A família fugiu da guerra, ele encantou Xavi, fez história no Mundial e vai jogar em Inglaterra (ou não)

5 dez 2022, 08:06
Garang Kuol no Argentina-Austrália (Foto Getty)

Garang Kuol é um talento que já deu nas vistas no Qatar. O jovem australiano cuja família tinha de lavar o equipamento do clube para ele poder jogar já é reforço do Newcastle, mas pode ser emprestado e Portugal tem surgido entre as hipóteses

Garang Kuol fez história no Mundial e a última imagem que deixou, quando esteve muito perto de marcar no final do jogo dos oitavos de final frente à Argentina, alimentou a expectativa em torno do menino de 18 anos que viveu um ano de sonho. Chegou à Liga australiana, ouviu elogios de Xavi depois de brilhar frente ao Barcelona, foi com a Austrália ao Mundial e assinou pelo Newcastle. Agora, espera para ver onde jogará a partir de janeiro.

É só o princípio para Garang Kuol, que no sábado se tornou o mais novo de sempre a jogar na fase a eliminar do Campeonato do Mundo desde Pelé. O Mundial e aquele lance de quase golo, quando dominou a bola e rematou para obrigar Emiliano Martinez a uma defesa aparatosa, fizeram parte da sua «curva de aprendizagem», diz. «Foi uma boa experiencia para mim defrontar jogadores deste nível. São pistas de aceleração para o meu desenvolvimento», disse no final. Apesar da juventude, não falta confiança a Kuol, que antecipa um futuro risonho para os Socceroos: «Mostrámos o nível de futebol que os australianos têm. Acho que no futuro vão ver uma equipa do nível do Brasil ou da Argentina. As pessoas acham que os jogadores na Europa podem voar ou coisa que o valha. Somos todos humanos, todos com dois pés. É uma questão de paixão e coração.»

Garang Kuol deixa o Qatar depois de ter sido utilizado em duas partidas, frente a França e Argentina, ele que apenas se estreou pela seleção em setembro. Uma ascensão meteórica para o adolescente que nasceu no Egito, num campo de refugiados onde a família viveu durante um ano depois de ter fugido da guerra no Sudão do Sul. Daí, a família foi viver para a Austrália e fixou-se em Shepparton, no estado de Victoria. «Não foi fácil chegar à Austrália. Fomos para o Egito como refugiados e enquanto lá estivemos muita da nossa gente perdeu a vida. Foram tempos muito emotivos», contou a mãe, Antonita, ao site Keepup. Na mesma reportagem, Kuol disse que não esquece de onde a família vem: «Eu e os meus irmãos compreendemos o que os nossos pais tiveram de superar para estarmos aqui como família.»

Para os irmãos Kuol poderem jogar, a família lavava os equipamentos do clube

Os irmãos Kuol sempre foram apaixonados por futebol. «Eles vêm do futebol. E continuam a querer ficar lá fora a dar pontapés na bola quando é hora de jantar», conta Antonita. Na Austrália os clubes cobram verbas avultadas pela inscrição e frequência dos treinos, na ordem das centenas de euros, pelo que o acesso ao futebol não é fácil para jovens de origens humildes. Mas Garang e os irmãos conseguiram integrar-se no Goulburn Valley Suns. Como contrapartida para os irmãos jogarem no clube, a família, que tinha um negócio de lavandaria, tratava dos equipamentos de treino e jogo.

«Somos um clube que não discrimina e mesmo que alguém não possa pagar, encontramos forma», disse ao site Chroniclelive o primeiro treinador de Garang, Craig Carley: «A forma de os Kuol pagarem era lavando os equipamentos. Noutro clube, provavelmente tinham-nos mandado embora por não poderem pagar.»

A aposta foi recompensada. O primeiro dos oito irmãos a dar nas vistas foi Alou, que se destacou desde cedo no Goulburn Valley Suns e deu o salto para o Central Coast Mariners em 2019. Nos primeiros nove jogos na A League, o também avançado marcou seis golos. Ao fim de uma época foi contratado pelo Estugarda. Alou, que neste verão representou os sub-23 da Austrália na Taça Asiática, ainda não se estreou na equipa principal do clube alemão.

Há mais dois irmãos a seguir os passos do futebol profissional, Teng e Didi. Menos clara é a informação que tem sido publicada em alguma imprensa relativa ao irmão mais velho, Kwol Mawien Kwol, que estará fugido da justiça australiana por envolvimento em fraude bancária. De acordo com o Daily Mail, esse irmão teria participado mesmo na intermediação do negócio da transferência de Garang para o Newcastle.

