Um Mundial por dia: 1950, quando o Uruguai gelou o Maracanã

23 nov 2022, 00:05
Uruguai-Brasil, 1950

Viagem à história do Campeonato do Mundo em histórias, imagens, figuras, números, frases e curiosidades

Enquanto se escreve nova história no Qatar, o Maisfutebol olha para o que está para trás. De 1930 a 2018, um Mundial por dia em pequenas histórias, figuras, números, frases, curiosidades ou o percurso de Portugal. Pistas para recordar do que falamos quando falamos do Campeonato do Mundo.

Brasil 1950

24 junho a 16 de julho de 1950

Anfitrião: Brasil

Campeão: Uruguai

2º lugar: Brasil

3º lugar: Suécia; 4º lugar: Espanha

Jogos: 22

Golos: 88 (4 por jogo)

Melhor marcador: Ademir (Brasil), 8 golos

Portugal

A Espanha, rival da primeira hora, voltou a impedir a estreia da seleção nacional no Campeonato do Mundo. Depois da vitória espanhola por 5-1 no primeiro jogo, em Madrid, o Jamor recebeu a segunda mão e Portugal esteve perto de empatar a eliminatória, o que forçaria um terceiro jogo. Mesmo com um penálti falhado pelo meio, os golos de Travassos e Jesus Correia faziam valer o 2-1, mas um golo de Guaiza a menos de dez minutos do fim acabou com o assunto. Não completamente, porque Portugal seria mais tarde uma das seleções convidadas pela FIFA para ir ao Brasil, face às várias desistências. Mas a Federação declinou a oferta e a estreia portuguesa ficaria adiada por mais uma década e meia.

O Mundial

Em 1950 o Brasil jogava em casa, passou tranquilamente a primeira fase, embalou para duas goleadas frente à Suécia (7-1) e Espanha (6-1) e só precisava de um empate naquele último jogo para selar a festa que já todos antecipavam. Depois aconteceu o Maracanazo, o momento em que o Uruguai gelou o Brasil e conquistou o seu segundo título de campeão do mundo.  

O caminho desse Mundial até à decisão foi tortuoso, num mundo a sair dos escombros da Grande Guerra. Com muitos dos países concentrados nos esforços de reconstrução, só a disponibilidade do Brasil para receber a competição permitiu que o Campeonato do Mundo fosse retomado. Era um mundo diferente daquele que tinha visto o último Mundial, 12 anos antes. A Alemanha foi impedida de participar, tal como o Japão. A então URSS e vários países do Bloco de Leste recusaram a presença.

Houve ainda uma série de desistências ao longo da qualificação, incluindo dos sul-americanos Peru, Equador e Argentina. E depois ainda desistiram as já apuradas Turquia, por motivos financeiros, Escócia, que recusou por ter sido apenas segunda na qualificação entre seleções britânicas, e ainda a Índia, que não foi por vários motivos, entre os quais terá estado o facto de os jogadores não poderem jogar descalços, como era tradição no país e tinha aliás acontecido nos Jogos Olímpicos de 1948. O Mundial ficou reduzido a 13 seleções.

O Mundial teve um formato que não voltaria a ser repetido, sem eliminatórias, evitando que as equipas europeias fizessem a longa viagem correndo o risco de serem eliminadas ao fim de um jogo. Teve uma primeira fase de grupos e os quatro vencedores jogaram a fase final. Calhou que o último jogo, entre Brasil e Uruguai, fosse uma espécie de final. E que final.

A Final*

Brasil-Uruguai, 1-2

Estádio do Maracanã, Rio de Janeiro

Uruguai: Máspoli; M. González Tejera, Gambetta, Varela, Andrade, Ghiggia, Miguez, Schiaffino, Morán, Peréz. Treinador: Juan Lopez

Brasil: Barbosa; Augusto, Juvenal, Bauer, Bigode, Alvim, Zizinho, Ademir, Friaça, Jair, Chico. Treinador: Flávio Costa

Golos: Friaça (0-1, 47m), Schiaffino (1-1, 66m), Ghiggia (2-1, 79m)

*Não houve uma final; os quatro primeiros de cada grupo jogaram todos entre si numa segunda fase que terminou com o jogo entre o Brasil e o Uruguai

Figura

Obdulio Varela

O nome que fica associado à vitória no Maracanazo é o de Ghiggia, autor do 2-1. Mas ninguém simboliza o espírito do Uruguai como Obdulio Varela, o capitão de uma equipa em que poucos acreditavam e que no dia da decisão esvaziou a pressão no Maracanã. Primeiro quando disse aos companheiros para se concentrarem no jogo e abstraírem do que se passava à sua volta, com a frase que ficou famosa: «Los de afuera son de palo.» Quem está fora não conta. E depois quando pegou calmamente na bola após Friaça marcar o 1-0 para o Brasil e se dirigiu ao árbitro num longo protesto, arrefecendo o Maracanã e ganhando tempo e lucidez para a reviravolta. A lenda de Varela, médio de origens humildes que se tornou referência do Peñarol e um ano antes tinha liderado uma greve de jogadores no campeonato uruguaio, faz-se de muitas histórias. E alimenta-se da forma como nunca quis assumir o protagonismo da proeza do Uruguai no Maracanã, ele que se assumia como fã do futebol do Brasil e que na noite da vitória contrariou as instruções dos dirigentes para que os jogadores ficassem no hotel e saiu para a rua, acabando a noite a beber junto de adeptos brasileiros que afogavam a mágoa. Há um ano, o ex-capitão do Uruguai Diego Lugano escreveu para a ESPN uma carta de homenagem a Varela que dá a medida do que representa aquele que ficou conhecido como El Negro Jefe.

