«No Qatar tinha miúdos de 16 anos que iam para os treinos de Porsche»

26 mar 2022, 09:44
João Carlos Pereira

Entrevista com João Carlos Pereira, que trabalhou seis anos na Aspire Academy e acompanhou de perto a preparação para o Qatar 2022. «O Mundial vai ser espetacular, as pessoas vão ficar surpreendidas.»

Numa altura em que estamos a meio do play-off para o Mundial 2022, e a poucos dias do sorteio da fase dos grupos, o Maisfutebol falou com João Carlos Pereira sobre o Qatar, o Mundial que aí vem e o trabalho na Aspire Academy para preparar uma seleção para a competição.

João Carlos Pereira esteve seis anos no país do Médio Oriente, apanhou praticamente todo o projeto de preparação de uma equipa e conta como foram desafiantes aqueles tempos, num país em que os locais são todos ricos, não precisam de trabalhar e não passam dificuldades.

Diz por exemplo que no início não havia jogadores, que foram às escolas e que nem procuravam miúdos com jeito para o futebol: só queriam que tivessem coordenação motora. Pelo caminho fala do país, diz o Mundial vai ser espetacular e que as pessoas vão ficar surpreendidas.

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Esteve seis anos no Qatar, na Aspire Academy. Como é que foi lá parar?

Às vezes em conversa com pessoas próximas costumo dizer que foi provavelmente a melhor coisa que me aconteceu. Eu saí do Qatar sendo um treinador muito, mas mesmo muito mais competente. Eu não estava muito satisfeito com o desenrolar da minha carreira, porque andava a saltar de clube para clube e sempre me vi como uma pessoa de projetos e de planeamento. Estava um pouco neste tipo de onda, em conversa com um amigo disse que tinha de repensar as coisas e ver bem o que ia fazer a seguir, e ele perguntou-me se não queria ir para o Médio Oriente, para um projeto de uma academia.

E qual foi a sua reação?

Não me estava a ver ir para formação, sempre tinha trabalhado no futebol sénior, mas ele meteu-me em contato com as pessoas. Ligou-me na altura o diretor de futebol Roberto Olabe, que é agora o diretor geral da Real Sociedade, explicou-me o projeto, o que eles pretendiam e convidou-me para lá ir. Passei lá uma semana, com diversas entrevistas, falei com as pessoas e percebi que era uma coisa completamente diferente. Não deve ter havido nenhum projeto desta natureza em mais de lado do mundo.

Era uma coisa tremenda?

Era, era uma coisa tremenda. Tinha os recursos que queria e que precisava. Para perceber, eu era o funcionário dois mil e tal, aquilo era uma organização monstruosa, não só para o futebol, mas muitos outros desportos. Tinha umas infraestruturas e um projeto tremendo. Começámos de raiz e pronto e foi uma paixão incrível. Eu entrava na academia às 7.30 da manhã e saía às 7:30 da noite, e às vezes mais tarde. Foi exigente. mas muito gratificante.

Mas porquê essa paixão toda por aquele projeto?

Colocaram-me a questão assim: ‘Nós precisamos de uma pessoa que nos ajude a desenvolver jogadores para ter capacidade de disputar o Mundial 2022 de uma forma que não fiquemos envergonhados’. A seleção do Qatar naquela altura estava fora do lote dos primeiros 100 do ranking FIFA, não havia jogadores, qualquer cidade da Europa tem mais licenças de jogadores do que o Qatar, não havia história, não havia nada. Tivemos que fazer tudo e o projeto envolveu, como se sabe, a construção de estádios e de infraestruturas.

Foi um projeto construído a partir do nada?

Nós não teríamos apenas de desenvolver jogadores de futebol, teríamos de desenvolver uma cultura, porque a cultura local é diferente, tem algumas coisas boas, mas para este tipo de exigência, para o que se pretende para um jogador competitivo, é preciso enquadrar o crescimento dos jogadores num quadro de organização e de disciplina que eles não tinham.

Porquê?

Porque é uma sociedade abastada, onde por exemplo numa população de dois milhões e meio de pessas não chega a haver 500 mil qataris. São todos eles ricos, não têm problemas financeiros, não têm necessidade de se levantar cedo para ir trabalhar, têm rendimento garantido pelo Estado, se quiserem estudar fora do país são pagos para isso, quando se casam recebem logo casa e terrenos, enfim é tudo muito facilitado. Eu tinha jogadores que iam para os treinos com motoristas, tinha jogadores com 16 ou 17 anos, que já conduziam sem carta de condução carros de alta cilindrada, Porsches e outros do género.

