleman, lançou o resumo da partida para os espectadores britânicos: «Boa noite. O jogo que vão ver é, provavelmente, a mais estúpida, terrível, repugnante e vergonhosa exibição de futebol da história do jogo.»

O cão que driblou Garrincha

O jogo dos quartos de final entre Brasil e Inglaterra teve um protagonista inesperado, o cão que entrou em campo e por lá se passeou, enquanto os jogadores tentavam espantá-lo para lá da linha. Driblou Garrincha e foi Jimmy Greaves quem se ajoelhou e conseguiu atrair o bicho, sob aplausos do público. No meio do susto, o bicho descuidou-se e Greaves passou o resto do jogo com a camisola a cheirar a urina. «Naqueles tempos não tínhamos camisolas para mudar, só tínhamos uma, portanto tinha de continuar a jogar com ele. Cheirava muito mal, foi horrível. Mas pelo menos garantiu que os defesas do Brasil ficavam longe de mim!», disse o antigo avançado inglês recentemente falecido. A história não terminou aí. Um jornal brasileiro recolheu o cão, sorteou-o entre os jogadores e, segundo conta a FIFA no seu site oficial, o premiado foi Garrincha, que lhe chamou Bi e o levou para casa.

 

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