Como é que o Qatar se preparou para o Mundial?

27 out 2022, 22:44
Education City Stadium

Um investimento recorde em estádios construídos de raiz que serão reconvertidos quando terminar a competição, em infraestruturas e também num projeto desportivo. O que foi feito, o que envolveu e as inovações anunciadas, em mais um artigo de perguntas e respostas sobre o próximo Campeonato do Mundo

O Mundial 2022 representa uma enorme aposta do Qatar na promoção e desenvolvimento do pequeno país, um dos mais ricos do mundo. Foi feito um investimento brutal, muito maior do que para qualquer outra competição, na construção de raiz dos estádios, em infraestruturas e também num projeto desportivo. No quarto artigo de uma série de perguntas e respostas dedicada ao próximo Campeonato do Mundo, o Maisfutebol olha para o que foi feito, o que envolveu, as questões que levanta e as inovações anunciadas.

Quanto é que o Qatar gastou na preparação para o Mundial?

O valor que tem sido estimado aponta para qualquer coisa como 200 mil milhões de euros. Estamos a falar de um investimento muito superior a qualquer organização desportiva até hoje e de um valor equivalente à riqueza total produzida por Portugal num ano inteiro. Há estimativas ainda mais avultadas, como a do canal económico Bloomberg, que aponta para um investimento de 300 mil milhões. Os responsáveis pela organização não avançaram números oficiais, mas dizem que o investimento total não se refere apenas à construção de estádios, mas a várias outras infraestruturas lançadas nos últimos anos. Dizem também que vários equipamentos estavam já planeados, no âmbito de um projeto de desenvolvimento do país a que o Qatar chama Visão 2030.

Quantos estádios terá o Mundial?

São oito, o menor número desde o Mundial 1978, na Argentina. Originalmente estavam previstos 12, mas o número foi reduzido a pedido do Qatar, depois de um processo que passou por várias fases. A FIFA chegou a defender que o Qatar dividisse jogos do Mundial com alguns dos vizinhos, com o argumento de que poderia ser um fator de aproximação, numa altura em que o Qatar era alvo de um boicote político e económico por parte de vários países da região, como a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos ou Bahrain. Essa proposta de Gianni Infantino, presidente da FIFA, previa ainda o alargamento da competição a 48 equipas e só foi abandonada em março de 2019. Ainda assim, as exigências de um Mundial implicaram a construção de recintos muito maiores do que faria sentido para o Qatar, tendo em conta a sua pequena dimensão e expressão futebolística. Por isso, a organização procurou construir estádios que possam ser convertidos para outros usos depois do Mundial, através da redução da capacidade e da reconversão em vários equipamentos, como espaços comunitários, comerciais ou unidades de turismo. Os oito estádios estão formalmente situados em cinco cidades, mas com distâncias muito curtas entre si, no mais pequeno país de sempre a organizar um Mundial: com 11.581km2, o Qatar tem uma área oito vezes menor que Portugal. Todos os estádios estão situados num raio de 55km de distância de Doha, a capital do Qatar.

Então e que estádios são?

São todos recintos modernos, com design e tecnologia inovadoras e planeados de raiz. O Estádio Khalifa é o único que já existia antes de o Qatar vencer a organização do Mundial, mas foi submetido a uma remodelação profunda. Inaugurado em 2017, é também um dos poucos estádios que manterá a estrutura e a finalidade depois do Mundial. Um dos recintos será mesmo desmontado: o Estádio 974, palco do Portugal-Gana que marca a estreia da seleção nacional na competição, assim chamado por causa do número de contentores empilhados que lhe dão forma e é também o código telefónico internacional do Qatar. O Estádio Education City, que recebe o Portugal-Coreia do Sul da última jornada, está situado no meio de vários campos universitários em Al Rayyan. Depois do Mundial terá a capacidade reduzida para metade e será em parte convertido para instalações escolares. O mesmo acontecerá com o Estádio Ahmad Bin Ali, um recinto construído de novo no local onde existia outro estádio com o mesmo nome. Visualmente inspirado nas linhas do deserto, continuará a ser a casa do Al Rayyan. O recinto mais distante de Doha, a 35 km, é o Estádio Al Bayt, que que fica em Al Khor e, com 60 mil lugares, é o segundo maior estádio do Mundial. Vai receber a 20 de novembro o jogo de abertura entre Qatar e Equador, bem como uma das meias-finais. De design alusivo às tendas dos beduínos, é totalmente coberto, com uma cobertura retrátil que será retirada depois do Mundial, quando parte do recinto será reconvertida também em vários outros equipamentos, que incluem um hotel, um centro comercial e até um hospital. Outro estádio com um visual alusivo ao Médio Oriente é o Estádio Al Thumama, em Doha, inspirado na touca tradicional usada pelos homens árabes. Depois do Mundial terá a capacidade, atualmente de 40 mil espectadores, reduzida para metade. O mesmo vai acontecer ao Estádio Al Janoub, um dos recintos mais icónicos do Mundial, que se inspira nas velas dos barcos tradicionais de apanha de pérolas e fica em Al Wakrah, a sul de Doha. Por fim, a jóia da coroa é o Estádio Lusail, palco da final e de mais nove jogos, incluindo o encontro entre Portugal e o Uruguai. Com capacidade para 80 mil espectadores, é a obra mais emblemática da grandiosidade do investimento do Qatar. Também ele será reconvertido depois do Mundial para vários espaços comunitários. Todos os estádios serão acessíveis por transportes, cinco deles pelo novo metro de Doha.