E não tinham problemas com a polícia?

De vez em quando eram parados, mas sabe que os qataris são muito poucos, as famílias estão todas próximas e as relações são privilegiadas. Imediatamente alguém tratava de resolver o assunto.

Como é que começou a trabalhar essa construção de tudo?

A primeira coisa foi começar a construir uma cultura, o que leva muito tempo e exige um esforço tremendo. Quando queremos fazer uma coisa destas temos que ser nós próprios a dar os primeiros passos. Lembro-me que tínhamos grandes problemas com a assiduidade e havia uma grande taxa de absentismo. Era normal os treinadores chegarem aos treinos meia hora antes e irem embora imediatamente após. Por isso criámos coisas que nos fizessem envolver mais, reuniões várias, com diversos departamentos, workshops, preparação de treinos, enfim, começámos a impor uma certa ética de trabalho em que íamos às oito da manhã e saíamos às sete da noite.

Educar pelo exemplo.

Sim. Aos poucos começámos a criar também um ambiente de exigência com jogadores, começámos a ir às escolas procurar miúdos, a tentar perceber quem tinha filhos, chegámos ao ponto de nem nos preocupamos se o miúdo tinha jeito para jogar futebol, aqueles que tinham mais coordenação motora, ou que aparentavam ter mais coordenação motora, nós trazíamos para a Aspire, estavam ali durante duas semanas a treinar connosco e a tentar perceber se podiam evoluir. Definimos também regras de relacionamento entre clubes, demos formação aos nossos treinadores, convidámos os treinadores das equipas do Qatar a vir fazer formação connosco para alinhar as pessoas com o projeto.

Passaram muitos miúdos pela Aspire durante os seis anos que lá esteve?

Passaram muitos, muitos. Retivemos bastantes, aos poucos a taxa de absentismo foi ficando mais favorável, quando os jogadores faltavam começou a haver pelo menos a preocupação de sabermos com antecedência, envolvemos os locais criando a figura do team guide para cada equipa, que conhecia os pais e fazia a ligação com a Aspire, começámos a ter uma ligação mais profunda com a escola, os currículos escolares foram redesenhados para ter disciplinas que fossem úteis no desenvolvimento dos jogadores, enfim.

E hoje o Qatar está preparado para não se deixar envergonhar no Mundial?

É assim, esqueça que o Qatar vai discutir o resultado os olhos nos olhos. É impossível. A Alemanha há 50 anos que tem uma liga profissional, o Qatar tem uma liga profissionalizada há meia dúzia de anos. Mas há indicadores que nos dizem que o nível competitivo do Qatar é incomparável com aquilo que era. Por exemplo, o Qatar era perdedor em todos os escalões na Ásia, só pontualmente conseguia equivaler-se a uma ou outra seleção no Golfo Pérsico, era goleado por sul-americanos e por europeus. O Qatar hoje é dominador no Médio Oriente, ganhou a Taça Asiática em seniores, ganhou a Taça Asiática em sub-19, foi a duas fases finais de Mundiais Sub-20, participou na Copa América com mérito. Portanto, ganhando um jogo no Mundial vai ser um motivo de grande festejo e orgulho para o Qatar.

E o que é que o mundo pode esperar do Mundial do Qatar?

Os qataris sabem receber. Vão estar abertos ao mundo e estão conscientes disso. Vão ter que fazer algumas conceções aos hábitos que têm, sobretudo em algumas restrições como o acesso ao álcool.

Vão abrir-se durante aquele mês?

Não creio que vão abrir o país inteiro, mas vão ter que se abrir um bocadinho aos hábitos do ocidente e vão ter que criar zonas onde seja possível beber uma cerveja, por exemplo. Os estádios são espetaculares. Eles construíram cidades de raiz e o Qatar tornou-se um polo de tecnologia concentrada, de infraestruturas de ponta, de edifícios deslumbrantes, de hotéis fantásticos, enfim, acho que as pessoas vão ficar altamente surpreendidas.

Tem expetativas altas?

As expectativas são elevadas. Acho que vai ser uma competição espetacular e espero que o futebol apresentado também seja bom.

