Era para ser quinzazero mas o Benfica boss ainda esbarrou na classe operária

20 jun, 21:20
Benfica-Auckland City (Foto: AP Photo/Phelan Ebenhack)

Nem a meteorologia teve paciência para um jogo tão mau: o tempo derramou o tédio a cântaros e forçou um intervalo interminável. Ah, ao intervalo o Benfica ganhava. Um a zero. Nos descontos. De penalti. A uma equipa amadora. LOL. Depois houve um segundo jogo e veio a cabazada. Ou melhor, meia cabazada

Disse em tempos o filósofo Ronaldo que os golos são como o ketchup nas garrafas, “quando aparecem, é tudo de uma vez”. Mas quando o primeiro só sai depois de 53 minutos de refeição e à custa de um penalti cavado, o spaghetti da paciência dos adeptos já está teso como palha de aço. Bem-vindo à crónica de uma seca de uma partida, que os encarnados jogaram como se fosse a feijões e se enrolaram no seu próprio bocejo. Daqui só saiu uma coisa boa: ver um estudante de vinte anos, cujo passe custa menos que um T0 em Benfica, defender como se não houvesse amanhã.

Chama-se Nathan Garrow, substituiu Connor Tracey na baliza e estreou-se na competição como melhor em campo, desde uma primeira-parte em que era preciso gostar muito ou do Benfica ou do Auckland City para continuar a ver tão mão futebol. Nessa primeira parte, Garrow só não defendeu um penalti marcado por Di Maria, após falta sobre Gianluca Prestianni, outro miúdo, de 19 anos, que também se estreou na competição, a par de mais três mudanças no Benfica, com a titularidade de Orkun Kocku, Kerem Akturkoglu e de Leandro Barreiro. Prestianni está avaliado em oito milhões de euros, 46 vezes mais do que os 175 mil euros do passe de Garrow, mas permanece entre o saltar e o atascar: é suposto ser uma pérola mas por enquanto é ostra. Deu uns toques, mas não jogaria até ao fim.

Depois de uma primeira parte excitante como uma corrida de lesmas, o momento mais emocionante surgiu ao intervalo, com o risco de tempestade a esvaziar os gatos pingados das bancadas e a prolongar o remanso dos jogadores. Parecia uma espécie de vingança de deuses caprichosos a exigirem ou melhor jogo ou o seu dinheiro de volta.

Estavam 31.º e um clima húmido, choveu copiosamente, mas a irrigação do céu não provocaria floração cá em baixo, onde as calmas almas estavam apáticas como numa vaga frígida, daquelas em que, nas palavras de Virginia Woolf, “os pássaros gelavam em pleno ar e caíam como pedras”.

Foi neste estádio que tantas vezes jogou Nani, capitaneando o Orlando City, ele e João Moutinho – não esse, o outro João Moutinho -, que desarrumaram as botas nos states. Poucos lhes conhecerão os nomes ali na Florida, nem ali nem na Nova Zelândia, pois em nenhum destes países o futebol é o “primeiro” desporto. Nem sequer o segundo. E é aqui que é preciso falar de uma história de amadores, que, como o nome indica, é história de quem ama.

A paixão não quer compaixão em troca

Nathan Garrow, para nós o melhor em campo.  AP Photo/Phelan Ebenhack

Amador é aquele que exerce uma atividade por gosto, por amor – por paixão. E essa paixão sua merece mais que compaixão nossa. O salário vão os jogadores do Auckland City buscá-lo a outro lugar - a polir automóveis, a cortar cabelos, a limpar piscinas, a vender casas, a acartar caixotes em armazéns – e isso só não inspirará pessoas com a sensibilidade de calhaus.

“Mais vale morrer desconhecido e deixar atrás de si um arco, uma estufa, um muro rente ao qual amadurecem pêssegos, do que arder como um meteoro, sem deixar rasto”, escreve Woolf. E quantos destes jogadores do Benfica – destes e outros de tantas equipas – não são meras esperanças de meteoros? Quantas Garrows se sonham Prestianni e quantos Prestianni acabam como Garrows? Pois não “há poetas com cara de carniceiro e carniceiros com cara de poeta”?

Os poetas seriam supostamente os neozelandeses e os carniceiros os portugueses. “A má notícia para Auckland é que o Benfica deverá estar implacável”, antevia o The New Zeland Herald. A razão era óbvia: depois do empate com o Boca Juniors, é muito possível que “a diferença de golos poderá decidir quem avança para as eliminatórias”. Até do outro lado do mundo era óbvio que não era a feijões. Mas foi: feijoada com valeriana, uma soneira em Orlando.