Veja aqui as imagens dos estádios

 

Quais são as inovações dos estádios?

O Mundial foi transferido para o inverno por causa do clima do Qatar. Em novembro e dezembro a temperatura será inferior aos mais de 40 graus de média do verão, mas permaneceu ainda assim uma preocupação, a que a organização tentou desde cedo responder desenvolvendo um complexo sistema de arrefecimento e ar condicionado. As grandes condutas nos estádios, ao nível do relvado, são os elementos mais emblemáticos desse sistema, que será utilizado em sete dos oito estádios. A exceção é o Estádio 974, que não só fica em zona costeira, mais fresca, como tem um sistema de ventilação natural, face às características da construção.

 

Os sistemas de refrigeração, aliados a cuidados na construção, como o uso de materiais claros ou a orientação dos estádios para minimizar o impacto do sol, pretendem garantir que a temperatura no interior se mantenha entre os 18 e os 24 graus. Além disso, os estádios têm relvados de última geração, cuidadosa (e dispendiosamente) mantidos.

Que mais foi construído para o Mundial?

A lista é muito extensa. Inclui infraestruturas de transportes, estradas, habitação, hotéis e até um sistema de esgotos. Uma das principais obras foi a construção do metro de Doha, inaugurado em 2019, com 37 estações e uma extensão superior a 70 quilómetros. Além disso, foi concluída a construção do novo aeroporto internacional de Doha, que já estava em curso, e reaberto o antigo aeroporto, para aumentar a capacidade das viagens aéreas durante o Mundial. A renovação do sistema de esgotos, para poder absorver o impacto do enorme afluxo adicional de pessoas durante o Mundial, é outra das grandes obras. E uma das últimas a ser terminadas, como notava há um mês uma reportagem do Bloomberg, que dava conta da confusão que se mantinha ainda em algumas zonas de Doha enquanto aceleram os trabalhos para o Mundial. Não é só na capital. O Qatar também está a construir de raiz uma cidade inteira, no local onde foi erigido o estádio da final. Chama-se Lusail City, fica a 16 quilómetros do centro de Doha e pretende ter capacidade para 200 mil habitantes, com uma série de equipamentos de luxo que vão de hotéis a campos de golfe, marinas e parques de diversões. Junta-se a outra megaconstrução do Qatar, já operacional mas ainda em fase de expansão, a ilha artificial The Pearl. O resultado final de tudo isto será impressionante, diz quem viveu vários anos no Qatar e acompanhou a evolução dos preparativos. «Construíram cidades de raiz e o Qatar tornou-se um polo de tecnologia concentrada, de infraestruturas de ponta, de edifícios deslumbrantes, de hotéis fantásticos», como já contou ao Maisfutebol o treinador João Carlos Pereira, que foi um dos coordenadores do projeto desportivo que o Qatar desenvolveu em paralelo com a preparação do Mundial.

Qual o impacto ambiental de tudo isto?