Conhece bem a realidade do Qatar, como é que reage a todas as polémicas relativamente ao atropelo dos direitos humanos?

Lá nunca me apercebi de nada, mas naturalmente também não andava a visitar obras e estaleiros de construção. Por aquilo que eu vi, porque nós também fizemos algumas obras na academia, havia regras e protocolos de segurança que eles cumpriam.

O que é que viu em particular?

Por exemplo, quando era o pico do calor as obras paravam, não havia ninguém a trabalhar. Havia pausas para se hidratarem e distribuíam água, à hora das refeições via-os sentados lá pelos jardins a comer, enfim, nunca me percebi de nada. Mas sei que aconteceu porque toda a gente fala disso. O melhor a fazer é deixar que as pessoas que têm a responsabilidade continuem a alertar, porque são coisas que não podem acontecer num momento tão avançado da existência humana.

O João Carlos Pereira, sendo estrangeiro e trabalhando com mais estrangeiros, nunca conheceu ninguém que fosse vítima desta discriminação?

Não, não. Mas sabe que a discriminação começa logo nos salários. Se formos europeus temos direito a determinado tipo de salários, se formos asiáticos já não é assim.

E isso também acontece no futebol?

Sim, embora um treinador de futebol das Filipinas provavelmente não tenha a mesma bagagem, a mesma formação, a mesma ética de trabalho que tem um europeu. Naturalmente que haverá exceções, mas tanto quanto sei, não sendo europeu, e mesmo que o salário seja bom, não terá o mesmo pacote de benefícios.

O problema estará nos trabalhos menos qualificados.

Eu cheguei a conversar com seguranças que trabalhavam na Aspire e que eram do Nepal ou do Bangladesh, que ganhavam substancialmente mal, mas que me diziam: ‘O que ganho aqui num mês corresponde quase a um ano de salário no meu país’. Por isso o problema não está onde eles ganham dinheiro, o problema está de onde eles vêm, porque realmente o nível de vida nesses países... Não devia ser assim, mas vivemos num mundo de desigualdades e quem emprega sabe disso, sabe qual é o salário mínimo nesses países.

O que acha que vai ficar deste trabalho que foi feito no Qatar e no futebol do Qatar?

Eu temo que as infraestruturas de ponta e todo aquele investimento se perca por não haver capacidade para tirar aproveitamento. Eu sei que houve a preocupação de na construção dos estádios, por exemplo, parte das bancadas poder ser retirada e doada a países com carências em África. Mas a visão do Emir não era apenas para o Mundial 2022, a visão dele era 2030 e não era apenas desportiva, passava por outras áreas como a educação e o turismo. Por isso, penso que o país se está a preparar para se dimensionar para outro tipo de comprometimentos no futuro.

Porque é que o João Carlos Pereira veio embora? Estava cansado?

Não estava cansado, eu gostei de lá estar e mantinha paixão pelo que fazia. Na última época acabei de formar a última geração que potencialmente poderia jogar o Mundial, ou seja, poderia haver um ou outro jogador de 17 ou 18 anos a chegar à seleção, mas depois disso já não, já era um trabalho para o próximo ciclo do Mundial 2026. Eu tinha-me proposto desenvolver jogadores para o Mundial 2022 e deixou de fazer sentido para mim estar envolvido naquele projeto.

Foi uma opção sua, portanto.

Sim, sim, eu vim-me embora porque quis. O meu contrato não tinha termo, eu podia-me ir embora e eles podiam mandar-me embora se não estivessem satisfeitos, naturalmente. Decidi transmitir às pessoas no início da ultima época que saía no final desse ano.

...

Por outro lado, eu também comecei a perceber que o investimento que tinha sido feito estava a começar a parar, ou seja, a partir daqui era só reduzir. Os orçamentos dos meus dois últimos anos sofreram cortes e eu percebi que o projeto estava numa outra fase e já não tinha capacidade para dar o próximo passo. Juntaram-se todas estas razões, eu também estava com saudades de entrar numa competição, e achei que era a altura certa para me vir embora.

Gostava de ir assistir ao Mundial no Qatar?

Gostava, gostava. Tenho pensado nisso, já tive algumas pessoas que me lembraram disso: ‘Eh pá, não te esqueças de vir aqui ver uns joguinhos. Vamos ver o que acontece. Se estiver a trabalhar provavelmente não vou ter disponibilidade. Vamos ver.

 

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