Frase

«Será que eu cometi um crime tão hediondo? A pena de morte no Brasil é 30 anos. Eu já paguei 45, ainda tenho de pagar mais?»

Ghiggia rematou rasteiro, Barbosa atirou-se mas a bola passou entre o guarda-redes e o poste. E aquele momento perseguiu-o o resto da vida. Ficou para sempre associado ao Maracanazo, era apontado na rua como o culpado da tragédia e ficaram para a história – ou para a lenda – muitos episódios a adensar o drama, como a proibição de visitar a seleção do Brasil antes do Mundial 1994 com medo que desse azar ou o dia em que teria queimado num churrasco os postes da baliza onde sofreu aquele golo. A verdade é que Barbosa foi um dos grandes guarda-redes da história do futebol brasileiro e referência do Vasco da Gama, onde jogou entre 1945 e 1955 e onde voltou para mais quatro temporadas em 1958. Em 2021, em jeito de homenagem, o clube deu o nome de Barbosa ao seu novo centro de treinos. Quanto a Barbosa, reviveu muitas vezes aquele momento. Aqui, Ghiggia fala ao Maisfutebol sobre aquele golo e sobre Barbosa. E no vídeo que se segue, Barbosa conta como tinha estudado o adversário, mas de nada valeu: «Adivinhei uma coisa que o cara ia fazer e o cara fez errado.»

 

Número

173.850 em silêncio no Maracanã

É o número oficial de espectadores no Maracanã naquele dia, ainda e sempre a maior assistência num jogo do Campeonato do Mundo. Mas estariam muitos mais no estádio que tinha sido construído para a ocasião e onde aliás havia ainda andaimes por desmontar no jogo de abertura, entre Brasil e México. Há crónicas que falam em mais de 200 mil nas bancadas, num clima de euforia, quando na imprensa também já se antecipava o Brasil campeão do mundo. Ganhou o Uruguai, para choque de todos e surpresa de Jules Rimet, o presidente da FIFA, que estava a descer ao relvado, já com o discurso preparado para a vitória do Brasil, quando Ghiggia fez o 2-1, e se deparou com o silêncio gelado do estádio à saída do túnel. Mário Filho, o jornalista que dá nome ao Maracanã, recordou assim esse ambiente de velório: «O silêncio de 200 mil pessoas chegava a assustar.» «A nossa Hiroshima», chamou-lhe por sua vez Nelson Rodrigues, outro cronista eterno do Brasil e irmão de Mário Filho. O trauma persistiu e, entre tantas consequências, levou o Brasil a abandonar a habitual camisola branca e a mudar de equipamento: em 1953, um concurso para desenhar um novo equipamento foi ganho por um… uruguaio. Nasceu assim a camisola amarela.

Histórias

O primeiro grande escândalo

Entre tantas ausências, havia uma grande novidade no Mundial 1950. Era a primeira vez da Inglaterra, que do alto dos seus pergaminhos tinha virado costas à FIFA em 1928, tal como as restantes seleções britânicas, falhando por isso todos os Mundiais anteriores. Voltaram a filiar-se apenas em 1946, a tempo de a Inglaterra garantir a presença no Brasil. Chegava com enorme estatuto, tendo vencido 23 dos 30 jogos que disputara no pós-Guerra. Depois de ganhar ao Chile no primeiro jogo, a Inglaterra defrontava uma seleção dos Estados Unidos formada por jogadores essencialmente amadores. A oito minutos do intervalo, Walter Bahr, um professor primário, fez um cruzamento que encontrou Joe Gaetjens. E foi esse estudante de contabilidade nascido no Haiti, que também jogava à bola e lavava pratos num restaurante para ganhar a vida, quem marcou o golo que selou um dos maiores escândalos da história do Mundial. A Inglaterra, que tinha poupado a estrela Stanley Mattheus nesse jogo, bem tentou, mas não conseguiu marcar um só golo. Conta-se que quando o resultado foi enviado para Inglaterra, em muitas redações acharam que havia um erro tipográfico e que onde se lia 1-0 devia ler-se 1-10. Sob o peso do choque, a Inglaterra perdeu o último jogo do grupo, com a Espanha, e voltou para a casa com o orgulho muito ferido.

A Itália depois de Superga

Além de muitas ausências, havia no Brasil uma potência debilitada. A Itália, bicampeã do mundo em título, ponderou mesmo não fazer a viagem, um ano depois do acidente de Superga. A 4 de maio de 1949, a queda do avião que transportava a equipa do Torino depois de um jogo com o Benfica de homenagem a Francisco Ferreira se despenhou, matando 31 pessoas, entre elas 18 jogadores do Torino, a grande equipa italiana desse tempo e espinha dorsal da seleção: em fevereiro de 1949, a Itália tinha vencido Portugal por 4-1 com seis jogadores do Torino no onze. A tentar lidar com o trauma, a «Azzurra» evitou a viagem de avião e foi de barco que chegou ao Brasil, onde teve uma passagem discreta. Integrada no Grupo 3, a «Azzurra» perdeu o primeiro jogo, com a Suécia – a sua primeira derrota de sempre num Mundial, ao décimo jogo. Depois venceu o Paraguai, no segundo e último jogo, mas não evitou a eliminação.

Leia aqui mais informação sobre os Mundiais, os resultados e as histórias contadas no livro «O Essencial dos Mundiais Para Ler em 90 Minutos», do Maisfutebol

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