O coreano que está a cumprir o serviço militar no Mundial (e vai defrontar Portugal)

1 dez 2022, 23:55
Kwon Chang-hoon (Getty Images)

Kwon Chang-hoon jogava no Friburgo quando teve que regressar à Coreia do Sul para fazer a tropa. Por ser internacional e um dos jogadores mais destacados do país, foi autorizado a fazê-la no clube do exército. Ele que trocou o contrato de jogador por um ordenado de militar em início de carreira: 400 euros. Mesmo assim, ninguém lhe tira o orgulho de bater a continência várias vezes durante cada jogo no Qatar.

Quem já passou os olhos por um jogo da Coreia do Sul, no Mundial 2022, não pode ter deixado de reparar em Kwon Chang-hoon: é o número 22, joga no meio-campo ofensivo e dá nas vistas por várias vezes durante o jogo bater a continência.

Fá-lo durante o hino, por exemplo, enquanto todos os outros colegas se abraçam. Mas fá-lo também quando marca um golo e até quando é substituído: trava junto à linha lateral, bate a continência e só depois cumprimenta o colega, para sair de campo. Seguramente vai voltar a fazê-lo esta tarde, quando a Coreia defrontar Portugal.

Mas porquê?

Muito simples: Kwon Chang-hoon está no Qatar a cumprir o serviço militar. O Mundial 2022 surge no meio do tempo de tropa do jogador, pelo que recebeu uma autorização para viajar com a seleção. O que não significa que possa ignorar as obrigações militares.

Bater a continência é uma delas.

«É um gesto de respeito. Serve para mostrar o espírito militar e para honrar os outros tropas. Nós, os coreanos, temos naturalmente um sentido militar.»

Na Coreia do Sul, recorde-se, a tropa é obrigatória para todos os homens.

Nesse sentido, os sul-coreanos que foram dados como aptos na inspeção têm de cumprir, antes de atingirem os 27 anos, o serviço militar durante um ano e meio: dezoito longos meses.

«É difícil explicar. A Coreia do Sul é dos poucos países em que o serviço militar ainda é obrigatório. Se concordamos com isso? Nós não pensamos na Coreia do Norte todos os dias, para nós é tranquilo e o que o governo deles faz tornou-se de certa forma normal aos nossos olhos, mas a verdade é que a guerra das Coreias ainda não acabou. Por isso os homens entendem que seja obrigatório ir à tropa», conta Lim Jihun, um coreano a residir em Portugal.

«Mesmo assim as coisas têm vindo a mudar. O meu pai tem 76 anos e na altura dele era obrigatório fazer três anos e seis meses. Agora são dezoito meses, é bastante menos.»

Ora por isso, ver um jogador bater a continência durante um jogo do Mundial pode parecer-nos estranho, mas é um motivo de orgulho para quem o faz.

Até porque são muito raras as exceções concedidas à obrigatoriedade de cumprir a tropa.

«Se um atleta ganhar uma medalha de ouro, prata ou bronze nos Jogos Olímpicos ou uma medalha de ouro nos Jogos da Ásia, fica livre de ir à tropa. Mas têm de ser campeões. Em 2018, por exemplo, a equipa de futebol ganhou a medalha de ouro nos Jogos da Ásia e essa equipa ficou livre», conta Lim Jihun.

«Por isso é que o Son, do Tottenham, ou o Wang, do Olympiakos, não vão fazer a tropa, porque estavam nessa equipa que ganhou a Taça da Ásia. O Kwon Chang-hoon não esteve, em 2018 teve uma grave lesão e ficou vários meses parado. Não ganhou esse regime de exceção. Mas, mesmo assim, esses que ficaram livres têm de fazer a recruta de cinco semanas. Isso é obrigatório para toda a gente sem exceção. O Son, por exemplo, fê-la durante a pandemia. Depois ainda têm de ir à Coreia cumprir horas de serviço comunitário.»

Ora no verão de 2021, Kwon Chang-hoon tinha 26 anos, quase 27, e era um dos coreanos mais destacados no futebol europeu. Mas não podia mais adiar a entrada na tropa.

O médio jogava na altura no Friburgo, da Bundesliga, que tinha pagado três milhões de euros para o contratar depois de três anos no Dijon, e pediu ao clube alemão que o libertasse para voltar à Coreia do Sul: tinha de cumprir as obrigações militares.

Durante seis meses foi jogar no Suwon Bluewings, o clube onde se formara, até que em novembro desse ano saiu a circular do governo a dizer que o alistamento tinha sido aceite.

«Todos os homens fazem exame médico a partir dos 20 anos e até aos 27 é obrigatório entrar de qualquer forma. Por exemplo, podem pedir adiamento quando vão para a faculdade, ou quando decidem ir tirar um mestrado. Tem de haver algum motivo. Mas até aos 27 anos têm de cumprir o serviço militar. Não podem adiar mais.»

Por isso em novembro de 2021 Kwon Chang-hoon recebeu a confirmação de que ficou alistado e durante quatro meses cumpriu a recruta no Centro de treino do exército de Nonsan.

No fim da recruta, e por ser um jogador destacado, internacional pelo país, Kwon foi aceite no Gimcheon Sangmu, o clube do exército coreano.

«Os bons atletas podem cumprir o serviço militar no Gimcheon Sangmu, após concluírem a recruta. Não só os futebolistas, mas os atletas de várias modalidades. Assim treinam todos os dias, participam em provas nacionais e internacionais, podem manter os níveis físicos altos.»

O empresário Lim Jihun diz, no entanto, que é difícil entrar no clube. Só os internacionais coreanos, ou pelo menos atletas que já tinham sido campeões nacionais, podem ser aceites.

O Gimcheon Sangmu não tem jogadores próprios. Todos os atletas chegam por empréstimo do clube detentor do passe e vão embora após cumprido o ano e meio de serviço militar.

Durante esse tempo, de resto, ganham o ordenado de um militar em início de carreira normal. O que no caso dos jogadores de futebol é um verdadeiro choque.

Kwon Chang-hoon, por exemplo, estava no Friburgo, onde seguramente teria um salário milionário. A obrigatoriedade de fazer a tropa fê-lo regressar à Coreia do Sul, ingressar no Gimcheon Sangmu e ficar com um ordenado de 500 mil wons (ou seja, 402 euros).

«O salário não é tudo. Nós coreanos temos um espírito militar que nenhum dinheiro pode comprar», justificou o próprio Kwon quando lhe perguntaram pelo dinheiro que ia perder.

«É como no Mundial de 2018, na Rússia, quando a Coreia do Sul venceu a Alemanha. O talento individual é muito importante, e a Alemanha tinha-o, mas num jogo de futebol o mais importante é o talento coletivo, que pode ser melhorada em todos os aspetos. Esse espírito militar que nós temos permitiu-nos que o nosso talento coletivo fizesse a diferença.»

Filho de uma família de padeiros, foi na padaria dos pais que conheceu um olheiro da equipa de futebol do Liceu Maetan, que tinha uma parceria com a equipa Suwon Bluewings. Depois de terminar o ensino médio, pediu ao olheiro que o levasse para o Liceu Maetan, onde se formou e começou a jogar futebol.

Aos 19 anos começou então a jogar na equipa sénior dos Suwon Bluewings e nunca mais parou. Nem agora que a tropa o chamou, e ele foi. Com um orgulho que é evidente.

Até maio de 2023, vai continuar por aí a bater continências.

 

Seleção

Mais Seleção

Patrocinados