CRÓNICA || Num jogo em que o espetáculo nas bancadas rivalizou com o do campo, quatro argentinos marcaram golo. Dois deles de águia ao peito
O Benfica empatou contra 11 Otamendis, brutos como elefantes, vivaços como aves corredoras e frescos como alfaces. E empatou quando descobriu que afinal a fórmula era fácil: bastava marcar cantos do lado direito para Otamendi ao primeiro poste, um deu penalti, outro deu golo. As duas frases são breves simplificações, mas servem para elogiar o melhor em campo: o argentino do Benfica que é adepto do River Plate esfregou o golo na cara dos hinchas do Boca. Mas eles não saíram tristes.
O quinto jogo entre as duas equipas foi o quinto empate ao fim dos 90 minutos - mas foi o primeiro que não foi amigável – no duplo sentido. Vislumbraram-se momentos de tareia. Como diria no final Angel Di María, “sabemos lo que es el fútbol argentino, cómo se juega”, e se não soubéssemos tínhamos aprendido ao fim de meia horita, “no lo pudimos manejar por momentos, las patadas, el hacer tiempo”, prosseguiu o futuro ex-jogador do Benfica, que já arrastou multidões de dezenas de milhares e hoje se arrasta ao fim de umas dezenas de minutos. A imprensa argentina trata-o como Angelito - é carinho - e Angelito disse-o: “El árbitro permitió patadas, debió sacar más amarillas”. Claro que devia. Até porque ter amarillas a menos no primeiro tempo resultou em duas rojas no segundo. Como diz o outro, que biolência.
A técnica da força
O Benfica até entrou melhor, parecendo dominar, mas antes dos 20 minutos já estava a olhar para o banco à procura de jogadores de rugby para rechaçar o jogo físico ou, vá, vendo se tinha lá uma espécie de Paulinho Santos – houve ali momentos em que parecia o Benfica nos anos 90 a jogar nas Antas. Estamos nisto e pimba, Blanco entra pela esquerda do ataque argentino, Dahl está em greve de Metro e vê a bola passar pelo túnel entre as pernas, centro para Merentiel entre os centrais, 1-0, "¡golazo, carajo!”, a multidão xeneize entra em delírio.
Viu bem as imagens em cima? A coisa redrobra pouco depois, sete minutos em que o Benfica já não sabe a quantas anda, desatina, o ex-sportinguista Battaglia salta e já está 2-0, “es histórico esto”, grita um palermista, “estou llorando”.
É possível que estivesse mesmo llorando. Está na hora de falar desta claque do outro hemisfério, eles não eram apenas muitos, eles não se calaram um segundo, os muito menos adeptos do Benfica no estádio nem tiveram hipótese, sempre que abriam as goelas eram abafados pelos argentinos, os hinchas cantam como se desenhassem formatos sonoros de alegria, quando sofrem gritam como se tivessem pedras nos rins e quando rejubilam gritam como se em êxtase ao tocar o sublime, ora veja o como foi o 2-0 nas bancadas.
(E se pensa que estes adeptos saíram tristes pelo 2-2 depois dos 2-0, engana-se, estas almas não se abatem como cavalos de pernas fracturadas. Sim eles estavam mais frescos porque o calendário lhes beneficia as pernas, sim eles jogaram com paus metafóricos nas mãos, sim eles eram 12 mesmo depois da expulsão porque um público assim também joga, mas para eles o europeu Benfica era favorito antes do jogo e o empate não é mau e deixa tudo em aberto. Não acredita? Então veja só mais esta imagem, é à saída do estádio:)
Para a troca, valha a verdade que a claque do Benfica teve um momento em que os argentinos a respeitaram com um silêncio. Foi no "hino", claro:
E agora voltemos ao jogo.
A reviravolta do Benfica
Foi já depois dos 45 minutos - nos descontos - que Di Maria marcou canto, Otamendi atirou o corpo para a bola, foi travado no ar em falta, penalti, golo de Di Maria. 2-1 ao intervalo. É daqueles golos que não mudam necessariamente o rumo do jogo, mas travam o risco de descalabro que por momentos pareceu possível.
Na segunda parte, o Boca começou a cansar-se e o Benfica ganhou mais segurança. Até porque começou a impor-se fisicamente. Já não parecia acagaçado, como por minutos na primeira parte, mas disposto a deixar o ombro a ombro e passar para o tronco a tronco.
Renato Sanches foi o destemido de serviço, começou a entrar duro e a desafiar o físico, drenando a afirmação coletiva de virilidade: o jogo não era para meninos e a tibieza da primeira parte do Benfica custara dois golos. Isso não iria repetir-se.
Só que até para ser bruto é preciso jeito, um jeito que Otamendi tem porque exerce a força como se fosse uma caraterística natural sua. Praticou-a sempre, pelo que sai quase sempre na medida certa, a milímetros do cartão amarelo.
Já Belotti até tem corpanzil para aquilo, mas não sabe fazê-las bem feitas. Entrou ao intervalo e 22 minutos de inutilidade depois já estava no olho da rua. Vermelho direto e bem mostrado a quem decidiu saltar e dar um pontapé no cachaço do defesa argentino. Estava à espera de quê?
É já com menos um jogador que o Boca não só não mata o jogo como o Benfica cresce. O Benfica e Otamendi, outra vez, outro canto à direita, já sem Di María em campo, primeiro poste e golo, limpinho limpinho. Faltava ainda a expulsão de Figal, que decidiu que entrar de costas era boa ideia para disputar não uma bola mas um corpo. Acabaram dez contra dez. E quase o Benfica a ganhar no fim.
Do lado benfiquista, o jogo foi muito desequilibrado. Di María começou bem a atacar, mal a defender e acabou por sair quando já ninguém o via. Dahl foi um erro e saiu ao intervalo, depois de culpas nos dois golos sofridos. Renato batalhou muito mas brilhou pouco. De Aursnes e de Pavlidis pouco se viu.
Do lado argentino, os elogios vão para os marcadores dos golos, Merentiel e Battaglia, e também para Lautaro Blanco.
Os jornais argentinos falam de um jogo "eletrizante", mas a nós pareceu que metade da equipa do Benfica jogou mais perto da ligeira eletrocussão, perto de estarem paralisados. O calendário não ajuda, os sul-americanos chegam aqui com outra rodagem física, pois a época começou há menos tempo e a esta altura já estão em ponto de rebuçado. Para os clubes europeus, isto é um tempo fora do tempo, em que os jogadores já perderam o ritmo e ainda não descansaram. Tirando Otamendi, claro. Comandou e marcou. No fim, ao abandonar o campo, cerrou o punho sobre o símbolo na camisola do Benfica, como se agarrando a chama imensa - ou despedindo-se da sua luz.