Como a Coreia do Sul precipitou o fim da «Geração de Ouro» do futebol português

2 dez 2022, 00:32
Portugal-Coreia do Sul no Mundial 2002 (Foto Getty)

Portugal reencontra hoje a seleção asiática, 20 anos depois da eliminação no Mundial 2002, no jogo que representou o fim da linha para o grupo de jogadores que teve por base os campeões do mundo de juniores e levou a seleção a outro patamar

Estádio Munhak, Incheon, 14 de junho de 2002. Portugal defrontava a Coreia do Sul na última jornada da fase de grupos do Mundial. Ao contrário do que acontece nesta sexta-feira, no reencontro com a equipa asiática, a seleção nacional ainda não tinha o apuramento garantido. No fim das contas até teria bastado um empate, mas no fim de um jogo muito tenso, em que teve dois jogadores expulsos, Portugal perdeu e voltou para casa. Era o fim da linha para uma equipa que tinha por base aquela a que chamaram Geração de Ouro e que chegava ao fim, como um todo, naquele estádio sul-coreano.

João Vieira Pinto, expulso frente à Coreia do Sul e suspenso por seis meses pela agressão ao árbitro Angel Sanchez, não voltaria a vestir a camisola da seleção. O atual diretor da Federação tinha sido bicampeão do mundo de juniores em 1989 e 1991, nas equipas que foram a génese daquela geração de jogadores que seria a base da seleção ao longo de uma década.

Paulo Sousa, Jorge Costa e Abel Xavier, três jogadores que foram igualmente campeões do mundo de juniores, também terminaram naquele Mundial a carreira pela seleção. Tal como dois jogadores que não estiveram nos títulos de Lisboa e Riade mas eram parte integrante do percurso daquela geração: Pedro Barbosa e Paulo Bento, que é hoje aliás um elo de ligação no Qatar com a seleção de 2002. Ainda que o antigo médio, atual selecionador da Coreia do Sul, depois de já ter orientado a seleção nacional também no Europeu de 2012 e no Mundial 2014, não vá estar no banco mas na bancada, por ter sido expulso no final da partida da segunda jornada com o Uruguai.

Vítor Baía, o guarda-redes que foi um dos rostos da geração de ouro, sem ter chegado a jogar nos Mundiais de sub-20, só fez mais um jogo pela seleção depois do Mundial 2002. Em setembro desse ano defrontou a Inglaterra, quando a equipa era orientada por Agostinho Oliveira. Com a chegada de Luís Felipe Scolari, nunca mais voltou à seleção, num processo que fez correr muita tinta e nunca foi cabalmente explicado. Capucho, campeão do mundo sub-20 em 1991, também só voltaria à seleção no período de transição pós-Mundial 2002, sem voltar a ser opção depois da chegada de Scolari.

Não foi uma rutura absoluta com aquela geração, porque continuaram na seleção para lá de 2002 três das suas principais referências, todos igualmente campeões do mundo de juniores: Fernando Couto, Rui Costa e Luís Figo. Os dois primeiros estariam ainda no Euro 2004, enquanto Figo só deixou a seleção depois do Mundial 2006.  

Os nomes que levaram a seleção a outro patamar

Para todos, o percurso tinha começado no início dos anos 90. Os primeiros campeões do mundo de juniores foram lançados na seleção AA em dezembro de 1990, quando Artur Jorge estreou Vítor Baía, Fernando Couto e Jorge Couto num jogo particular entre Portugal e os Estados Unidos. Depois, foi Carlos Queiroz a promover as estreias de muitos dos jogadores que ele próprio tinha levado às duas conquistas mundiais. Em outubro de 1991, frente ao Luxemburgo, era a vez de Figo, João Vieira Pinto e Peixe, que tinha sido eleito melhor jogador do Mundial de Lisboa, mas não teria continuidade: somou apenas 12 internacionalizações, a última das quais em 1993.

No total chegaram à seleção principal 19 campeões do mundo de juniores, de um total de 34 jogadores que estiveram nos dois títulos portugueses. Alguns deles tiveram percursos pouco relevantes, mas outros tornaram-se referências históricas na seleção, expoentes máximos da geração de jogadores que levou a seleção para outro patamar, numa combinação de talento, experiência e em vários casos sucesso ao mais alto nível em grandes clubes europeus: Figo (127 internacionalizações), Couto (110), Rui Costa (94), João Vieira Pinto (81), Paulo Sousa (51), Jorge Costa (50). Além de Baía, que vestiu 80 vezes a camisola da seleção.

O Euro 96, a primeira grande competição da seleção em 20 anos, representou a estreia daquela geração num grande palco, ainda ao lado de algumas referências anteriores. Depois, foram chegando nomes que ajudaram a consolidar o crescimento e fizeram parte desse percurso, como Pauleta, Nuno Gomes, Sérgio Conceição, Pedro Barbosa, Paulo Bento ou Simão Sabrosa.

