O selecionador que em três meses fez de Marrocos uma «família»

10 dez 2022, 10:32
Canadá-Marrocos

Walid Regragui conduziu a equipa numa campanha histórica no Mundial, até ao encontro deste sábado com Portugal. Perfil do treinador que prefere estar no balneário a tomar chá e a conversar com os jogadores

Walid Regragui assumiu a seleção de Marrocos no final de agosto e três meses mais tarde tornou-se o primeiro treinador africano a atingir os quartos de final do Mundial. Em pouco tempo o treinador que nasceu em França, fora do seu país de origem como muitos dos jogadores da seleção, uniu uma equipa que estava fraturada, potenciando o sentimento de orgulho em representar o país e o mundo árabe, e está a conduzi-la numa campanha histórica, que vai tentar prolongar neste sábado, frente a Portugal. A solidez e confiança de Marrocos em campo, num Mundial onde sofreu apenas um golo até agora, por sinal marcado na própria baliza, é a face visível do trabalho de um treinador que cultiva uma relação próxima com os jogadores.

Antes da aventura no Mundial, Regragui já tinha passado pelo Qatar, como treinador do Al Duhail. O português Raul Costa fazia parte da equipa técnica e recorda isso mesmo. «Ele tinha uma liderança de proximidade com a equipa. Era o treinador que todos os dias, depois da reunião connosco sobre o treino, ia para o balneário conviver com os jogadores», conta o preparador físico: «Aqui culturalmente há muito o hábito de estar no balneário a tomar o chá e o karak. Ele muitas vezes ia tomar o seu chá para o balneário e sentava-se com eles quase até à hora do treino. Conversavam muito sobre futebol, claro, mas muitas vezes sobre outras coisas também. Era muito aberto com eles. Mas se tivesse de mandar uns berros durante o jogo, ou no final, ou mesmo no treino, ele também intervinha.»

No Qatar, essa sintonia também é evidente. «Se repararem nos vídeos que têm aparecido dele com a seleção de Marrocos, a entrar nos meinhos, a entrar na brincadeira com os jogadores, ele é muito isso. Tenta a liderança pela proximidade», diz Raul Costa.

A «família» de Regragui, as mães nos estádios e os «trisavós» de Fernando Santos

Depois de Marrocos garantir o apuramento para os oitavos de final do Mundial como líder do grupo, o lateral Achraf Hakimi fez questão de reforçar essa ideia. «Isto não é uma equipa, é uma família», disse. A analogia não é inédita, mas neste caso é também literal, porque além da forte ligação do grupo os jogadores têm a companhia de familiares, sobretudo os pais, em cada estádio do Qatar.

As imagens de vários jogadores e dos próprios treinadores a cumprimentarem as mães no final dos jogos tornaram-se virais. Numa seleção constituída na maioria por jogadores nascidos fora do país - 14 dos 26 convocados, a seleção com mais «expatriados» no Mundial – o convite às famílias para estarem próximas dos jogadores, promovido pela Federação marroquina, é mais um meio para fortalecer o espírito de grupo.

Fernando Santos tem consciência da forma como Marrocos está a capitalizar em campo esse sentimento de pertença dos jogadores nascidos fora do país. Na antevisão do jogo, o selecionador nacional referiu uma declaração de Hakimi a dizer que jogava pelos seus avós, para procurar também potenciar essa motivação do lado português: «Temos de jogar pelos nossos avós, bisavós e trisavós e ganhar o jogo.»

Para alguns dos familiares dos jogadores, a presença no Qatar é uma experiência totalmente nova. «Durante toda a carreira dele como treinador e jogador, eu nunca viajei para o ver. Vivo em França há mais de 50 anos e esta é a primeira vez que saio de Paris para ver uma competição», disse ao canal Arriyadia a mãe de Regragui, Fatima, que o treinador foi abraçar no final da vitória sobre a Espanha nos penáltis.

 

O economista que foi internacional antes de ser treinador

Regragui nasceu em França e foi lá que se fez jogador, lateral-direito que passou por vários clubes, teve uma experiência em Espanha, no Racing Santander e representou o seu país de origem. Foi lançado na seleção em 2001 por Humberto Coelho e somou meia centena de internacionalizações, tendo chegado à final da CAN em 2004.

O interesse em saber mais sobre o jogo estava lá desde cedo. O treinador francês Rudi Garcia orientou Regragui ainda nos juniores e mais tarde no Dijon e falou sobre isso ao Sofoot: «Promovi-o à equipa A e sentíamos que ele tinha um interesse real por tudo o que envolvia a tática, o trabalho físico, o treino. Ou seja, uma parte do trabalho de treinador.»