O Qatar e a FIFA apostaram forte na ideia de sustentabilidade do Mundial, usando bandeiras como o recurso a materiais reutilizados em vários estádios, a futura reconversão para outros usos, a cedência prevista a países em desenvolvimento de 170 mil cadeiras que serão retiradas dos recintos após o Mundial, ou ainda a aposta em sistemas de circulação e reciclagem do ar condicionado ou da água utilizada. Salientam também a aposta no recurso a energia solar. Na semana passada foi inaugurada no deserto uma central de energia solar que se estende por 10 quilómetros quadrados, tem 1.8 milhões de painéis solares e pretende vir a fornecer 10 por cento das necessidades de energia do país. Mas na inauguração, segundo a France Press, não ficou claro se ela cobrirá todas as necessidades energéticas do Mundial. Uma das bandeiras da organização é conseguir atingir um saldo neutro em carbono. «O nosso objetivo é compensar todas as emissões de gases de efeito de estufa, enquanto promovemos soluções de baixo carbono no Qatar e na região», explica-se no site oficial da prova. Uma estimativa da FIFA aponta para que as emissões totais associadas ao Mundial 2022 gerem 3.6 milhões de toneladas de CO2, contra 2.1 milhões na Rússia, há quatro anos. A maioria deve-se a emissões indiretas relacionadas com transportes - sobretudo aéreos -, construção de infraestruturas e alojamento. Por outro lado, várias organizações ambientais contestam esse número, defendendo que peca por defeito e que se trata de «greenwashing» por parte de um país cuja riqueza assenta na exploração de petróleo e gás natural. «Esta publicidade da neutralidade em carbono é enganosa e não é fiel ao impacto climático real que terá o evento», disse à France Press Gilles Dufrasne, que elaborou um relatório sobre as emissões do Qatar para a organização não governamental Carbon Market Watch. Além da poluição que foi causada ao longo dos anos pela construção e que não estará na totalidade contabilizada nesta estimativa, há custos com impacto relevante, que resultam da realização do Mundial num clima desértico. Em fevereiro de 2021, a agência Reuters dava por exemplo a medida dos números que envolviam o tratamento de mais de uma centena de relvados, entre os tapetes dos estádios e os dos centros de treino: 10 mil litros de água dessalinizada por dia no inverno, 50 mil no verão, para manter toneladas de relva transportada anualmente dos Estados Unidos.

Falando de bola, também vai haver inovações tecnológicas em campo?

Sim. A começar pela bola. A Al Rihla é o ponto de partida para um novo sistema semiautomático de deteção de fora de jogo que será utilizados no Mundial 2022. A bola tem um sensor que envia 500 vezes por segundo dados para a sala de controlo de vídeo. Isso permite, segundo a FIFA, «uma deteção muito precisa do ponto de remate». Está ligado a 12 câmaras colocadas sob a cobertura do estádio, que seguem a bola e os jogadores, «calculando a sua posição exata no campo». Quando é detetada uma posição de fora de jogo é enviado automaticamente um alerta para a sala do VAR, onde os vídeo-árbitros validam ou não o lance, antes de avisarem o árbitro de campo.

 

E desportivamente, como é que o Qatar se preparou?

Em grande, como em tudo o resto. A face visível do enorme investimento do Qatar no desenvolvimento desportivo é a Academia Aspire, um projeto estatal lançado em 2004 e que, com fortes ligações internacionais e também em paralelo com a aposta na Liga do Qatar, dispôs de enormes recursos para trabalhar. «Eu era o funcionário dois mil e tal, aquilo era uma organização monstruosa», contou João Carlos Pereira, que falou em março deste ano ao Maisfutebol sobre o projeto em que esteve envolvido ao longo de seis anos: «Não deve ter havido nenhum projeto desta natureza em mais lado nenhum do mundo.» Os números das infraestruturas da academia dão a medida da dimensão do investimento: 12 campos de futebol, mais de uma centena de treinadores a orientar equipas desde os sub-6 e vários equipamentos sedeados no complexo que engloba também o Estádio Khalifa. A descrição é de Diogo Gama, outro português que trabalhou na Academia Aspire e em 2019 falou com o Maisfutebol sobre o que foi feito em nome da evolução do futebol qatari. O trabalho assentou no desenvolvimento de jogadores qataris, que são uma minoria no país, ainda que a seleção tenha alguns jogadores naturalizados, entre eles Pedro Correia, de origem portuguesa. Quando esse trabalho começou, a seleção do Qatar não figurava entre as primeiras 100 seleções no ranking da FIFA. Mas evoluiu, até alcançar em 2019 algo impensável anos antes: conquistou a Taça da Ásia, a maior competição continental de seleções. Além disso chegou, por exemplo, a duas fases finais do Mundial sub-20. João Carlos Pereira diz que hoje o «nível competitivo é incomparável com aquilo que era», mas também vai lembrando que as expectativas sobre o que o Qatar fará em campo no Mundial 2022 não podem ser muito elevadas. «A Alemanha há 50 anos que tem uma liga profissional, o Qatar tem uma liga profissionalizada há meia dúzia de anos», afirma: «Ganhando um jogo no Mundial vai ser um motivo de grande festejo e orgulho para o Qatar.» Atualmente na 50ª posição do ranking mundial, o Qatar vai disputar o seu primeiro Mundial, direito que ganhou como país organizador.

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