Da viragem no Euro 2000 ao que nasceu torto em 2002

O apuramento falhado para o Mundial 98 foi a grande frustração dessa geração, mas foi um marco: até hoje, Portugal não voltou a estar ausente de uma grande competição. O ponto alto foi o Euro 2000, na épica caminhada até à meia-final. Há um antes e um depois daquele campeonato na história da seleção, acredita quem o viveu.

Rui Costa falou sobre isso mesmo ao Maisfutebol, em 2020, quando recordou a reviravolta frente à Inglaterra no primeiro jogo. «É talvez um momento de viragem para a própria seleção nacional. O acreditarmos, naquelas circunstâncias extremas, foi o que nos permitiu não só ganhar aquele jogo mas também fazer aquele Europeu», disse então o agora presidente do Benfica: «Esse jogo em Eindhoven é um momento muito bom em termos individuais, mas também muito importante para tudo aquilo que veio a acontecer no futuro das seleções nacionais.»

O que torna ainda mais difícil de explicar o que aconteceu dois anos mais tarde. No Mundial 2002 a base da equipa ainda era a mesma de 2000 e alguns dos jogadores chegavam com estatuto de estrelas planetárias. Entre todos Luís Figo, que tinha vencido a Bola de Ouro em 2000 e o prémio de melhor do mundo da FIFA em 2001 e foi campeão europeu nesse ano com o Real Madrid. Mas Figo não estava na melhor condição física, tal como alguns dos jogadores mais influentes. E a preparação para esse Mundial asiático, que acabou por passar por um estágio em Macau, não ajudou. Um de muitos erros que marcaram a competição para Portugal. Paulo Bento falou sobre isso logo a seguir à derrota com a Coreia do Sul. «Há um ditado que diz 'mal que nasce torto, tarde ou nunca se endireita' e de facto não começámos nem acabámos bem. É preciso refletir nas coisas más que aconteceram na preparação e durante o Mundial», afirmou o então médio da seleção logo a seguir ao jogo.

«Aquele estágio em Macau não lembra ao diabo, tinha um calor e humidade insuportáveis ao fim de cinco minutos de treino tínhamos de parar, não conseguíamos sequer correr. Nós praticamente não treinámos antes do Mundial. Os treinos mais sérios foram uma semana antes, na Coreia, onde apanhamos um clima completamente diferente. Isso fez acima de tudo com que chegássemos ao Mundial penosos em termos físicos», recorda por sua vez Rui Costa na entrevista ao Maisfutebol: «Essa foi a maior condicionante que acabámos por ter nesse Mundial. Poder-se-á falar de mil e uma coisas, mas eu lembro-me que no jogo com os Estados Unidos, com uma hora de jogo meia equipa estava com cãibras.»

Na estreia frente aos Estados Unidos, aos 35 minutos Portugal já tinha sofrido três golos. Depois dessa derrota (3-2), seguiu-se uma goleada à Polónia (4-0), com um «hat-trick» de Pauleta. Mas o que tinha nascido torto não se endireitou. No último jogo, com a Coreia do Sul, Portugal teve João Pinto expulso ainda antes da meia hora. Beto também veria vermelho, antes de Park-Ji Sung marcar o golo da vitória da Coreia do Sul. Recorde aqui o relato ao minuto e a crónica desse jogo no Maisfutebol.

Fim de ciclo depois do fracasso na Coreia

Olhando para trás, Rui Costa, que não saiu do banco no jogo com a Coreia do Sul, admite que a equipa pode ter encarado aquele Mundial com excesso de confiança. «Se calhar porque acreditámos que o que tínhamos feito no Euro 2000 já era natural para nós e o Mundial 2002 devia ser uma continuidade. Interpretámo-lo do pior dos modos, e meto no saco de responsabilidades todos os intervenientes», disse.

Os jogadores da geração de ouro estavam a entrar na casa dos 30 anos. Para muitos, o fracasso daquele Mundial precipitou a despedida internacional. Aquela eliminação soou logo a fim de ciclo e Abel Xavier falou sobre isso ainda na Coreia, depois da eliminação de Portugal. «Não há palavras para descrever o ambiente no balneário. A tristeza é mais acentuada do que na meia-final do Europeu, porque esta geração trabalhou onze anos para isto», disse então o atual comentador da TVI: «Muitos destes jogadores não voltarão a estar no Mundial e alguns deles não voltarão à seleção. Estamos tristes por isso, tristes pelas expulsões, tristes pela forma como decorreu o jogo, neste momento é só tristeza no balneário. Como consequência dos resultados, esta geração vai ser renovada.»

A renovação foi acelerada pela chegada de Luiz Felipe Scolari e pelo aparecimento de novas alternativas. No Euro 2004 só estiveram 10 dos jogadores que representaram Portugal no Mundial 2002. O Europeu português representaria a despedida de dois históricos, Fernando Couto e Rui Costa, que passaram durante a competição o testemunho a referências de futuro como Ricardo Carvalho e Deco, na competição em que se estreava também o então adolescente Cristiano Ronaldo.

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