Regragui até chegou tarde ao futebol profissional, aos 23 anos. Pelo meio apostou na educação, uma exigência do pai, e formou-se em ciências económicas e sociais. Também fala inglês e espanhol, para lá do francês e do árabe, como tem mostrado nas conferências de imprensa no Qatar.

Depois de deixar de jogar, iniciou a carreira de treinador em 2012 na seleção marroquina, como treinador-adjunto de Rachid Taoussi. A seguir orientou durante várias temporadas o FUS Rabat, onde conquistou a taça e o campeonato marroquinos. Seguiu-se o Qatar. No início de 2020, foi escolhido pelos dirigentes do Al Duhail para suceder ao português Rui Faria. Raúl Costa recorda que foi um período atribulado, em plena pandemia. «Foi uma fase de jogar e parar, fomos de férias, depois viemos acabar o campeonato. Jogámos tudo seguido, quase sem ele poder introduzir as suas ideias de jogo», recorda. Ainda assim, o Al Duhail foi campeão. Mas, depois de uma curta paragem, com uma pré-temporada «fechados num hotel», a equipa começou mal o campeonato e Regragui foi despedido após uma derrota.

A seleção e o regresso dos «proscritos»

Ao fim desses oito meses no Qatar, Regragui voltou a Marrocos e surgiu então a oportunidade de treinar o gigante Wydad Casablanca. Numa só época, conquistou o campeonato e a Liga dos Campeões africana. Tinha vencido títulos por todos os clubes onde passou, ganhara reputação e seguiu-se o convite para a seleção de Marrocos. No final de um processo em que foi veiculado também o nome do português Villas-Boas, foi escolhido para suceder ao bósnio Valid Halihodic, que qualificou a seleção para o Mundial mas tinha entrado em rutura com alguns dos jogadores de referência. Como Hakim Ziyech, o extremo do Chelsea que em fevereiro chegou mesmo a garantir que não voltava à seleção, o lateral Mazraoui ou o avançado Hamdallah. Todos eles voltaram com Regragui.

«Antes do Mundial tínhamos muitos problemas em relação aos jogadores nascidos em Marrocos ou fora do país. Agora demonstrámos que todos os meus jogadores são marroquinos e todos se batem da mesma forma em campo», diz Regragui: «Cada jogador vem com a sua cultura e a mistura é benéfica para todos.»

Em campo, Marrocos tem-se destacado pela solidez defensiva. Algo que revela também a capacidade de adaptação de Regragui como treinador, diz Raul Costa: «Em termos de jogo ele é um treinador que pensa muito no aspeto ofensivo, em ter a bola, em ser protagonista e dominar o jogo. Mas a nossa equipa também lhe permitia isso. E no Widad a equipa também lhe permitia isso. Com Marrocos, num Campeonato do Mundo, sem tempo para treinar, terá querido jogar mais na segurança, num equilíbrio maior, apostando mais num bloco intermédio baixo e a procurar a transição. Tem jogadores para isso, os dois alas permitem isso e tem dois jogadores no meio-campo que são bons para isso, com uma garra tremenda.»

Marrocos chegou até aqui embalado numa onda crescente de entusiamo nos estádios, com milhares de adeptos a criarem um ambiente ensurdecedor a cada jogos dos Leões do Atlas. Esse apoio passa as fronteiras do país, em redor da primeira seleção do mundo árabe nesta fase do Mundial. Frente a Portugal são esperados 35 mil adeptos marroquinos, muitos deles sem bilhete. Raúl Costa, que continua no Al Duhail e tem acompanhado o Mundial no Qatar, dá outro exemplo desse entusiasmo: «Estive hoje com o meu presidente e ele mostrou-me vídeos de milhares de sauditas que estão na fronteira a querer entrar em Doha por causa de Marrocos, para assistir a isto.» Mas bastariam os locais para fazer a festa, acrescenta: «Aqui a comunidade do mundo árabe africano, marroquinos, tunisinos, argelinos, é muito grande. Muitas vezes realiza-se aqui a Supertaça árabe e seja com clubes marroquinos, argelinos ou egípcios, o estádio enche só com locais.»

Regragui também tem feito questão de capitalizar esse apoio. «Representamos primeiro o povo marroquino e depois o povo árabe e africano. Sentimos toda a energia positiva que emana dos adeptos tanto árabes como africanos», disse o treinador na antevisão do jogo com Portugal.

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