Tal como Alou, Garang começou por exibir o talento no Goulburn Valley Suns. Aos 15 anos já impressionava. Graig Carley recordou ao site Keepup o dia em que o lançou num jogo do campeonato regional: «O Garang entrou em campo e a forma como dava cabo daqueles jogadores seniores, jogadores que tinham acabado de se retirar do futebol profissional, foi fenomenal.»

Rapidamente foi contratado pelos Mariners, com o irmão Alou a reforçar as expectativas: «É ainda melhor que eu.» Chegou ao clube em janeiro de 2021. Estreou-se pela equipa principal em dezembro, depois teve de parar devido a uma lesão no joelho, mas quando se estreou na A-League, em abril deste ano, o impacto foi imediato. Marcou um golo cinco minutos depois de entrar em campo. Nos primeiros sete jogos, apontou quatro golos, saindo sempre do banco.

 

Os elogios de Xavi e a contratação pelo Newcastle

Em maio, o Barcelona fez uma digressão à Austrália e Garang foi selecionado para representar uma equipa All Star australiana, treinada por Dwight Yorke. A exibição do jovem adolescente nessa vitória dos catalães por 3-2 valeu-lhe um elogio rasgado de Xavi, como recordava num artigo recente a Foxsports. «Foi uma grande surpresa. É muito rápido, criou muitas oportunidades e nós cedemos duas ou três oportunidades por causa dele. Portanto, um grande jogador, com grande futuro. É um talento», disse o treinador do Barcelona.

Tudo aconteceu muito depressa para Garang. Em setembro, com 18 anos acabados de fazer, foi convocado para a seleção australiana. Estreou-se frente à Nova Zelândia e mais uma vez impressionou pela velocidade e pela confiança. Cinco dias mais tarde, o Newcastle anunciava a sua contratação.

«Tinha propostas, tinha várias opções. Ter jogado bem com o Barcelona recentemente elevou a cotação dele. Felizmente conseguimos ganhar a corrida para o contratar», disse na altura o treinador Eddie Howe, descrevendo a impressão com que ficou após o primeiro contacto com Kuol: «Um miúdo muito confiante e fiável que tem muita motivação.»

A rápida ascensão de Garang acabou por lhe valer um lugar entre os 26 jogadores convocados de Graham Arnold para o Qatar, uma lista que aliás contou com mais dois jogadores de origem sudanesa, Awer Mabil e Thomas Deng. Nunca foi titular num jogo da A-League, era o segundo jogador mais jovem no Mundial 2022, atrás apenas do alemão Youssoufa Moukoko, mas não se deixou intimidar por isso, nem pela expectativa que o rodeava.

«Não presto atenção ao que dizem de mim. Foco-me sobretudo no que faço em campo, nos treinos e nos jogos», disse antes da estreia, citado pelo Sydney Morinng Herald. «Para mim é entusiasmante ver o que posso fazer contra jogadores deste calibre. Quero testar-me a mim próprio. Só tenho que entrar com a atitude mental certa. É uma questão de termos confiança em nós próprios e sermos implacáveis, ter a mentalidade de querer criar algo e causar impacto.»

O futuro depois de janeiro, com Portugal entre as hipóteses

Depois do Qatar, a vida de Garang vai mudar. Mas ainda não é claro qual será o seu futuro a partir de janeiro. Quando foi anunciado como reforço do Newcastle, o treinador admitiu que a hipótese mais provável numa primeira fase seria o empréstimo, até porque Kuol dificilmente reuniria os requisitos para obter a licença de trabalho em Inglaterra. Mas o técnico adiantou que as coisas poderiam mudar, nomeadamente em função do Mundial. «Nesta altura o plano seria provavelmente um empréstimo em janeiro», disse Eddie Howe no final de setembro: «Estamos a trabalhar com várias opções mas as coisas podem mudar em função do envolvimento dele no Mundial.»

Têm sido avançadas na imprensa vários possíveis destinos para Garang e o jornal australiano The Age escreveu que o futebol português seria uma das hipóteses mais prováveis. Essa possibilidade tem sido repetida por vários meios em Inglaterra e foi referida também pelo Guardian na reportagem após o jogo com a Argentina. Quando perguntaram a Kuol qual seria o seu futuro a partir de janeiro, o jogador não pôde elaborar, porque a assessoria de imprensa da seleção australiana quis limitar as questões ao Mundial, mas deixou a ideia de que ele próprio ainda não tem certezas: «Ainda não sei bem. Mas é entusiasmante.»

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