“Orlando” em Orlando

São de “Orlando” (1928), de Virginia Woolf, as citações deste texto: a biografia de uma personagem que é homem até aos 30 e depois se transforma em mulher até quase aos 300 anos, quando o livro encerra à duodécima badalada da meia-noite. Sim, 300 anos, é como este jogo de 90 minutos que demorou mais de quatro horas entre o seu princípio e fim. Virginia foi contemporânea de Katherine Mansfield, com quem partilhava cartas, admiração e rivalidade. Mansfield, uma das mais aclamadas escritoras da Nova Zelândia, nasceu quando Fernando Pessoa tinha quarto meses e foi ceifada pela tuberculose aos 34 anos.

(Pedimos desculpa pela interrupção, mas é como o longo intervalo de duas horas de um jogo desinteressante: era isto ou falar da Disney World. Voltemos, em esforço, a relacionarmo-nos com o jogo).

Um dia, Herman José perguntou a Vitor Baía: se, como dizia o saudoso Fernando Gomes, marcar um golo é como ter um orgasmo, então é o guarda-redes um empata-f***? A plateia escangalhou-se a rir, claro, até porque ao vivo não havia “pis” sobre palavras e na altura o humor não acabava em tribunal mas era censurado pelo Parlamento. Nathan Garrow empatou várias f***, neste jogo com alguns orgasmos mas sem apogeus. Na vida “o êxtase é que importa”, diz a personagem de “Orlando”. O que nos devolve à felicidade. Quer dizer, ao tema da felicidade.

Um dos contos mais lidos de Mansfield chama-se “Bliss” (1920), que está traduzido em Portugal na Relógio D’Água como “Felicidade”  – e no Brasil já foi traduzido como “Êxtase”. No conto, uma mulher, Bertha Young, sente uma felicidade intensa e inexplicável, que adiante será destruída por uma atração-traição. Antes e depois disso, Bertha olha para uma pereira em plena floração no jardim: primeiro, a árvore brilha como símbolo da felicidade extática, fértil, espelhando Bertha; depois da deceção, a pereira permanece como símbolo da felicidade estática, suspensa, inatingível, contrastando com Bertha.

Isto é a crónica de um jogo falhado, que tardou em dar-se à dignidade de acabar. Foi um coito sem êxtase, sem desfloração, sem fertilidade. “Tem razão o filósofo que diz não ser maior que a espessura de uma lâmina a distância que separa felicidade e melancolia”, escreve Virginia. A felicidade dos neozelandezes foi-se na segunda parte – que duas horas de intervalo depois, mais foi um segundo jogo.

Enfim, a abada

Leandro Barreiro marcou dois, seguidinhos. AP Photo/John Raoux 

No segundo jogo - perdão, na segunda parte–, o Benfica fez o que devia ter feito desde o início contra uma equipa amadora: se é para marcar golos, é jogar para a frente e não para os lados, é entrar por ali adentro como uma gazua e partir a garrafa para entornar o ketchup, isto é, 2-0 por Pavlidis aos 54.

Pronto, agora ia ser um festival. Três minutos depois, Akturkoglu rompe, chuta! e go… defesa enorme de Garrow!, mas uma f*** empatada pelo guardião. O turco falha e sai, entra Renato Sanches e marca. 3-0.

(A substituição que cria tensão no banco não é no entanto essa, mas a de Kökçü, que sai do campo aos gritos com Lage, Lage que lhe gritará mal o golo de Renato entra, numa troca de vários vai-te-lixar-com-outras-palavras que fazem Kökçü ir embora do banco. Há ali um problema de autoridade a resolver entre os dois.)  

Aos 70 minutos, Lage roda a equipa, entram João Rego e Tiago Gouveia, e entram dois golos seguidinhos de Leandro Barreiro. É evidente, o Auckland colapsou. Ainda haverá tempo, no fim, para um penalti de Angel Di Maria, que já marcou três em dois jogos. 

Resultado final nos 6-0, depois de uma primeira parte quase seca e de uma segunda parte de bar aberto. Podiam ter sido os mesmos dez com que o Bayern ganhou ao Auckland se o Benfica tivesse entrado bem. Valeu a longa interrupção de duas horas para virar os ânimos. Conta o El Pais que, em Vitoria, depois de três meses de greve dos jardineiros, as ervas e as flores “colonizaram a cidade”. Mas no futebol não é parando que o verde medra. Nem o encarnado.  É correndo e chutando, como finalmente o Benfica fez, sobretudo na última meia hora. 

Angel Di Maria, dois jogos, três golos, três penaltis.  AP Photo/Phelan Ebenhack

O Benfica lá acabou isto nos 6-0 e seguirá para as temíveis mandíbulas dos bávaros do Bayern; e os jogadores do Auckland City haverão de regressar ao antipódico país, aos seus estudos e empregos, às suas vidas. Talvez felizes, quem sabe. “A vida é um sonho. É o despertar que nos mata. Quem nos rouba os sonhos, rouba-nos a vida”.

Pronto, o bocejante jogo acabou, pode deixar de adormecer no sofá e ir para a cama. Bons sonhos. Boa vida. Até amanhã.

 

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